OS DESAFIOS NORMATIVOS DA JUSTIÇA GLOBAL
SEGUNDO JOHN RAWLS*
PUCRS, Porto Alegre, Brasil
* Artigo originalmente publicado na revista de Filosofia Política, Série III, N. 4, "O Terror", org. Denis Rosenfield e Jean-François Mattéi, p. 171-189.
Wir sind im hohen Grade durch Kunst und Wissenschaft cultivirt. Wir sind civilisirt bis zum Überlästigen zu allerlei gesellschaftlicher Artigkeit und Anständigkeit. Aber uns für schon moralisirt zu halten, daran fehlt noch sehr viel. Denn die Idee der Moralität gehört noch zur Cultur; der Gebrauch dieser Idee aber, welcher nur auf das Sittenähnliche in der Ehrliebe und der äußeren Anständigkeit hinausläuft, macht blos die Civilisirung aus. (Immanuel Kant, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, 7. Satz)
Mais comme ses lois [de la métaphysique] portaient encore les traces de l’ancienne barbarie, des guerres intestines la firent tomber peu à peu en pleine anarchie, et les sceptiques, espèces de nomades qui ont en horreur tout établissement fixe sur le sol, rompaient de temps en temps le lien social. (Emmanuel Kant, Critique de la raison pure, préface éd. 1781, trad. J. Barni, Flammarion, 1976, p. 30)
C’est un fait: toute culture ne peut supporter et absorber le choc de la civilisation mondiale. Voilà le paradoxe: comment se moderniser, et retourner aux sources? Comment réveiller une vieille culture endormie et entrer dans la civilisation universelle? (Paul Ricoeur, Histoire et vérité, Le Seuil, 1964, p. 293)
Numa pesquisa em andamento, propus-me a esboçar o que seria a dimensão normativa da globalização à luz da teoria da justiça de John Rawls aplicada ao contexto brasileiro da "transição para a democracia". Partindo do que pode ser denominada uma "recepção brasileira do liberalismo" --em particular, das concepções de liberalismo político e de uma democracia deliberativo-participativa --, proponho uma idéia de razão pública que responda, ao mesmo tempo, às exigências de um ethos autônomo e deliberativo para a ação local e ao ideal de uma concepção igualitarista universalizável de justiça e liberdade. Minha hipótese de trabalho consiste em argumentar que os desafios da justiça global devem ser traduzidos pela exeqüibilidade da democratização efetiva de instituições sociais, econômicas e políticas em sociedades emergentes como a brasileira, de forma a cristalizar a dimensão normativa da globalização em termos de reivindicações dos direitos humanos e da participação cada vez mais includente de cidadãos nos processos decisórios que consolidam a democracia. Creio que seria possível mostrar, outrossim, em que sentido a sociedade civil pode contemplar uma inserção global a partir de práticas locais, através de movimentos sociais, ONGs e do exercício pleno da cidadania, sem se submeter aos interesses meramente econômicos de grupos dominantes (G-7, FMI, Bird, OMC) e sem cometer o isolacionismo com relação a intercâmbios já existentes e às possíveis aberturas de novas relações internacionais (Mercosul, ALCA, OEA, ONU).
Em primeiro lugar, é mister situar minha pesquisa dentro do vasto campo interdisciplinar da filosofia social, onde devem convergir não apenas as reflexões propriamente filosóficas acerca da ética e da justificativa da sociabilidade e instituições políticas, mas ainda os resultados de pesquisas empíricas e suas respectivas formulações teóricas em sociologia e ciência política. A tensão entre ética e política permanecerá sempre irresolúvel na medida em que a própria filosofia política continuamente desafia o que é simplesmente dado em práticas empíricas concretas, através da problematização permanente de theoria e praxis. A solução reside, todavia, na própria especificidade teórica da filosofia política, irredutível a uma ciência política e a qualquer princípio metafísico de fundamentação. É precisamente neste sentido de articulação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal que autores como Rawls podem nos ajudar a melhor compreender os desafios normativos do complexo processo de globalização na medida em extrapolam as matrizes econômicas e geopolíticas de uma nova ordem mundial. Através de seus trabalhos seminais em teoria política nos anos setenta, oitenta e noventa, Rawls contribuiu de maneira decisiva para corroborar uma teoria da democracia capaz de responder a tais desafios, tornando a globalização aceitável e até mesmo defensável na medida apenas em que coincide com a democratização. Assim como a democracia é um fenômeno político oriundo da civilização grega, a globalização deve ser entendida à luz da modernização e racionalização inerentes a processos de civilização ocidental, como já o mostraram Wallerstein, Braudel e Ianni.[1] Tanto Rawls quanto Habermas partem de pressupostos pragmáticos quanto à solidificação da democracia e processos de democratização em sociedades ocidentais: depois de vários séculos de conflitos e lutas pelo reconhecimento através de imperialismos e colonialismos, o mundo pós-guerra pode finalmente contemplar a possibilidade de uma coexistência pacífica na proporção em que um número cada vez maior de nações adere às regras do jogo democrático. Embora estejamos longe de realizar o sonho iluminista de uma paz perpétua (antecipado pelo Abbé de St. Pierre, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant), pudemos experienciar ainda no século passado a criação de uma Liga das Nações, em 1919, da Organização das Nações Unidas, em 1945, e de instituições econômicas visando o desenvolvimento na conferência de Bretton Woods, NH (1944, notavelmente o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio --sucedendo ao GATT) na tentativa de salvaguardar e estender a Declaração Universal dos Direitos Humanos a todos os povos.
