Prolegômenos ao Perspectivismo Semântico-Transcendental
Ontologia,
Subjetividade, Linguagem
“Da lag es dann
nicht an der Theorie, wenn sie zur Praxis noch wenig taugte, sondern daran, daß
nicht genug Theorie da war, welche der Mann von der Erfahrung hätte lernen
sollen, und welche wahre Theorie ist, wenn er sie gleich nicht von sich zu
geben und als Lehrer in allgemeinen Sätzen systematisch vorzutragen im Stande
ist...”(Immanuel Kant, Über den Gemeinspruch: ‘Das mag in der Theorie richtig
sein, taugt aber nicht für die Praxis’, Berlinische
Monatsschrift XXII, Sept. 1793, Werkausgabe,
Hrsg. Wilhelm
Weischedel, Band XI,
“Die Frage, ob dem menschlichen Denken gegenständliche
Wahrheit zukomme, ist keine Frage der Theorie, sondern eine praktische Frage.
In der Praxis muß der Mensch die Wahrheit, d.h. die Wirklichkeit und Macht, die
Diesseitigkeit seines Denkens beweisen. Der Streit über die Wirklichkeit oder
Nichtwirklichkeit eines Denkens, das sich von der Praxis isoliert, ist eine
rein scholastische Frage”.
(Karl Marx, Ad
Feuerbach, 1844, Th. 2, Werke,
Berlin: Dietz Verlag, 1976, Band 1)
“Das ‘praktische’
Verhalten ist nicht ‘atheoretisch’ im
Sinne der Sichtlosigkeit, und sein Unterschied gegen das theoretishce Verhalten
liegt nicht nur darin, daß hier betrachtet und dort gehandelt wird, und daß das Handeln, um nicht blind zu bleiben,
theoretisches Erkennen anwendet, sondern das Betrachten ist so ursprünglich ein
Besorgen, wie das Handeln seine Sicht
hat”. (Martin
Heidegger, Sein und Zeit, 1927, § 15,
Tübingen: Niemeyer, 1986)
INTRODUÇÃO
Um tratado prático-teorético é fundamentalmente
um tratado de epistemologia moral, na medida em que trata da filosofia prática
em sua relação específica, por um lado, com uma teoria do conhecimento e da
linguagem, e por outro lado, com a própria questão da teoria, enquanto
teorização do ser (ontologia), da subjetividade (teoria ético-moral, problemas
fundamentais de metafísica, em particular, da antropologia e psicologia
filosóficas) e dos domínios regionais de objetos de investigação (incluindo
correntes analíticas das chamadas filosofia da mente e filosofia da linguagem, e
a própria lingüística, dentre outras ciências empíricas, como a biologia e a
economia). Trata-se de marcar, outrossim, uma diferença fundamental entre um
uso teórico e um uso prático da razão, seguindo uma tradição kantiana que, a
despeito de contínuas e prolongadas críticas a uma idéia de “unidade da razão”,
tem se mostrado deveras sustentável.[1] Tal diferença fundamental revela-se um princípio semântico-metafísico na própria classificação dos termos em que um tratado prático-teorético se propõe, na medida em que as diferenças implicadas entre o que é propriamente ontológico e não-ontológico acabam por nos remeter a uma diferenciação fundamental entre ontologia, subjetividade e linguagem. Um problema tão antigo quanto o da ontologia e das diferentes interpretações do realismo em Platão e Aristóteles serve aqui para balizar a idéia moderna de um perspectivismo que se mostra irredutível a oposições entre sujeito e mundo, subjetividade e ontologia, viabilizando uma retomada do problema da normatividade para além de oposições entre teoria e prática. Ademais, corrobora-se destarte toda tentativa de explicitar, hoje, em que consiste a normatividade, por exemplo, ao fundamentar ou justificar a crença de que as coisas são o que são, em contraposição ao que devem ser, ou que sejam assim e não de outro modo. Um erro em quaisquer aproximações de problemas de epistemologia moral consiste, com efeito, em reduzir tais problemas a pólos objetivistas, subjetivistas e intersubjetivistas e a diversas formulações de realismo e anti-realismo, intuicionismo e não-cognitivismo, internalismo e externalismo. O problema filosófico da normatividade revela-se, deste modo,
anterior a tematizações afins na filosofia do direito e na filosofia da
ciência. Já no início do século XX, Edmund Husserl aproximara o problema
teórico da normatividade (por exemplo, na física matemática) de uma abordagem
prática, na medida em que, por um lado, uma fundamentação fenomenológica da
lógica e das ciências era pressuposta na própria distinção entre as chamadas ciências
naturais e as ciências do espírito e, por outro lado, toda teoria pressupunha
uma prática pré-teórica em nosso mundo da vida.[2]
Embora o legado neokantiano desta problemática tenha sido sistematicamente
criticado desde o início da filosofia analítica e das várias correntes da
fenomenologia e hermenêutica, ainda permanecemos, no limiar do século XXI, reféns
de um dos mais aporéticos dogmas de nosso filosofar, a saber, o de pressupormos
uma certa normatividade –seja teórica, seja prática-- na própria constituição
de sentido de nossas incessantes investigações. Se, para Kant, tudo na natureza
opera segundo leis (isto é, tudo o que acontece, é o caso ou vem a ser, segue
regras, num sentido teórico), assim como há um dever-ser ou uma normatividade
prática, segundo as leis da liberdade, é a própria unidade da razão –enquanto
idéia teórica e não como postulado prático-- e o recurso irredutível a uma
subjetividade transcendental que nos asseguram uma coerência argumentativa. As
tentativas de uma solução totalizante em autores como Hegel e Heidegger visam,
decerto, a uma superação dos dualismos e da contraposição entre sujeito e
objeto, mas parecem desembocar em novas versões de dogmatismo metafísico
(subjetividade absoluta) e ontológico (diferença ôntico-ontológico), como foram
respectivamente denunciados e traídos por uma certa herança da “metafísica da
presença”, conforme a fórmula lapidar de Derrida. Decerto, a articulação
prático-teórica de Sein und Zeit
encerra um perspectivismo capaz de evitar reducionismos substancialistas,
subjetivistas e nominalistas –por exemplo, na primazia prática de “que há um
martelo” (Dass) sobre “o que venha a
ser teoricamente tomado como objeto” (Was).
Numa perspectiva
metodológico-teórica, trata-se de um tratado de fenomenologia
semântico-transcendental, em seu perspectivismo ontológico, ético-estético,
semântico, repetindo solenemente a auto-asserção da filosofia transcendental
enquanto prima philosophia, como modus philosophicus por excelência capaz
de unir o significado conceitual, semântico, de toda filosofia: lógica,
epistemologia, ética, estética e metafísica (onde se incluiriam ainda
ontologia, antropologia, psicologia e teologia filosóficas). Embora trate
primariamente de problemas de epistemologia moral, ética normativa, metaética e
ética aplicada, um tratado prático-teórico desvela uma pretensão metodológica
mais abrangente, fazendo jus ao seu perspectivismo semântico-transcendental.