Quando A Theory of Justice foi publicada em Harvard em 1971, havia um tácito consenso entre os pensadores da filosofia política de que nenhuma obra monumental nesta área tinha sido publicada desde o início da chamada Guerra Fria. Além das importantes contribuições de neomarxistas como Antonio Gramsci, Georg Lukács e dos expoentes da primeira geração da Escola de Frankfurt (Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin), a primeira metade do século XX assistiu ainda a algumas contribuições originais isoladas como os trabalhos de Carl Schmitt, Leo Strauss e Hannah Arendt. Assim, a publicação da obra-prima de Rawls em 1971 marca não apenas o renascimento do liberalismo político e do jusnaturalismo associados a contratualistas como Locke, Rousseau e Kant, mas ainda o início de um infindável debate entre racionalistas e culturalistas, universalistas e particularistas, liberais e comunitaristas, para além da polarização ideológica entre capitalistas e socialistas. Uma Teoria da Justiça deve ser lida, portanto, como uma obra seminal, em todos os sentidos, mas sobretudo pelo seu caráter de produzir discussões em torno de problemas clássicos de ética e filosofia política, que têm sido reformulados e provocado reflexões e problemáticas originais acerca da natureza e justificativa das instituições sociais, políticas e econômicas, em particular, aquelas que viabilizam o chamado Estado democrático de direito. Como Rawls diria numa entrevista de 1998 (à revista liberal católica Commonweal), o problema central de sua reflexão ético-política desde Uma Teoria da Justiça até o seu Liberalismo Político (1993) e O Direito dos Povos (1999) sempre foi o de oferecer argumentos razoáveis em defesa da democracia constitucional através de uma idéia de razão pública. A concepção de uma teoria da justiça como eqüidade (justice as fairness) foi apenas o marco inicial para um desafio normativo que continua até hoje, em plena globalização, nos impelindo ao pensamento ético-político: "por que, afinal, defender a democracia como melhor forma de governo e sociabilidade?" O livro de Rawls foi erroneamente identificado com um manifesto do Estado de bem-estar social (welfare state), talvez por causa da dimensão igualitarista de seu liberalismo e da idéia de justiça distributiva inerente à sua teoria. A verdade é que Rawls já buscava então uma reconciliação entre as chamadas "liberdades dos antigos e dos modernos". Embora a formulação original de uma teoria da justiça como eqüidade tenha sido revista e reformulada pelo próprio Rawls ao longo de seus escritos tardios, o intento programático de justificar a coexistência pacífica de grupos sociais conflitantes numa mesma sociedade civil é preservado e radicalizado através de vários argumentos que retomam a questão diretriz da tolerância política: "Como tolerar o intolerante? Como reconciliar interesses incompatíveis através de uma concepção pública de bem comum?" (TJ §§ 34, 35) Esta é, de resto, a mais crucial problemática do contratualismo clássico, a saber, justificar a passagem de um estado hipotético de natureza a um estado de sociedade civil através de um contrato social. Todavia, seria errôneo, a meu ver, reduzir a teoria rawlsiana da justiça a um jusnaturalismo revisitado ou a um neocontratualismo. A proposta de Rawls é, com efeito, menos modesta do que possa parecer a uma primeira leitura, superficial e descuidada. A problematização do contratualismo pela idéia de uma "posição original" visa diferentes níveis de articulação entre ética e filosofia política, lidando com questões de antropologia filosófica, economia política, teoria da linguagem, epistemologia moral, sociologia política e psicologia moral. Trata-se, portanto, de uma interlocução profícua com diversos autores e correntes da ética e da filosofia política. O pensamento político-filosófico de Rawls pretende, em suma, argumentar por uma defesa racional da democracia liberal em termos de uma razão pública, i.e. com argumentos e critérios que possam ser pública e consensualmente estabelecidos na elaboração de uma sociedade mais justa. As nossas sociedades democráticas se aproximam de uma sociedade idealmente justa (uma sociedade bem ordenada) na medida em que subscrevemos a princípios que seriam escolhidos pelas partes contratantes numa posição original, onde se estabelece um processo eqüitativo (24) para se chegar a uma idéia de justiça social. Trata-se de uma justiça procedimental pura e não perfeita (e.g., divisão perfeccionista do bolo)-- sem termos conhecimento de vantagens ou privilégios particulares. Daí o procedimentalismo conseqüencialista e igualitarista de sua teoria.