Esta é a maior lição que aprendemos com a leitura de um autor como Rawls, à
primeira vista tão especializado quanto despretensioso, mas cuja teoria se
desvela como sendo essencialmente prático-teorética e capaz de problematizar
conceitos, tradições e áreas diversas como filosofia da mente (por exemplo, através
da concepção normativa de pessoa), metafísica e filosofia da linguagem (em sua
idéia diretriz de equilíbrio reflexivo). A reformulação rawlsiana do problema
prático-teorético kantiano perpassa, outrossim, toda articulação meticulosa de
conceitos teóricos ideais (como a posição original e a sociedade bem-ordenada)
com a sua aplicabilidade prática (políticas públicas, direitos humanos,
bioética) em termos teóricos não-ideais. Uma teoria da justiça como eqüidade é
correlata, portanto, a uma ontologia política, a uma concepção normativa de subjetividade
e, num sentido tão oblíquo quanto polêmico, a uma semântica transcendental. Amy
Gutmann mostrou que a concepção normativa de pessoa em Rawls independe dos
pressupostos metafísicos kantianos, assim como Philip Pettit argumentou em prol
de uma ontologia política rawlsiana capaz de evitar os reducionismos
utilitaristas e libertarianos, que tendem a inflacionar a concepção de povo
enquanto agente coletivo ou a pulverizar grupos sociais em indivíduos
supostamente livres, respectivamente.[3]
Por outro lado, a obra de Rawls foi tradicionalmente recebida como algo
indiferente à chamada “guinada lingüística” e à tradição analítica da filosofia
da linguagem, como Norman Daniels o colocou, ao tentar explicar o tremendo
impacto e o sucesso imediato da teoria da justiça:
One obvious factor is that many readers and editors
found in Rawls’s work a welcome return to an older tradition of substantive,
rather than semantic moral and political philosophy. Rawls’s approach stands in
sharp contrast to the work of the logical positivists and the analytical school
in general.[4]
É
precisamente por causa dessa complicada relação entre leituras substantivas e
semânticas da ética e da filosofia política que, a meu ver, a obra de Rawls
pode nos guiar num reexame da correlação entre metaética e ética substantiva,
sobretudo se tomarmos o dispositivo procedimental do equilíbrio reflexivo como
ferramenta de investigação metodológica, de forma a explorarmos as possíveis
relações entre ontologia, subjetividade e linguagem. Pensadores tradicionalmente
associados com a chamada filosofia continental, tais como Hegel, Husserl e
Heidegger, assim como filósofos analíticos, como Wittgenstein, Hare e Davidson,
contribuíram para esta aproximação possível entre fenomenologia e metaética, entre
hermenêutica e filosofia analítica da linguagem. O presente tratado se propõe
apenas a fornecer Materialen para
esboçar os prolegômenos a toda investigação futura em ontologia, subjetividade
e linguagem, segundo um perspectivismo semântico-transcendental, de inspiração
kantiana e reconhecidamente devedor de interpretações seminais, tais como as
oferecidas por Friedrich Kaulbach, Zeljko Loparic e Robert Hanna.[5]
Assim como o perspectivismo transcendental rejeita um suposto dualismo
ontológico de “dois mundos” (Zwei-Welten-Theorie),
a semântica transcendental recusa todo reducionismo da filosofia transcendental kantiana
a problemas lógico-ontológicos, mas a vislumbra também na elucidação de
problemas ético-políticos, jurídicos e estéticos.[6] De resto,
mesmo
que usássemos o termo “ontologia” para compreender não apenas a totalidade do
que é, mas ainda do que pode ser e do que deve ser, ainda assim teríamos de
lidar com questões do poder e do dever-ser em outros enfoques de subjetividade
e da própria linguagem se quiséssemos dar conta do problema rousseauniano que,
seguindo e criticando um modelo hobbesiano, antecipa todas as formulações do
jogo do regramento político, ao tomar os seres humanos como são e suas leis
como devem ser: “Je yeux chercher si, dans l’ordre civil, il peut y avoir
quelque règle d’administration légitime et sûre, en prenant les hommes tels
qu’ils sont, et les lois telles qu’elles peuvent être”.[7]
Com efeito, como Rousseau já observara no mesmo livro, uma questão do tipo “ovo
e galinha” (a chicken-egg question) em
muito antecipara o problema wittgensteiniano do rule-following (Regelfolgen,
“seguir uma regra”)-- o que é mais fundamental: a existência da sociedade para
a invenção da linguagem, ou a invenção da linguagem para o estabelecimento da
sociedade? Segundo o filósofo suíço, “Pour qu’un peuple naissant pût goûter les
saines maximes de la politique et suivre les règles fondamentales de la raison
d’État, il faudrait que l’effet pût devenir la cause; que l’esprit social, qui
doit être l’ouvrage de l’institution, présidât à l’institution même; et que les
hommes fussent avant les lois ce qu’ils doivent devenir par elles”.[8]
Assim como fora tematizado em termos aristotélicos pela articulação entre
racionalidade (logos, linguagem) e
sociabilidade (ontologia política), o problema clássico seria retomado em
termos de representações de uma subjetividade, na modernidade, pela correlação
intersubjetiva entre pessoa e sociedade. A teoria política (ou filosofia
política) se apresenta como um locus
por excelência da epistemologia moral e, neste sentido, da própria concepção de
uma philosophia prima capaz de
articular ontologia, subjetividade e linguagem, na tentativa de conjugar
filosoficamente theoria e praxis.
Outrossim, um tratado prático-teorético
é essencialmente uma investigação metaética, na medida em que trata de
conceitos, juízos e argumentos morais, de forma a tematizar questões semânticas
(do tipo “o que é o bem?”, “o que é certo e errado?”), ontológicas (“há fatos
morais?”), lógico-deônticas (“o que deve ser necessariamente inferido?”) e
epistemológicas (“o cognitivismo moral é possível?”).[9]
Neste sentido, o presente tratado segue um programa de investigação prático-teorética
inciado com o Tractatus ethico-politicus,
em sua proposta de traçar uma genealogia do ethos moderno, irredutível a uma
história natural do animal humano ou a uma doutrina moral abrangente,
teológica, antropológico-filosófica ou a quaisquer outras tentativas de
reformular uma metafísica prática.[10]
Trata-se, ademais, de revisitar a própria divisão da filosofia nos termos de
seus objetos de investigação --o verdadeiro, o bem e o belo; theoria, praxis e poiesis;
filosofia teórica, prática e estética. A emergência de novos termos para
designar disciplinas tais como a epistemologia moral e a metaética no século
XX, assim como a filosofia da linguagem e a filosofia da mente em filosofia
teórica, nos remete não tanto ao surgimento de novos objetos ou problemas
filosóficos quanto a novas maneiras de abordá-los, ou simplesmente a novas
perspectivas do filosofar. De resto, o presente tratado se propõe a retomar o
perspectivismo filosófico como uma nova maneira de fazer filosofia a partir das
perspectivas delimitadas por problemas de ontologia, subjetividade e
linguagem, sem preocupar-se com domínios pré-definidos, mas voltando-se antes para
questões diretrizes que subjazem à questão norteadora: “o que é, afinal, filosofia?”
O que determina a especificidade filosófica em nossas atuais reformulações de
problemas teóricos tradicionais, cada vez mais interdisciplinares e cuja
especificidade teórico-conceitual está constantemente colocada em xeque? A
nossa hipótese de trabalho consiste em refutar tanto o relativismo moral quanto
as posições mais ou menos dogmáticas adotadas por modelos cognitivistas (intuicionistas,
teleológicos, deontológicos e utilitaristas) em filosofia moral, através de uma
concepção semântico-transcendental do perspectivismo, capaz de efetivamente
realizar pela prática aquilo que tem sido tematizado em metaética e ética
normativa (por exemplo, pela adoção de políticas públicas, pela defesa e
promoção eficaz dos direitos humanos, pela regulamentação de princípios
bioéticos, da ecologia política e da ética aplicada em geral). É precisamente
pela conjugação correlativa das perspectivas de uma ontologia política, de uma
teoria normativa de pessoa e de uma hermenêutica pluralista da cultura política
democrática que o equilíbrio reflexivo, inerente a uma teoria rawlsiana da
justiça, pode nos guiar nesta empreitada de reconstrução de uma epistemologia
moral de forma a evitar as limitações inerentes a concepções tradicionais de
metaética e ética substantiva.
Com efeito, o campo
delimitado pela “epistemologia moral”, seguindo Robert Audi e outros filósofos
analíticos de língua inglesa, tem procurado dar conta do problema suscitado
pelo confronto entre questões de ontologia e linguagem e as mais recentes
elaborações de uma filosofia moral pós-metafísica, sobretudo a partir dos
trabalhos de G.E. Moore e A.J. Ayer em metaética e de B. Russell e L.
Wittgenstein em epistemologia, no início do século, e mais recentemente de R.M.
Hare, J. Mackie, W.V. Quine, D. Davidson, K. Lehrer, R. Audi, T. Nagel, S.
Blackburn, P. Railton e R. Campbell.[11]
O estado atual das pesquisas sobre epistemologia moral e metaética e sua
aplicabilidade em ética normativa, ética aplicada e filosofia política
divide-se entre aqueles que defendem uma concepção utilitarista ou
intuicionista do realismo moral em Kant (autores de língua inglesa, sobretudo
ligados aos trabalhos de Sidgwick, Ross, Hare, Audi e epígonos) e aqueles que seguem uma concepção
procedimentalista ou construtivista do anti-realismo na filosofia moral de Kant
(Rawls, Habermas, O’Neill, Pogge, Wood, Schneewind). A partir do segundo grupo
de autores, notavelmente após a publicação do livro seminal de Brink, vários
estudos têm procurado resgatar um modelo cognitivista em ética e filosofia
política, de forma a evitar os dilemas e aporias decorrentes da mera redução do
realismo ao intuicionismo ou da rotulação de falácia naturalista às abordagens
que operam um retorno pós-kantiano a Hume. O ceticismo e o não-cognitivismo em
moral têm se mostrado, com efeito, bem mais fecundos para o problema da moral
do que nos fazem crer os novos anti-fundacionismos modernos e pós-modernos.
Através de uma releitura da problemática articulação entre os legados de pensadores
tão diversos quanto Hume, Kant, Wittgenstein e Habermas, o presente tratado
procura mostrar em que sentido o construtivismo rawlsiano contribui para a
epistemologia moral e merece a denominação não-pejorativa de “uma deontologia
com face humeana”.
O nosso insight e ponto de partida programáticos
é o postulado rawlsiano do equilíbrio reflexivo, enquanto dispositivo
procedimental de representação capaz de articular o construtivismo político
entre os conceitos e princípios de uma teoria ideal e as nossas idéias
intuitivas sobre a justiça, o bem e o que é, afinal, moralmente aceitável, nas
mais diversas formas de vida, crenças e valorações expressas por um ethos ou um
modus vivendi qualquer, em nível de
uma teoria não-ideal. Assim como Kant e Marx antes dele, Rawls não toma como
pressuposto que há fatos morais, embora reconheça que grupos sociais concretos
compartilham juízos morais, mais ou menos ponderados ou resultantes da
deliberação e da reflexão morais. Mesmo que a socialização de indivíduos possa
explicar como se dá, em grande parte, tal processo de valoração ético-política,
o fenômeno de “seguir regras” num determinado contexto social não seria
redutível a meras constatações empíricas, como já sugeriu Wittgenstein, mas
prescinde de uma análise lingüístico-filosófica dos complexos jogos de
racionalidade que subordinam meios a fins.
Sem maiores pretensões
além de introduzir o leitor a problemas fundamentais de epistemologia moral, o
presente texto apresenta de maneira deliberadamente reconstrutiva problemas
paradigmáticos de ontologia, subjetividade e linguagem enquanto característicos
de três modos distintos de se pensar a relação entre ser, pensamento e
linguagem. A presente investigação pressupõe, portanto, uma pesquisa ético-política,
dentro da qual se insere e onde se visa uma tal articulação em um nível prático
(em contraposição ao teórico ou teorético, segundo o uso kantiano). Uma
perspectiva semântico-transcendental já
se encontrava, decerto, de forma ainda implícita em concepções reconstrutivas
de inspiração nietzscheana, heideggeriana e foucauldiana, contrastando com as
teorias analíticas de autores contemporâneos como Rawls e Habermas. De resto, o
termo “perspectivismo” é de inspiração tão nietzscheana quanto kantiana ou
husserliana, não devendo limitar-se a um uso estético-empírico ou meramente
fenomenológico-transcendental, assim como não poderia confinar-se a uma
abordagem analítica ou continental da filosofia política.[12] A guinada hermenêutico-analítica serve, neste
caso, para explicitar tal perspectivismo como sendo justamente
semântico-transcendental.
Introdução:
Tractatus - O perspectivismo transcendental enquanto hermenêutica
analítico-fenomenológica filosofia européia contemporânea
O primeiro capítulo
trata da relação entre teoria e prática à luz da recepção wittgensteiniana do
problema platônico do realismo, seguindo a teoria do atomismo lógico de
Bertrand Russell. O capítulo apresenta algumas reflexões acerca da teoria do
significado no primeiro e no segundo Wittgenstein, mostrando como o conceito de
jogos de linguagem no segundo implica uma forma de ceticismo quanto ao ato de
seguir uma regra. Assim como o primeiro Wittgenstein teria logrado uma Aufbau semântico-transcendental de
inspiração kantiana, o segundo Wittgenstein procede a uma verdadeira Abbau ou desconstrução de sua própria
teoria pictórica da linguagem, do mito da interioridade e do paradigma das chamadas
filosofias da consciência.
No
segundo capítulo, tratamos da relação entre teoria e prática, notavelmente à
luz da apropriação contemporânea que Rawls nos oferece da articulação entre uma
teoria ideal e uma teoria não-ideal, seguindo releituras de Platão e Kant.
Assim, o capítulo nos introduz definitivamente
na problemática fundante da teoria política, a saber, a de articular teoria e
prática como tarefa fundamental da filosofia:
No terceiro capítulo, investigamos
a concepção de comunidade, moralidade e religião nos escritos do jovem Hegel,
em particular na sua formulação da origem do cristianismo a partir da superação
(Aufhebung) do judaísmo, na
realização efetiva da liberdade humana a ser desenvolvida mais tarde em seus
escritos jurídico-políticos. Uma de minhas hipóteses de trabalho é de
reexaminar em que sentido a crítica hegeliana do contratualismo que resulta na
concepção de eticidade na Filosofia do
Direito pressupõe a concepção de comunidade religiosa de seus escritos de
juventude. Tal projeto é compatibilizado com o intento contemporâneo de buscar
alternativas teórico-políticas ao liberalismo como o procura fazer, por
exemplo, o comunitarismo.
comunitarismo, contratualismo, cristianismo, eticidade, judaísmo,
liberdade, moralidade, religião
O quarto capítulo
retoma a contribuição de Kant
a fim de desafiá-la, como o faz Hegel e seu modelo comunitarista
dialético, encontrando na historicidade e intersubjetividade social da
experiência humana o destino da liberdade na modernidade. Mostrar-se-á em que
medida Hegel permanece próximo do ideal de dever-ser kantiano, ao mesmo tempo
em que retorna a Aristóteles e rompe com o dualismo sensível-inteligível e com
a abstração do contratualismo.