A concepção rawlsiana da "posição original" (TJ § 4) pode ser vista como ponto de partida da sua teoria da justiça como um todo (justiça como eqüidade), precisamente quando se tratava de resolvê-la nos termos de uma teoria da escolha racional. Com efeito, é nesse mesmo contexto conceitual que devemos entender a concepção de "equilíbrio reflexivo", quando Rawls a aproxima da justificação de princípios de inferência em Nelson Goodman e a afasta da neutralidade imparcial defendida por Thomas Nagel, calibrando de maneira interativa a teoria ideal com a teoria não-ideal.[2] A objetividade em questão, segundo Rawls, serve apenas para descartar as aporias opondo posicionamentos extremos de relativismos e objetivismos. E é ainda neste sentido preciso, que Rawls encontra no construtivismo kantiano uma terceira via entre concepções teleológicas (éticas das virtudes e utilitarismos) e intuicionistas da moral. Como oberva Kenneth Baynes no seu estudo seminal sobre Kant, Rawls, and Habermas,[3] a formulação construtivista da filosofia prática sustentada por estes pensadores visa a "um procedimento capaz de avaliar criticamente a legitimidade de normas e instituições sociais pelo crivo de uma concepção normativa de razão prática" (NG 8). Outrossim, ao explorar os argumentos centrais de tais versões de construtivismo, este se mostra uma defensável "elucidação dos fundamentos normativos" da crítica social, cuja justificação é "em última análise reflexiva ou recorrente, no sentido de não se poder mais apelar para alguma instância além da idéia do que pode ser racional e consensualmente aceito por pessoas livres e iguais".(NG 2)
Todo o programa ético-político exposto na Teoria da Justiça de 1971 foi continuamente revisado pelo autor, ao longo de três décadas, como atestam os seus Collected Papers (1999) e Lectures on the History of Moral Philosophy (2000). Podemos destacar três grandes problemas que permeiam sua teoria da justiça, sobretudo no desenvolvimento das teses centrais de sua trilogia (Uma Teoria da Justiça, 1971, Liberalismo Político,1993, O Direito dos Povos, 1999), a saber:
Podemos situar no primeiro problema todas as questões referentes aos modelos de ética geral, como por exemplo, de modelos eudaimonistas, de uma ética das virtudes (§§ 30, 67, 83), do utilitarismo clássico, utilitarismo de regra, utilitarismo de ato (§§ 5, 30, 50), da ética deontológica, ética do dever (§§ 6, 40), da teleologia (§§ 5, 7, 50, 85), do hedonismo (§§ 5, 84) e do perfeccionismo (§ 50). Assim, a questão do contrato social e de classificar a teoria rawlsiana como contratualismo ou jusnaturalismo (§§ 3, 6, 85), creio eu, também seria pensada neste grande campo temático, onde se configura ainda o problema do construtivismo (§§ 14, 47) e as questões correlatas do intuicionismo, falácia naturalista, realismo e anti-realismo (§§ 7, 39, 87), que seriam tematizadas em seus escritos dos anos 80 culminando com o Liberalismo Político. Sem dúvida, um título bastante instrutivo para esse primeiro conjunto de problemas afins seria o do § 40 da Teoria da Justiça, "A interpretação kantiana da justiça como eqüidade". A pretensão da teoria rawlsiana é a de contemplar todos as reivindicações de modelos já desenvolvidos, de forma a dar conta da tensão irresolúvel entre egoísmo e altruísmo (§§ 21, 30), como atestam os modelos elencados no § 21 da TJ. Em uma palavra, a dimensão deontológica da teoria rawlsiana é apenas corroborada nos seus dois escritos mais importantes depois da TJ.
Em segundo lugar, temos a questão de contrapor um universalismo de inspiração kantiana (§§ 23, 29) a um comunitarismo de inspiração hegeliana (§§ 41-43). O comunitarismo abrange críticos de Rawls tão diversos quanto Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, Michael Sandel e Michael Walzer. Autores como Amy Gutmann e Will Kymlicka mostraram as limitações de muitas das críticas comunitaristas na medida em que ainda pressupõem valores liberais de modelos universalistas. Otfried Höffe mostrou que seria problemática e equivocada a aproximação de tal corrente com um neo-aristotelianismo e Jürgen Habermas argumentou de maneira bastante convincente contra a identificação do comunitarismo com um republicanismo de inspiração rousseauniana.[4] Feitas estas duas ressalvas, o comunitarismo pode ser compreendido como uma reformulação teórico-política do ideal republicano da comunidade enquanto fundamento, princípio ou justificativa racional da sociabilidade e da justiça, numa rejeição explícita do ideal de autonomia individual. Assim como o contrato social e o princípio da universalizabilidade servem para fundamentar, balizar ou justificar modelos universalistas liberais (neo-contratualistas), o ideal da comunidade e suas idéias correlatas (tradição, eticidade, língua, história, identidade cultural, étnica e religiosa) são evocados numa argumentação comunitarista recorrendo não mais ao ideal revolucionário marxiano mas à concepção hegeliana de comunidade (Gemeinde, Gemeinschaft) que permeia todas as relações e instituições sociais, integrando as esferas privadas e pública (família, sociedade civil-burguesa e Estado). Embora o termo "comunidade" não seja ele mesmo inequívoco ou isento de polissemia --um sociólogo americano distinguiu 94 sentidos diferentes para "community" [5] --, podemos aludir a cinco características fundamentais de forma a diferenciar a especificidade teórico-política do comunitarismo:
Finalmente, no terceiro campo de problemas, temos a questão do igualitarismo, decorrente da própria formulação do princípio de eqüidade (fairness) (§§ 18, 58) e do princípio da diferença (§§ 13, 80), não apenas na idéia de igualdade eqüitativa de oportunidades mas ainda no primeiro princípio da justiça, da igual liberdade. A minha tese central é que o liberalismo político não pode se sustentar separadamente do igualitarismo, na medida em que articula liberdades básicas e o princípio libral da tolerância (§§ 32-35) numa versão liberal de republicanismo democrático (vontade geral e igualdade política) (§§ 17). Afinal, trata-se aqui de uma teoria da democracia liberal constitucional que visa promover a liberdade igual para todos e a igualdade eqüitativa de oportunidades, na medida em que as desigualdades são aceitáveis para os menos privilegiados. Ao contrário do individualismo possessivo do modelo hobbesiano e das diferentes versões de libertarianismo, a concepção rawlsiana de justiça como eqüidade retoma uma concepção de justiça como imparcialidade e não como decorrente de um regramento entre interesses conflitantes. Nada mais errôneo, portanto, do que aproximar o modelo rawlsiano de uma versão neoliberal ou libertária que defenda um Estado mínimo. Por outro lado, como já sugeri antes, a teoria da justiça em Rawls não defende tampouco um igualitarismo radical, como em modelos comunitaristas (sobretudo os de inspiração marxista) ou ainda em defesa irrestrita do Estado de bem-estar. O igualitarismo conseqüencialista de Rawls é corroborado pelos princípios liberrais de tolerância e de reciprocidade, respectivamente elaborados no Liberalismo Político e no Direito dos Povos.
Em seu Liberalismo Político, John Rawls observa de maneira um tanto instrutiva que Lutero e Calvino foram tão dogmáticos e intolerantes quanto a Igreja Católica Romana tinha sido antes deles. (Rawls, 1996, p. xxv). Contudo, segundo Rawls, a Reforma do século XVI inaugurou de maneira definitiva o pluralismo religioso no mundo ocidental moderno. Se os gregos, assim como as religiões politeístas em geral, eram bem mais tolerantes do que os povos que adeririam a religiões monoteístas, em particular ao cristianismo depois da conversão de Constantino, só foi com a Reforma que foi concretizado o problema do liberalismo político, a saber, "como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais, profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis". (How is it possible that there may exist over time a stable and just society of free and equal citizens profoundly divided by reasonable religious, philosophical, and moral doctrines?) De acordo com Rawls, a liberdade dos antigos se diferencia da dos modernos não apenas pela emergência de um novo paradigma de subjetividade (o indivíduo político, seus direitos civis e suas liberdades básicas) mas ainda --e de maneira mais fundamental-- pela introdução deste "choque entre religiões salvacionistas, doutrinárias e expansionistas" e pela internalização de tal conflito "latente e irreconciliável": "A novidade em relação a esse choque" (clash), escreve Rawls, "é que ele introduz nas concepções de bem das pessoas um elemento transcendental que não admite conciliação. Esse elemento conduz forçosamente ou a um conflito mortal, moderado apenas pela circunstância e pela exaustão, ou a liberdades iguais de consciência e de pensamento. Exceto por essas últimas, firmemente arraigadas e publicamente reconhecidas, nenhuma concepção política razoável de justiça é possível". É neste sentido, portanto, que Rawls pode asserir, em tom de constatação, que "a origem histórica do liberalismo político e do liberalismo em geral está na Reforma e em suas conseqüências, com as longas controvérsias sobre a tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII."(Rawls, 2000, p. 32) E Rawls ainda comenta, não sem ironia, que "como Hegel sabia muito bem, o pluralismo possibilitou a liberdade religiosa, algo que certamente não era a intenção de Lutero, nem de Calvino", fazendo alusão ao parágrafo 270 das Grundlinien der Philosophie des Rechts de 1821.(ibid., n. 32) Decerto, toda a filosofia política da tolerância que seria desenvolvida de John Locke, no final do século XVII, até John Stuart Mill, em meados do século XIX, marcaria uma evolução notável na aplicação de conceitos fundamentais como justiça, liberdade e igualdade a esferas cada vez mais abrangentes do tecido social e das instituições sociais, econômicas e políticas. Basta lembrar que um autor como Hobbes, apesar de suas críticas veementes à Igreja e de ter sido aparentemente indiferente à religião, se opôs taxativamente à tolerância religiosa e não tolerou os calvinistas e membros de outras seitas protestantes. De resto, as guerras religiosas e as grandes insurreições, rebeliões e guerras civis nos séculos XVI e XVII pareciam solapar a estabilidade do estado de direito. Os modelos jusnaturalistas procurariam, portanto, estabelecer de maneira definitiva uma justificação coerente do poder instituído --que, em última análise, mesmo sem recorrer ao direito divino dos reis era também representado na vida religiosa do povo e seus líderes espirituais. O problema de tolerar diferentes concepções do divino, sob a ameaça constante de grandes heresias, apostasias e cisões, inevitavelmente nos remeteria, numa situação extrema, ao problema de até que ponto pode-se tolerar o intolerante.(Rawls, 1971, § 35) Rawls observa que antes da prática pacífica e bem-sucedida da tolerância em sociedades com instituições liberais, não havia como saber da existência da possibilidade de uma sociedade pluralista estável e razoavelmente harmoniosa. Por isso, a intolerância foi aceita durante tantas décadas, mesmo depois da Reforma, como uma condição da ordem e estabilidade sociais. Certamente a secularização --e este foi um processo que se desenvolveu paulatinamente a partir de concepções liberais em círculos teológicos-- viria a coroar de vez a especificidade do liberalismo político, autodiferenciado do problema do bem supremo. Como Rawls observa, para os modernos, o bem se dava a conhecer em sua religião; com suas divisões profundas, o mesmo não se verificava em relação às condições essenciais de uma sociedade viável e justa. Assim as diferenciações das esferas do político, do social e do econômico seguem organicamente a separação pós-luterana entre a esfera eclesiástica e a esfera civil.