No quinto capítulo,
retomamos a problemática delineada pelo ethos heraclítico, na sua mais radical
leitura não-dialética e não-cognitivista: o perspectivismo proposto por
Nietzsche e contraposto aos modelos cognitivistas liberais e comunitaristas. O
problema paradigmático da ética moderna pode ser, neste sentido, formulado pela
contraposição de Nietzsche a Kant e Hegel, assim como o perspectivismo
nietzschiano se opõe ao deontologismo kantiano e à dialética de reconciliação
hegeliana. Apesar de não propor nenhuma ética no sentido prescritivo de
normatividade, Nietzsche empreende uma crítica genealógica da modernidade de
forma a desvelar a correlação saber-poder na própria constituição do sujeito
moderno. O perspectivismo nietzschiano não apenas desmascara os interesses práticos inerentes a uma subjetividade cognoscente
mas revela ainda a historicidade e metaforicidade do sujeito que se constitui
por suas valorações do mundo humano.
Com Foucault e a genealogia da modernidade, o
sexto capítulo retoma o perspectivismo nietzschiano, na sua articulação entre
verdade e vontade de poder, a fim de demonstrar que há uma dimensão
ético-política inerente ao esteticismo desses autores. Apresentamos, assim,
algumas reflexões acerca da genealogia do sujeito moderno segundo Foucault,
enfocando particularmente a correlação entre verdade, poder e ética na
constituição de uma subjetividade destranscendentalizada. Através de suas
releituras de Kant e Nietzsche, Foucault desenvolve uma crítica a concepções
metafísicas da natureza humana e propõe uma genealogia da subjetividade de modo
a renovar questões de método em filosofia e nas ciências humanas, e reaproximar
o político do ético numa estética da existência.
No sétimo capítulo, reexaminamos a concepção política
de justiça defendida por Rawls à luz de sua contraposição a uma concepção
hobbesiana de justiça como vantagem mútua ou regramento de interesses, por um
lado, e de sua apropriação crítica do construtivismo procedimental kantiano
numa concepção de justiça como imparcialidade, por outro lado. Partindo da
constatação de uma continuidade entre a primeira formulação rawlsiana da
doutrina abrangente da justiça como eqüidade
Finalmente, o oitavo capítulo discorre sobre
Equilíbrio reflexivo e mundo da vida em Rawls e
Habermas universalismo modernista ético-político, enquanto modelo
deliberativo-participativo de democracia, que visa conciliar as virtudes dos
modelos universalistas liberais e comunitaristas socialistas sem os seus
respectivos vícios.
Partindo da concepção habermasiana de mundo da
vida, conforme sua apropriação crítica dos conceitos de Lebenswelt em Husserl e Lebensform
em Wittgenstein, procuramos mostrar em que medida Habermas dá conta da
fundamentação normativa de uma teoria crítica da sociedade ao propor uma
alternativa ao liberalismo político de Rawls e ao comunitarismo de
neo-aristotélicos, neomarxistas e neo-hegelianos, tais como MacIntyre, Elster e
Taylor. Encerramos, assim, nossa
odisséia conceitual com uma reformulação genealógica da Lebenswelt moderna. Através
dos inacabáveis debates entre liberais e comunitaristas, modernistas e
pós-modernos, universalistas e particularistas, chegamos à complexa situação de
multiculturalismo e pluralismo democrático que hoje presenciamos e com a qual
esperamos conviver cada vez melhor nos próximos séculos, em meio a tanta
miséria humana e apesar das crescentes exclusões e desigualdades sociais.
20th-Century European philosophy has been characterized by the return
to and critical appropriations of given strands of modern philosophy (notably
Cartesian rationalism, British empiricism, and German idealism, and especially
the lasting contributions by Descartes, Hume, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, and
Kierkegaard). It has been argued that the seminal works of Gottlob Frege and
other logicians and philosophers of mathematics led to the decisive emergence
of the analytical philosophy of language and the schools of phenomenology at
the threshold of the 20th century in
1. Filosofia anlítica, positivismo lógico e filosofia da linguagem:
G.E. Moore, B. Russell, L. Wittgenstein, G.E.M. Anscombe, G. Ryle, A.N.
Whitehead, R. Carnap, E. Cassirer, K. Popper, M. Schlick, O. Neurath, A.J.
Ayer, H. Albert, P. Strawson, J.L. Austin, J. Hintikka, M. Dummett, K.O. Apel,
E. Tugendhat, D. Henrich
2. Fenomenologia, Lebensphilosophie,
hermenêutica, existencialismo, pós-estruturalismo e desconstrução: E. Husserl,
W. Dilthey, H. Bergson, M. Heidegger, M. Scheler, K. Jaspers, J. Ortega y
Gasset, M. de Unamuno, M. Buber, F. Rosenzweig, K. Löwith, N. Hartmann, G.
Marcel, G. Bachelard, H. Plessner, A. Gehlen, N. Berdyaev, A. Camus, M.
Merleau-Ponty, J.-P. Sartre, E. Mounier, M. Foucault, E. Levinas, G. Bataille,
G. Deleuze, H.-G. Gadamer, P. Ricoeur, M. Henry, J.F. Lyotard, J. Derrida, G.
Vattimo, R. Schürmann, M. Frank, D. Janicaud, J.L. Nancy, P. Lacoue-Labarthe
3. Marxismo e filosofia social: A. Gramsci, G. Lukács, C. Schmitt, W.
Benjamin, T.W. Adorno, M. Horkheimer, E. Bloch, H. Arendt, L. Strauss, L.
Althusser, C. Lefort, C. Castoriadis, I. Berlin, J. Habermas, N. Bobbio, T.
Negri, O. Höffe, W. Kersting, A. Wellmer, A. Honneth, J. Baudrillard, J.
Elster, B. Barry, T. Pogge
4. Estudos culturais e de gênero, filosofia feminista,
filosofia da raça, psicanálise, estruturalismo, ambientalismo e estudos
interdisciplinares: S. Freud, C.G. Jung, F. de Saussure, J. Lacan, S. Beauvoir,
C. Lévi-Strauss, R. Barthes, S. Weil, H. Cixous, L. Irigaray, J. Kristeva, N.
Sarraute, S. Hall, P. Gilroy, C. Ruthner, W. Müller-Funk, A. Millner, E. Morin,
R. Major, M.M. Roberts, T. Mizuta, G. Pollock, G. Griffin, C. von Braun, E.
Sotelo, R. Bernasconi, P. Singer
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Habermas, Jürgen. Der philosophische Diskurs der Moderne.
Habermas, Jürgen, and Jacques Derrida. Philosophy in a time of Terror:
Dialogues with J. Habermas and J. Derrida, interviewed by Giovanna Borradori.
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West, David. An Introduction to Continental Philosophy.
Williams, Caroline. Contemporary French Philosophy. Continuum, 2001.