Segundo John Rawls, a característica mais fundamental e permanente de uma cultura política democrática, pública, é precisamente o que ele denomina o "fato do pluralismo razoável". De acordo com o Liberalismo Político, tal "cultura pública compreende as instituições políticas de um regime constitucional e as tradições públicas de sua interpretação (inclusive as do judiciário) [sem grifos no original] (Rawls, 2000, p. 54). Além de ser uma concepção moral especificamente política --na medida em que se aplica à "estrutura básica da sociedade", i.e. às instituições políticas, sociais e econômicas de uma democracia constitucional moderna-- e de ser apresentada como uma "visão auto-suficiente" (freestanding view) --diferenciada, portanto, em sua especificidade política de doutrinas abrangentes (comprehensive doctrines) morais, religiosas e filosóficas--, a "justiça como eqüidade" parte de "uma certa tradição política", assumindo como sua idéia fundamental a da "sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação ao longo do tempo, de uma geração até a seguinte". E Rawls acrescenta,
Essa idéia organizadora central corre paralela a duas outras, fundamentais, que são suas companheiras inseparáveis: a de que os cidadãos (aqueles envolvidos na cooperação) são pessoas livres e iguais (§§ 3.3 e 5); e a de que uma sociedade bem-ordenada é efetivamente regulada por uma concepção política de justiça (§ 6). Supomos também que essas idéias podem ser trabalhadas numa concepção política de justiça capaz de conquistar o apoio de um consenso sobreposto [overlapping consensus]. (Rawls, 2000, p. 57)
Creio que uma outra maneira de abordarmos esta problemática pode se dar através da própria concepção política da tolerância enquanto princípio liberal que permeia e guia toda construção do pluralismo razoável. Como o sugeriram independentemente os estudos de Paulo Krischke e Álvaro de Vita, uma cultura política como a brasileira --longe de ser uma "sociedade bem-ordenada", mas em via de superar suas desigualdades e hierarquias estruturais-- deve ser democratizada pela idéia liberal da tolerância, estendida a todos os segmentos da vida social, política e econômica.(Krischke, 1998; Vita, 2000) Afinal, uma cultura política que se encontra em transição para a democracia, que ainda experiencia a consolidação da democracia sem ter jamais realizado uma revolução nacional ou uma longa e durável experiência da democracia liberal, só poderá atingir um patamar mínimo de publicidade e pluralismo na medida em que seus cidadãos efetivamente conquistarem os próprios direitos que reivindicam através de movimentos sociais, militância partidária e mobilizações junto a associações voluntárias e organizações não-governamentais. De resto, "cultura política" não pode ser tomado como um conceito científico definitivo, como bem o mostrou Steve Chilton em seu estudo sistemático sobre desenvolvimento político (Chilton, 1984). Se os indivíduos são socializados em suas respectivas culturas (valores normativos como religião, moral e opção partidária), eles também são catalizadores da mesma que cultura que ajudam a produzir e reproduzir. Portanto, há sempre uma defasagem entre a cultura e o político, com interação nos dois sentidos: assim como não se procede mais a uma mera hipóstase super-estrutural, as diferenciações nas esferas da ciência, do direito e da arte não poderiam ser tampouco superadas por uma metacrítica que resgatasse o sentido unificador da modernidade, tornado hoje problemático e desacreditado. As contribuições de autores como Rawls e Habermas mostram sobretudo que tal conceito deve ser complementado pela idéia normativa de uma razão pública concebida em termos democrático-constitucionais. Mesmo que se idealizasse uma concepção universalizável de cultura política, o que temos hoje é uma proposta democrático-liberal que, apesar de todas as deficiências em sua gênese histórico-conceitual (colonialismo e pós-colonialismo), ainda se apresenta como a mais viável para todas as nações, inclusive para as que ainda não têm valores democráticos sedimentados em seu ethos sociopolítico. Assim, as liberdades básicas e os direitos fundamentais --a começar pelo direito à saúde, educação e trabalho--, apesar de "garantidos" pela Constituição de muitos países como o nosso, devem ser efetivamente reivindicados pela sociedade civil, mesmo em se tratando de questões que envolvem discussões técnicas, especificamente pertinentes ao governo e aos três poderes em seus variados níveis de representatividade.
A questão brasileira da transição para a democracia foi sistemática e incisivamente debatida por pesquisadores, historiadores, intelectuais e cientistas sociais ligados ao CEBRAP e às universidades de Yale e Columbia, entre 1983 e 1987, resultando na confecção de um volume, Democratizing Brazil, editado pelo "brasilianista" Alfred Stepan.(Stepan, 1989) Na verdade, o volume dá continuidade a uma análise aprofundada dos problemas sociais, políticos e econômicos que assolaram o Brasil durante a ditadura militar, traduzida pela elaboração de um outro volume, Authoritarian Brazil, entre 1971 e 1972, no zênite do autoritarismo.(Stepan, 1973) A passagem do regime militar a um regime civil presidencialista em março de 1985, depois de 21 anos de ditadura, assinalou o início de um verdadeiro processo de democratização, para além dos jargões da longa era ideológica da Guerra Fria --mas no interior da qual toda análise discursiva deveria ser empreendida. É muito oportuno lembrar aqui que o discurso liberacionista --não apenas das chamadas teologias da libertação, mas ainda dos movimentos estudantis e das transformações socioculturais dos anos 60 e 70-- foi elaborado como uma resposta crítica e alternativa à doutrina liberal e capitalista do desenvolvimentalismo, segundo a qual seria apenas uma questão de tempo para que alguns países do chamado Terceiro Mundo "decolassem" (take off) em rumo definitivo ao desenvolvimento (desarollo) --daí a terminologia dos developping countries, "países em desenvolvimento". Com a emergência da teoria rawlsiana da justiça em 1971 --mesmo ano em que Gustavo Gutiérrez publica sua Teología de la Liberación--, podemos argumentar em favor do princípio liberal da tolerância como alternativa às limitações de modelos desenvolvimentistas e liberacionistas para tratar da democratização em sociedades ditas "emergentes".
Segundo a mais recente terminologia do "desenvolvimento sustentável", num mundo cada vez mais globalizado, uma transition to democracy deixa de ser apenas um fenômeno inevitável mas torna-se agora uma questão de sobrevivência. Para além dos debates e dos programas pautados por mega-eventos internacionais, apoiados pela ONU e por ONGs do mundo inteiro, questões de direitos humanos e problemas afins entram definitivamente na agenda de processos decisórios que visam à implementação de políticas econômicas, em particular políticas públicas que lidam com questões referentes ao combate sistêmico de mecanismos de exclusão social. Por exemplo, as reivindicações de movimentos negros e feministas, grupos ecológicos, movimentos gay, grupos indígenas e outros atestam hoje a inevitabilidade de se aprofundar as relações de solidariedade e alteridade para o pleno exercício da cidadania: o igualitarismo se manifesta cada vez mais pela diversidade do pluralismo democrático. E isso também se dá, paradoxalmente, nas relações entre culturas de países diferenciados econômica e socialmente. Assim, a própria concepção de "justiça global", correlata imediata da democratização num mundo globalizado, surge como uma proposta capaz de responder aos anseios de teorias liberacionistas, como a teoria da dependência de Cardoso-Faleto, na medida em que denucia a colonização sistêmica do mundo da vida, sobretudo pelos monopólios do poder e do dinheiro (por exemplo, na política externa americana e nos efeitos nefastos do mercado financeiro) ou defende a transparência pública dos meios de acesso social à justiça pública estatal.(Pogge, 1989; Höffe, 1996) Na Teoria da Justiça (Rawls, 1971), os dois princípios devem ser, portanto, concebidos segundo um modelo de jogo democrático na medida em que articulam uma liberdade igual e uma eqüitativa igualdade de oportunidades, de forma a viabilizar uma sociedade cada vez mais justa, fair, cujas desigualdades são aceitáveis por estabelecerem critérios públicos de justiça, iguais para todos. A primazia do justo sobre o bem, ao contrário do utilitarismo, não permite o sacrifício de indivíduos em suas aspirações racionais, mas assegura que cada um (ou grupo de indivíduos) busque a realização de suas concepções do bem (diferentes e muitas vezes incompatíveis entre si) ao mesmo tempo em que todos compartilham um certo senso de justiça, o mínimo exigido para manter os termos razoáveis de uma cooperação social. Rawls concebe seu modelo de justiça como eqüidade precisamente para organizar as idéias e os princípios capazes de expressar a própria sociabilidade em termos desses critérios públicos, ou seja, a sociedade passa a ser "concebida como um sistema eqüitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais, vistos como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida."(Rawls, 2000, p. 51)
Na medida em que a razão política é compartilhada por todos, publicamente, pode-se falar de uma democracia que se mostra como a melhor forma de governo do povo, pelo povo e para o povo. Políticas econômicas contemplariam, segundo Rawls, os mesmos requisitos inerentes ao utilitarismo. Na sua interlocução com Amartya Sen, seu colega de Harvard e Nobel de Economia, Rawls mostra que se há conseqüencialismo (maximin enquanto princípio de utilidade), este deve ser entendido em termos contratuais, procedimentais --como seria inclusive possível de ser formulado no próprio procedimento de representações práticas do imperativo categórico de Kant. De acordo com Sen, o utilitarismo pode ser considerado à luz da combinação dos três requisitos:
A reformulação rawlsiana do seu liberalismo político procura manter a idéia diretriz da primazia do justo sobre o bem de forma a satisfazer parcialmente esses requisitos e de maneira incisiva realizar os requisitos inerentes a um conseqüencialismo contratual, igualitarista. Além da prioridade do justo vis à vis das idéias do bem (Conferência V), as outras duas idéias centrais do Liberalismo Político são o consenso sobreposto e a razão pública, respectivamente tematizadas nas Conferências IV e VI. Questões de reformas administrativas, constitucionais e do Judiciário nos remetem ao problema da passagem de um consenso constitucional a um consenso sobreposto (§§ 6,7). No consenso constitucional, assegura Rawls, "uma constituição que satisfaz certos princípios básicos estabelece procedimentos eleitorais democráticos para moderar a rivalidade política no interior da sociedade".(Rawls, 2000, p. 205) Princípios liberais de justiça, assim como o princípio da tolerância e as regras do jogo democrático, são endossados paulatinamente como modus vivendi, a partir do momento em que são adotados por uma constituição e passam a influenciar as próprias doutrinas abrangentes dos cidadãos em direção a um pluralismo razoável. Pelas reformas judiciais e emendas fundamentais, um consenso constitucional pode aprofundar os princípios liberais, viabilizando uma adesão generalizada --mesmo que inicialmente seja motivida por interesses pessoais, costumes ou tradições de doutrinas abrangentes (religiosas, morais e outras)-- e tornando um simples pluralismo em um pluralismo razoável, capaz de permitir a passagem para o consenso sobreposto. Rawls assume, portanto, que as doutrinas abrangentes sempre admitem "um espaço para o desenvolvimento de uma adesão independente à concepção política que ajuda a criar um consenso".(Rawls, 2000, p. 215) O grande problema de posicionamentos intransigentes (por exemplo, de fundamentalistas e radicais) é o de não permitir a emergência de um consenso que viabilize a coexistência pacífica de interesses diferenciados, essencial para o processo democrático. Daí o papel fundamental da revisão judicial ou "revisão conduzida por um outro órgão" para que "juízes, ou as autoridades em questão, desenvolvam uma concepção política de justiça à luz da qual a constituição, de acordo com sua visão, seja interpretada, e casos importantes sejam decididos". E Rawls acrescenta,