Apel Wittgenstein Heidegger
fenomenologia e filosofia analítica
A guinada lingüístico-pragmática em filosofia política
Mundo da vida, fenomenologia e filosofia analítica
Problemas analítico-hermenêuticos
A presentação do mundo
Trata-se de
responder à mais fundamental e abrangente questão filosófica através de
tratados, que tratam de ontologia, subjetividade e linguagem. Em se tratando de
problemas de metafísica e ontologia, ética e filosofia política, estética e
filosofia da religião, cada tratado mantém a especificidade de sua
investigação, ao mesmo tempo em que nos remete a um perspectivismo
semântico-transcendental capaz de explicitar a especificidade filosófica de
tais investigações.
A fim
de respondermos à questão “o que é perspectivismo?”, devemos articular questões
de ontologia, subjetividade e linguagem com domínios e disciplinas específicos
da filosofia, o que também nos remete inevitavelmente à questão “o que é
filosofia?” Numa abordagem de epistemologia moral, é mister situarmos o objeto
de nossa investigação com relação a tais domínios da filosofia. Embora haja uma
tendência, desde os chamados pré-socráticos até os nossos dias, a aproximar a
filosofia da arte, da ciência ou da religião, a filosofia não se deixa reduzir
a nenhuma delas, embora tenha sempre influenciado e sido influenciada
diversamente por todas elas. Etimologicamente, como é bem conhecido de todos, a
palavra “filosofia” (do grego philo +
sophia) significa “amor à sabedoria”
ou “amizade ao saber”, na medida em que os primeiros filósofos gregos buscavam
conhecer cada vez melhor a si mesmos e o mundo que os cercava. Assim, a
filosofia se apresenta como um questionamento radical acerca da realidade
última das coisas: o ser, os entes, a verdade, o bem, o belo, o eterno. Por
isso mesmo, historicamente, as primeiras investigações filosóficas se
confundiam com os primeiros questionamentos sobre a natureza (physis) do universo: a terra, a água, os
céus, os corpos celestes, o fogo, o repouso, o movimento, as mudanças de
estações e a repetição de fenômenos (como os eclipses, as estações etc). Até a
emergência da ciência moderna com Copérnico, Galileu e Newton nos séculos XVI e
XVII, a filosofia da natureza se ocupava do mesmo objeto de investigação da
própria ciência da época. Por outro lado, desde Homero, os poetas trágicos e
líricos, havia nas teogonias e cosmogonias um forte elemento mítico-religioso
que seria pouco a pouco desconstruído pela filosofia, mesmo quando mantinha uma
identificação mais próxima à arte e literatura. A problemática relação entre
arte e ciência só pode ser compreendida à luz das transformações filosóficas
dos termos “techne” (arte) e “episteme” (ciência), sobretudo a partir de Platão
e Aristóteles. Grosso modo, podemos dividir os grandes domínios e objetos de
estudo da filosofia em 5 áreas distintas:
1. Metafísica, Ontologia
2. Lógica, Epistemologia, Filosofia da Linguagem, Filosofia da Ciência
3. Ética e Filosofia Política
4. Estética
5. Filosofia da Religião
5. A filosofia da religião trata do divino, do sagrado, da divindade e de suas
manifestações através da religião. Os problemas da fé, do misticismo, do
absoluto, da alteridade, da imortalidade da alma e da morte são aqui
tematizados.
metaética
epistemologia moral
Davidson
Dorothea Frede, “Disintegration
and restoration: Pleasure and pain in Plato’s Philebus”, in The Cambridge
Companion to Plato, ed. Richard Kraut. Cambridge University Press, 1992. 425-463.
459
n. 16: Davidson conclui que o Philebus marca a renúncia definitiva de Platão de
recorrer à dialética para dar conta da incomensurabilidade entre conhecimento e
prazer. Interessantemente a discussão sobre a fraqueza da vontade (desde
Aristótele denominado o problema da akrasia),
i.e. de agir contra aquilo que se considera o melhor ou o bem a ser
racionalmente seguido. A posição socrática seria de que alguém somente erraria
moralmente por ignorância, enquanto Platão (dos diáologos intermediários e
tardios) parece conceder que há partes conflitantes em nossa alma que
dificultam a vida virtuosa, o que exige bastante aiskesis, exercício
espiritual, práticas e hábitos morais. diferente da motivação, por ex, em Kant,
onde a vontade é que é determinante e não apenas o conhecimento (cognição
moral), como em Platão. p. 134
Em
seu prefácio
Tratados
de filosofia semântico-transcendental
Perspectivismo Semântico-Transcendental
Introdução a
problemas de metaética e epistemologia moral
A questão da diferença entre
uma abordagem descritiva e uma abordagem prescritiva é tematizada pela
epistemologia enquanto teoria do conhecimento numa perspectiva que tem sido
identificada como sendo “normativa” em oposição à “naturalista” ou “naturalizada”,
seguindo o polêmico projeto de Willard Von Quine de naturalizar a epistemologia
(epistemology naturalized).[13] Um
outro pensador de Harvard, John Rawls, revisitou em sua filosofia prática o
papel fundamental da teoria, partindo desta mesma problemática empirista pela releitura
pós-kantiana de David Hume, assim como o filósofo alemão Jürgen Habermas
radicalizou, por sua vez, a teoria crítica pela reformulação da racionalidade
prática após sucessivas querelas positivistas e pós-empiristas. Tanto Rawls
quanto Habermas testemunharam no final do século XX a tremenda crise por que
passara a aparentemente segura e tranqüila dicotomia neokantiana que, no início
do mesmo século, contrapunha a epistemologia à moral assim como a modelos
cognitivistas e não-cognitivistas de teoria e normatividade que meramente
ressuscitavam as supostamente superadas querelas entre racionalistas e
empiristas no início da modernidade clássica. Com efeito, as mais variadas
tradições de filosofia analítica e continental no século XX acabariam por
voltar ao problema kantiano da “terceira via” com relação à primazia acordada à
razão ou à experiência na formulação de uma teoria do conhecimento e de uma
filosofia da ação. Stein Husserl
Heidegger Todavia não creio que seria questão aqui de tomar partido por uma
tradição, por exemplo, oriunda do idealismo alemão, em oposição ao racionalismo
cartesiano ou ao empirismo britânico.
Antes mesmo de Immanuel Kant
haver consagrado tal diferenciação e o sentido propriamente filosófico da razão
prática em sua contraposição à razão teórica, encontramos a expressão em
autores modernos de língua inglesa e francesa, em seus respectivos modelos de
argumentação empiristas e racionalistas. Segundo Lewis White Beck, o termo
kantiano “praktische Vernunft”
remonta a 1765, embora a expressão inglesa “practical
reason” já houvesse sido empregada por Richard Burthogge em 1678,
assim como encontramos
Por “epistemologia moral”
entendo aqui o campo demarcado pelas questões de justificação epistêmica Sosa.