Somente então as leis promulgadas pelo legislativo podem ser declaradas constitucionais ou inconstitucionais; e somente então os juízes têm uma base razoável para interpretar os valores e critérios que a constituição incorpora ostensivamente. É claro que essas concepções terão um papel importante na política dos debates constitucionais.(Rawls, 2000, p. 213)
Rawls tematiza, assim, o problema de como sair do mero modus vivendi, por exemplo, da tolerância liberal, em direção a um consenso constitucional onde tais princípios são efetivamente endossados e, posteriormente, encarnar o ideal de razão pública em práticas cotidianas que nos remetem ao consenso sobreposto, dentro do "império da lei" (rule of law) ou do chamado "estado democrático de direito" (demokratische Rechtsstaat).(Rawls, 2000, p. 263s.) É neste sentido, que Rawls identifica, no § 6, o supremo tribunal como exemplo de razão pública, mas com os devidos limites impostos pela constituição democrática e pela vontade geral:
(...) o poder supremo de um governo constitucional não pode caber ao legislativo, nem mesmo ao supremo tribunal, que é apenas o melhor intérprete judicial da constituição. O poder supremo é detido pelos três poderes, numa relação devidamente especificada de uns com os outros e sendo cada qual responsável perante o povo.(Rawls, 2000, 283)
Assim como o direito nos Estados emergentes se mostra cada vez mais politizado, os desafios do fenômeno da economia globalizada se estendem à atuação decisiva do judiciário na vida política dos países ditos desenvolvidos. Assim como a racionalidade jurídica é colocada em xeque nessas relações políticas, as políticas públicas exigem cada vez mais da função judicial e da efetividade normativa do direito nas relações entre o público e o privado. Apesar de sua autonomia e da não-subordinação do direito à moral segundo os parâmetros do contratualismo clássico (de Hobbes a Kant), a responsabilidade social da função judicial nos remete inevitavelmente à questão da ética na política. A impunidade e a corrupção que marcaram todo o desenvolvimento de nossa história política, através das diferentes experiências de nos afirmarmos como um regime constitucional, infelizmente, não eximem os supostos defensores da justiça, do direito e da lei em nosso País. Por trás de quase todos os golpes e esquemas de abuso do poder e da coisa pública, encontramos o recurso à lei e o apoio legal para infringi-la --por mais paradoxal que o pareça. Esta já seria, de resto, uma razão pragmática para endossarmos modelos contratualistas, em contraposição a modelos sistêmicos, empiristas e positivistas que tendem a questionar a fundamentação moral do judiciário e do político. Afinal, na medida em que fazemos depender da moral uma concepção de direito ou justiça estaríamos solapando a própria idealização de uma distribuição eqüitativa de bens primários, como se tratasse, em última análise, de uma aplicação extensiva da lei do talião ou de uma secularização formal da teologia retributiva (crime e castigo). Por um lado, pode-se questionar que contrapor a justiça distributiva tal como ela é reformulada por Rawls a versões tradicionais de justiça retributiva seja um "falso dilema contemporâneo" precisamente porque a concepção política de justice as fairness se propõe, acima de tudo, a dar conta do cuique suum, ou seja, a justificar em que medida deve-se exigir que a cada um seja dado (ou retribuído) o que é seu, o que lhe é próprio, de direito. Por outro lado, numa formulação alternativa extrema, no outro pólo do espectro das teorias da justiça (não-cognitivas, pós-modernas), poderíamos aludir à impossibilidade de justiça, como o sugere Jacques Derrida, precisamente por não haver uma tal medida transcendental de propriedade, propriação (enquanto apropriação e expropriação, no sentido heideggeriano): "desconstrução é justiça", na medida em que "todo outro é totalmente outro" (tout autre est tout autre) e seria portanto impossível dizer ou pensar a justiça sem incorrer na aporia de não fazer jus ao Outro, ao que lhe é próprio, de jure.(Derrida, 1992a; 1992b) Em ambos os casos, voltamos à questão do profetismo social: "como devemos, então, viver?" (Ezequiel 33:10)
A proposta de Rawls é que procuremos resolver questões de justiça social, hoje, através do modelo paradigmático da filosofia política moderna-- o contratualismo-- com sua correlação diretriz entre liberdade e igualdade. Assim como Locke e Rousseau foram capazes de desenvolver uma versão mais elaborada do contrato social a partir de suas críticas ao absolutismo e racionalismo de Hobbes, também Rawls se apropria daqueles autores segundo uma "interpretação kantiana" capaz de reconciliar as liberdades dos modernos e dos antigos, os ideais liberais (como a tolerância e as liberdades fundamentais) com os republicanos (tais como a participação e a soberania popular).(Rawls, 1971, § 40; 2000, VIII) A fim de não incorrermos em moralismo, proselitismo religioso ou fundacionalismo metafísico, somos levados a buscar uma concepção especificamente política de justiça, de forma a viabilizar a convivência de doutrinas abrangentes incompatíveis.