perspectivismo transcendental filosofia continental e filosofia analítica da
linguagem Karl-Otto Apel
Hume
outro lado, é da filosofia tout cout que ele trata, pois todo
tratado filosófico é, direta ou indiretamente, prático-teorético, dependendo da
maior ou menor articulação entre questões de ontologia, epistemologia e
linguagem. Pensamos imediatamente em autores como Wittgenstein ou Quine, mas
não seria menos pertinente atribuirmos a pensadores como Spinoza, Marx e
Heidegger a lograda tarefa de pensar o ser e como dizê-lo. De resto, é neste
sentido que podemos entender a ética, por exemplo, enquanto tarefa fundamental
do pensamento. Dizer que há algo --coisas, objetos concretos ou abstratos-- nos
remete desde sempre ao problema do realismo platônico e suas diferentes versões
e problematizações de anti-realismo. Assim como o verdadeiro, o bem e o belo, podemos tomar o objeto do
pensamento sobre a sociabilidade, o poder e as relações e instituições
coercitivas enquanto algo ainda por ser investigado, determinado, objetivado
numa meditação tão metafísica e com tanta pretensão de superação da metafísica
quanto uma meditação cartesiana, husserliana ou habermasiana. Afinal, pensar o
político é dizer o que é e o que deve ser o político. Pensar, isto é, enunciar,
discorrer sobre, tratar da relação entre teoria e prática. Portanto, theoria e praxis sempre foram e permanecem hic et nunc a questão filosófica por excelência, irredutível a um
domínio específico da filosofia --para antigos e modernos. Talvez seja esta tão
modesta quanto audaciosa contribuição uma versão inaudita de anciennes querelles (sua implícita
pretensão), mesmo assim repetindo algo que foi dito ou pensado, daí a
repetição, a remise en scène de
querelas de anciens e modernes.
Ontologia Social, Subjetividade e Linguagem
Perspectivismo Transcendental
Pensar a diferença entre ser e dever-ser, assim como
entre vita contemplativa e vita activa, theoreticus e practicus
--para além de toda proposta de Aufhebung
dialética,-- eis-nos aqui diante de nossa nobre vocação, a do espanto malgré tout, a despeito de infindáveis
possibilidades de leituras, interpretações, voire
traições de tradições, do grego ao latim, mas também do hebraico ao grego.
Pensar a correlação intersubjetividade e linguagem de a contribuir para
estabelecer a especificidade do político, e em que medida este é independente
da moral ou anterior a esta. Cf Tractatus ethico-politicus. Outrossim, ao
tratar de questões em torno do complexo correlato de teoria e prática
resgata-se um sentido fundamental, a saber, o da própria crítica à metafísica
da fundamentação. Aristóteles, ética e
de filosofia política, toda investigação conceitual termina por tratar também
da não menos problemática questão acerca da natureza humana.
Assim, retornamos ao triângulo clássico que
articula, num mesmo espaço discursivo, antropologia filosófica, ética e
filosofia política.
Revisitar constante e sistematicamente a idéia
diretriz do tractatus traduz e trai,
na verdade, uma nova proposta de fazer filosofia, una nueva manera de hacer filosofía, subjacente a este breve
tratado introdutório de epistemologia moral e ao projeto mais amplo e ambicioso
da trilogia, de estabelecer o perspectivismo transcendental como tomada de
posição metodológica e mathesis
universalis, por mais paradoxal que possa parecer. Num terceiro momento,
com efeito, é tematizada a problemática da contradição performativa inerente à
superação definitiva do paradigma metafísico ou onto-teológico da filosofia.[16] Este é, de resto, o problema por excelência de
toda tentativa de resolver o problema semântico da filosofia da linguagem, sem
recorrer a uma lógica transcendental nem a suas alternativas naturalistas e
semióticas transcendentais. Neste sentido, um tratado de epistemologia moral
mostra por que a crise de paradigmas das ciências sociais revela um problema
maior e mais complexo dentro da própria reflexão filosófica sobre a ciência e o
progresso da tecnologia, notavelmente na filosofia e história da ciência. Apel
Assim como foi abordada, no primeiro Tractatus, a articulação entre natureza
humana, ética e política, procura-se retomar aqui uma “história de problemas”, Problemgeschichte, das oposições entre
ontologia, consciência moral e linguagem e seus paradigmas propostos por
modelos clássicos, modernos e contemporâneos de filosofia. O legado de
problematizações em questão é o que motiva as mais importantes produções
teóricas na primeira e segunda metades do século XX, assinadas por Ludwig Wittgenstein,
Martin Heidegger, John Rawls e Jürgen Habermas. Assim como Rawls dificilmente
poderia ser percebido como um herdeiro de Wittgenstein ou Habermas com relação
a Heidegger, a transformação operada pela indiferença com relação ao método
lingüístico-analítico no primeiro caso e a sutil reapropriação de temas
hermenêutico-fenomenológicos no segundo confirmam a suspeita de que a oposição
entre as chamadas filosofias analíticas e continentais se dissolve na
transubstanciação da própria filosofia do século XX em algo quimérico no século
XXI. Como bem observou Richard Rorty, a guinada lingüística é um movimento
inacabado, tanto em filosofia analítica quanto em fenomenologia e hermenêutica,
como podemos inferir da recepção da filosofia da interpretação e da ação de
Donaldo Davidson com relação a Wittgenstein, assim como na desconstrução de
Jacques Derrida com relação a Heidegger.(Companion to Heidegger)
Capítulo
Um
Significação
do Mundo: Da semântica transcendental do Tractatus
à
desconstrução do significado nas Philosophische
Untersuchungen de Wittgenstein
“Skeptizismus ist nicht
unwiderleglich, sondern offenbar unsinnig, wenn er bezweifeln will, wo nicht
gefragt werden kann”. (T 6.51)
“O ceticismo não
é irrefutável, mas manifestamente um contra-senso (unsinnig), se pretende duvidar onde não se pode perguntar.” (T 6.51)
“Ist es aber eine genügende Antwort auf die Skepsis der Idealisten oder
die Versicherungen der Realisten: ‘Es gibt physikalische Gegenstände’ Unsinn
ist? Für sie es doch nicht Unsinn”. (UG 37)
“Mas seria uma resposta adequada à skepsis dos
idealistas ou às seguranças dos realistas dizer que “há objetos físicos” é um
contra-senso (Unsinn)?Afinal, para
eles não é contra-senso.” (UG 37)
Antes de mais nada, consideremos um
problema de terminologia: “contra-senso”, seguindo Luiz Henrique Lopes dos
Santos (cf. Tractatus 4.003, 6.51),
traduz em português o substantivo Unsinn
(em inglês nonsense) e sua forma
adjetivada unsinnig (non-sensic), equiparando-o a Widersinn. A concepção de Bedeutung (significado, significação) em
Wittgenstein deve ser, assim, contrastada com a de Frege, por um lado, e a de
Husserl, por outro.2 Segundo Frege, as duas expressões “1+1+1+
Nas suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein explora entre outros
problemas, os conceitos de significado e compreensão (“Den Begriff der
Bedeutung, des Verstehens” Prefácio ix). O problema da “linguagem privada”
constitui igualmente um dos mais importantes temas lingüísticos analisados pelo
“segundo” Wittgenstein nas Investigações
(PU §§ 243 ss). Entre as passagens mais
intrigantes que tratam dos conceitos de significado e compreensão em conexão
com o argumento da “linguagem privada” estão as duas situações no § 293 (a
minha dor/o meu besouro; a dor/o besouro de outrem). Apesar de nenhum destes
conceitos ser explicitamente articulado neste parágrafo, ambos são supostos
para “saber o que a palavra ‘dor’ significa” ou o que é designado por “besouro”
(Käffer). Segundo Kripke, o
verdadeiro argumento da linguagem privada se encontra nas seções que precedem o
§ 243 --e não nas que o sucedem, como reza a tradição-- em particular do § 143
ao § 242, onde é discutido o chamado “paradoxo cético”. As seções seguintes
seriam apenas uma aplicação do argumento ao caso especial das sensações. A
conclusão do argumento da linguagem privada encontra-se assim enunciada no § 202:
“Eis porque “seguir a regra”
é uma prática. E acreditar seguir a
regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’;
porque, senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra”.
Segundo Kripke, a problemática que
permeia essas seções é essencialmente cética. O “paradoxo cético” do § 201
constitui, para Kripke, o “problema central” das Investigações:
“Nosso paradoxo era: uma
regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria
estar em conformidade com a regra. A resposta era: cada modo de agir deve estar
em conformidade com a regra, pode também contradizê-la. Disto resultaria não
haver aqui nem conformidade nem contradições”.
Segundo Kripke, Wittgenstein nos
propõe uma “solução cética” à
“A questão ‘o que é
realmente uma palavra?’ é análoga a ‘o que é uma peça de xadrez?’“ (§ 108)
“Mas como é estabelecida a
ligação entre o nome e o denominado? A questão é a mesma que: como um homem
aprende o significado dos nomes de sensações? Por exemplo, da palavra ‘dor’.” (§
244)
Jogos de linguagem implicam,
portanto, um contexto prático onde o significado é determinado pelo uso de
signos. A fim de compreendermos a concepção de significado no “segundo”
Wittgenstein, partiremos da sua crítica a três concepções errôneas que tendem a
identificar a significação com um processo mental, com uma interpretação
particular e com a formulação de razões pelas quais seguimos uma regra. Como
veremos, é precisamente neste terceiro ponto que Kripke rompe com a leitura que
McGinn e Baker & Hacker nos oferecem das Investigações.
Tese 1: O
significado não é um processo mental.
“Não pense, pelo menos uma vez, na
compreensão como ‘processo mental’/’anímico’ --Pois este é o modo de falar que o confunde. Mas pergunte-se: em que
espécie de caso, sob que espécies de circunstâncias dizemos, pois, ‘agora sei
continuar’? Quero dizer, quando a fórmula me veio ao espírito. No sentido em que
há processos (também processos anímicos) característicos da compreensão, a
compreensão não é um processo anímico. (A diminuição e o aumento de uma
sensação de dor, a audição de uma melodia, de uma frase: processos anímicos)”.(§
154)
“O ter-em-mente [Das
Meinen] não é nenhum processo que acompanha essa palavra. Pois nenhum processo poderia ter as conseqüências do
ter-em-mente”. (p. 218/211)
Tanto Kripke como McGinn consideram
esta primeira tese negativa como a mais convincente e a mais evidente de todas
as três. As Investigações começam,
afinal, com uma crítica à gramática agostiniana do vellent ostendere precisamente porque tal concepção mentalista do
significado confunde o “que é significado” com acompanhamentos experienciais
que podem ocorrer ou não na constituição do significado. Assim, o desenho de um
cubo pode me vir ao espírito quando ouço a palavra “cubo” mas não tem de
ocorrer (§ 139). E Wittgenstein conclui,
“E o essencial, pois, é ver
que, ao ouvir a palavra, o mesmo pode pairar em nosso espírito e que sua
aplicação, no entanto, pode ser outra. E tem, então, a mesma significação em
ambas as vezes? Creio que o negaríamos”. (§ 140)
Obviamente, Wittgenstein rejeita a
metafísica da Innerlichkeit (o “homem
interior”
Tese 2: O
significado não é uma interpretação particular. “Como pode uma regra
ensinar-me o que fazer neste momento?
Seja o que for que faça, deverá estar em conformidade com a regra por meio de
uma interpretação qualquer. --Não, não deveria ser deste modo, mas sim deste:
cada interpretação, juntamente com o interpretado, paira no ar; ela não pode
servir de apoio a este. As interpretações não determinam sozinhas a
significação”. (§ 198)
Segundo Kripke, este parágrafo
pertence ao contexto do que Wittgenstein denomina “nosso paradoxo”, a saber,
que “uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir
deveria estar em conformidade com a regra”.(§ 201) Ao contrário do uso
ostensivo da linguagem associado ao “olhar interno” agostiniano que revela o
que permanece “escondido” em camadas profundas de significação, Wittgenstein
solapa toda eficiência essencial (praesentia)
de significados que subjazem aos cursos de ações. A alusão ao “corpo de
significação” (Bedeutungskörper) no §
559 corrobora a autocrítica do “segundo” Wittgenstein com relação ao Tractatus. Se a interpretação fosse
entendida como “a substituição de uma expressão da regra por outra”(§ 201),
então poderíamos ter assimilado a ação de “ler” uma escrita desconhecida à sua
mera transliteração em caracteres conhecidos (por exemplo, do hebraico em letras
latinas). Assim, dependendo da equivalência fonética adotada, poderíamos emitir
os sons correspondentes a um sistema de escritura desconhecida sem
compreendermos o sentido de tal escritura. O que é questionado aqui é
precisamente que uma transliteração seja suficiente para a constituição de
significado.
De fato, Wittgenstein não estaria
preocupado, neste exemplo, com a compreensão do que está sendo lido, mas com o
fenômeno de seguir regras que permitam a produção de significado na leitura de
uma escritura que não seja imediatamente reconhecida. Assim, se alguém
pronunciasse ou cantasse “hineh mah tov
u-mah nayim”, seria insuficiente traduzir tal expressão do hebraico para o
português “como é bom e agradável”, como se tal tradução ou interpretação bastasse
para explicar a constituição de seu significado. Afinal, “traduzir de uma
língua para outra”, seria mais um jogo de linguagem, como “comandar e agir
segundo comandos, relatar um acontecimento, inventar uma história, cantar uma
cantiga, fazer, uma anedota, pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar”.(§ 23)
Sem dúvida, esta também seria a razão pela qual pessoas bilíngües podem
naturalmente mudar de uma língua para outra sem recorrer a traduções na sua
mente. Na verdade, tanto a tradução como a interpretação já pressupõem a
produção de significado. Assim, Wittgenstein enfatiza que a tradução e a
interpretação sempre implicam o ato de pensar, formando uma hipótese acerca da
melhor maneira de traduzir um signo de tal forma a ser compreendido (p. 213). O
significado é constituído de um modo prático tal que não pressupõe nenhuma
teoria, mas apenas requer prática e envolvimento em jogos de linguagem. A
constituição de significado deve ser compreendida como uma expressão de regras
que tacitamente seguimos ao participarmos de certos jogos de linguagem.
Todavia, a necessidade implicada no ato de seguir uma regra (isto é, que uma
regra determina uma linha de ação) não é uma premissa lógica mas algo a ser
paradoxalmente encontrado no final, uma vez consumada a ação que produz
significado.
Tese 3: Seguir
uma regra não se fundamenta em razões.
“Seja como for que você o ensine a continuar a faixa
decorativa, como pode ele saber como
fazê-lo por si próprio? --Ora, como eu
sei? --Se isto significa: ‘tenho razões?’, então a resposta é: logo não terei
mais razões. E agirei então sem razões”. (§ 211)
Não há nenhuma razão fundamental
pela qual alguém segue uma regra ao usar certas palavras para exprimir um
pensamento, comunicar-se com alguém, dizer um palavrão ou pedir um favor. Por
exemplo, por que será que dizemos “obrigado” ao agradecer alguém por ter-nos
feito um favor ou simplesmente cumprido com o seu dever? Por que chamamos a cor
vermelha de “vermelho”? Segundo Wittgenstein, “quando sigo uma regra não
escolho. Sigo a regra cegamente”.(‘
219) Para Kripke, é aqui que devemos situar o contexto imediato do “paradoxo
cético” wittgensteiniano, a saber, que nenhum fato pode constituir um
significado em detrimento de um outro significado. O que é paradoxal acerca
disto reside na força da regra que alguém tacitamente obedece ao constituir tal
significado. Assim, quando solicitado para calcular ‘68 +
“A questão não é que se eu quis dizer adição com ‘+’,
eu responderei ‘125’, mas que se quiser concordar com meu significado no
passado de ‘+’, eu devo responder ‘125’.