Embora outros autores, particularmente Habermas, tenham apresentado outros modelos alternativos (por exemplo, uma "terceira via" com relação a universalistas e comunitaristas, liberais e socialistas, ou uma "teoria deliberativo-participativa da democracia"), a contribuição de Rawls se mantém como uma das mais originais e instrutivas, tendo servido inclusive para motivar críticas imanentes (ou family feuds como a que envolveu Habermas e seus epígonos) e críticas radicalmente opostas (como a de neo-marxistas e neo-hegelianos) ao seu liberalismo político. A idéia central do modelo rawlsiano é que sociedades democráticas, onde coexistem doutrinas abrangentes razoáveis, podem endossar uma teoria da justiça como eqüidade (Rawls, 1996, p. 375). Uma tal teoria é, portanto, liberal e especificamente política na medida em que é auto-suficiente (freestanding, segundo Rawls, ao contrário da teoria habermasiana do agir comunicativo), isto é, em que se limita à categoria do político sem adentrar em questões propriamente metafísicas ou teórico-filosóficas (The central idea is that political liberalism moves within the category of the political and leaves philosophy as it is).
Rawls concorda plenamente com Habermas no que diz respeito à correlação entre democracia e direito constitucional: não há sociedade justa sem uma constituição justa. Portanto, o equilíbrio reflexivo nos remete inevitavelmente a convenções e instâncias de reformas constitucionais, reformas do judiciário e do Estado democrático de direito. Num certo sentido, nós somos sempre em via de nos democratizar, em plena prática cotidiana da democratização, assim como a força normativa do procedimentalismo reside na busca incansável da sociedade bem-ordenada através da estabilização de sua estrutura básica. Tanto liberais quanto socialistas do chamado mundo civilizado defendem hoje a democratização, em nível regional e mundial, das instituições econômicas, sociais, políticas e jurídicas como única forma viável de garantir efetivamente a coexistência pacífica entre os povos. Embora o realismo político das relações internacionais nos impeça de acatar a pax americana sem ceticismo ou suspeita, o recente ataque terrorista aos EUA renovou trágica e paradoxalmente as possibilidades de uma humanidade mais unida, pelo menos quanto à sua autopreservação. Num mundo cada vez mais globalizado, a democracia deixa de ser apenas um fenômeno eurocêntrico mas torna-se, agora mais do que nunca, uma questão de sobrevivência para todos.
Assim como o liberalismo político recorre a uma concepção política de justiça, subjacente a um consenso sobreposto entre seguidores de visões religiosas, filosóficas e morais incompatíveis, Rawls estende a teoria da justiça a uma sociedade dos povos --liberais e não-liberais (mas decentes)-- que subscrevem a princípios internacionais da razão pública, tais como a autodeterminação, não-intervenção, autodefesa, direitos humanos, conduta na guerra e assistência a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis. Os ideais da paz perpétua advogada por Saint-Pierre, Rousseau e Kant são resgatados por Rawls no que ele denomina de uma "utopia realista", enquanto alternativa concreta a uma pax americana que, assim como a pax romana há dois milênios, carece de fundamentos normativos pela própria imposição de interesses econômicos particulares. Rawls é implacável nas suas críticas à política externa americana, desde o uso de bombas atômicas contra a população civil de Hiroshima e Nagasaki até a intervenção desastrosa contra regimes democráticos, como o de Allende, por interesses econômicos e ideológicos de "segurança nacional". Rawls também não hesita em vincular o Holocausto ao anti-semitismo cristão para mostrar que o problema das guerras de intolerância, reproduzido na Irlanda do Norte e no conflito palestino-israelense, continua sendo o maior desafio para a normatividade ético-política moderna, a saber, como diferentes doutrinas abrangentes (religiosas, morais, ideológicas, etc), incompatíveis entre si, podem conviver pacificamente de forma a viabilizar a sociabilidade? O modelo procedimentalista de Rawls nos parece, portanto, apropriado para uma sociedade emergente como a brasileira, de forma a garantir uma cultura política pública num estado democrático de direito que viabilize o pluralismo razoável, na medida em que consolidamos nossa transição para a democracia, depois de vários séculos de colonialismo e autoritarismo. Não nos surpreende, outrossim, que petistas e tucanos no Brasil recorram a Rawls quando procuram embasar seus projetos de justiça social numa teoria coerente defensável.Referências Bibliográficas
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KRISCHKE, Paulo J. "A Cultura Política Pública em John Rawls: Contribuições e Desafios à Democratização". Revista de Filosofia Política -- Nova Série 2 (1998): pp. 85-97.
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NOTAS
1. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel, The Modern World-System (New York: Academic Press, 1979), BRAUDEL, La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (Paris: Armand Colin, 1949), Fernand IANNI, Octavio, Teorias da Globalização (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001).
2. Em TJ 20 n. 7, Rawls nos remete ao clássico de Goodman de 1955, Fact, Fiction, and Forecast; a crítica ao "observador impessoal" e ao "ponto de vista impessoal" de Nagel (The View from Nowhere) encontra-se em TJ 184-92 e em PL 116 n. 19.
3. Kenneth Baynes, The Normative Grounds of Social Criticism: Kant, Rawls, Habermas, Albany: SUNY Press, 1992. Doravante, NG.
4. Cf. O. Höffe, Justiça Política: Fundamentação de uma Filosofia Crítica do Direito e do Estado. Trad. Ernildo Stein. Martins Fontes, 2001; J. Habermas, Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1992.
5. Robert Booth Fowler, The Dance with Community: The Contemporary Debate in American Political Thought. Lawrence: University of Kansas Press, 1991.