...A relação do significado e da intenção com a ação futura é normativa, e não descritiva”.[9]
A argumentação de Kripke está
baseada no que Wittgenstein denominaria “gramática do compreender” (das Verstehen, cf. ‘‘ 180 ss.). Por
exemplo, como perguntaríamos a um estudante se ele compreendeu a série de
números naturais 0,1,2,3,4,5,... (cf. § 145) segundo um ordenamento do tipo ‘+
“Pois dizemos que não há
nenhuma dúvida de que compreendemos esta palavra, mas, por outro lado, que sua
significação reside no seu emprego. Não há dúvida de que agora quero jogar
xadrez; mas o jogo de xadrez é este jogo devido a todas as suas regras (e assim
por diante). ...Onde é feita a ligação entre o sentido das palavras ‘joguemos
uma partida de xadrez!’ e todas as regras do jogo? Ora, nas instruções do jogo,
na lição de xadrez, na prática diária do jogo [in der täglichen Praxis des Spielens]”. (§ 197)
Imediatamente após, Wittgenstein
levanta a questão de relacionar a “expressão da regra” (der Ausdruck der Regel) a ações (Handlungen), por exemplo, o modo particular como alguém reage a um
certo signo. Wittgenstein não está primariamente preocupado com conexões
causais mas com o “uso regular” (ständige
Gebrauch) de sinais, seu uso comum ou costume (Gepflogenheit). Assim, ele procede para problematizar o conceito de
“regramento” como costume em função de uma prática privada:
“O que chamamos ‘seguir uma
regra’ é algo que apenas uma pessoa
pudesse fazer apenas uma vez na vida?
--E isto é, naturalmente, uma anotação sobre a gramática da expressão ‘seguir a regra’... Compreender uma frase
significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa
dominar uma técnica”. (§ 199)
Para Kripke, a conclusão de
Wittgenstein acerca da impossibilidade de obedecer uma regra privadamente
significa que o argumento da linguagem privada deve ser encontrado nas seções
que precedem o § 243 --onde é explicitamente discutido o uso privativo da
linguagem. McGinn acusa Kripke de forçar tal leitura do texto de Wittgenstein,
impondo-lhe significações que não constam na superfície, em particular quanto à
solução cética ao paradoxo do § 201. Acima de tudo, escreve McGinn, o § 202 não
pode constituir o argumento conclusivo empregado por Wittgenstein contra a
possibilidade de linguagem privada. McGinn não descarta a importância de uma
interpretação comunitária mas critica Kripke por reduzir a problemática das Investigações ao uso comunitário da
linguagem.
À guisa de conclusão, creio que
McGinn, assim como o fizeram Baker e Hacker, oferece boas razões para
suspeitarmos o que Kripke denomina “a nova forma de ceticismo” supostamente
inventada por Wittgenstein, o chamado “ceticismo de regra” (rule skepticism). Afinal, torna-se
difícil separar tal versão de ceticismo de um ceticismo metodológico humiano,
conforme o rapprochement elaborado
pelo próprio Kripke. O maior mérito do artigo de Kripke, além de dissipar a
suspeita de behaviorismo nas Investigações,
consiste em haver articulado o problema da significação com o ato de seguir
regras num mesmo nível lingüístico que solapa a metafísica do sujeito
transcendental do Tractatus.[10]
Teríamos de passar aqui a um exame mais cuidadoso do argumento da linguagem
privada e dos problemas do solipsismo e da oposição entre Darstellung e Vorstellung,
tais como figuram no Tractatus e em
que proporção são resolvidos nas Investigações.
Se realmente existe algo como uma “ruptura epistemológica” entre o “primeiro
Wittgenstein” e o “segundo”, ou de forma mais precisa, entre a teoria do
significado no Tractatus e sua
reformulação crítica nas Investigações,
esta “mudança de paradigma” é assinalada pelo próprio autor na sua crescente
insatisfação face a teorias referenciais logicistas, em voga desde as
publicações de Frege e Russell. Sem incorrer numa reconstituição genética do
desenvolvimento de tais concepções, assinale-se apenas que o abandono do
atomismo lógico não traduz, necessariamente, uma ruptura com uma teoria do
significado no “segundo Wittgenstein”. Embora rompendo com uma concepção
figurativa da linguagem, a concepção do significado como uso, nas Investigações, pode implicar por um lado
uma correlação entre lógica e ontologia e, por outro lado, uma atitude cética
de ordem prático-regulativa. Creio, portanto, que já no Tractatus encontra-se antecipada a concepção tardia do significado
como uso, embutida na crítica que Wittgenstein empreende a Frege e a Russell.
Numa das suas ilustrações mais
conhecidas (PU Parte II, xi, p. 194/189), Wittgenstein reproduz a figura da “cabeça
PC”, o pato-coelho (duckrabbit) de
Jastrow, para ilustrar sua concepção de descrição (Beschreibung). O contexto imediato é obviamente o da gramática do
verbo “ver”. Mas no contexto maior, da investigação filosófica sobre a
significação, trata-se de mostrar como “ver”--assim como “saber” e “crer”-- não
poderia fundamentar a descrição na constitituição do significado e de sua
compreensão --em particular na relação entre sujeito cognoscente e o chamado “mundo
exterior.” Afirmar que sei ‘p’ no sentido de que vejo ‘p’ não seria mais
evidente, apesar de aparentarmos ‘saber’ e ‘ver’ e opormos ‘saber’ e ‘crer’, ao
nosso senso comum do que afirmar que sei ‘p’ no sentido de que creio ‘p’.
Trata-se do paradoxo de Moore, que Wittgenstein assim o enuncia:
“A expressão ‘creio que isto
está assim’ [ich glaube, es verhalt ist
so/ I believe that this is the case]
é empregada de modo semelhante à afirmação ‘isto está assim’; e contudo a suposição de que creio que isto está
assim não é empregada do mesmo modo que a suposição de que isto está assim”.(p.190/185)
Afinal, como afirma no mesmo
capítulo, “podemos desconfiar dos próprios sentidos mas não da própria crença”.
Chegamos assim ao contexto da discussão sobre a prova do mundo exterior, que
Wittgenstein questiona nas Investigações
e nas anotações Sobre a Certeza.
Comecemos pela figura de Jastrow. O que tem de interessante, à primeira vista,
é que “pode-se vê-la como cabeça de lebre ou como cabeça de pato”, dependendo
da experiência visual (Seherlebnis)
daquele que a percebe. A discussão imediata gira em torno da experiência de “notar
um aspecto” (das Bemerken eines Aspekts).
Wittgenstein observa que a mesma figura pode suscitar diferentes
interpretações, dependendo de como a vemos em diferentes contextos: “podemos
também ver a ilustração ora como uma,
ora como outra coisa. --Portanto, nós a interpretamos e a vemos como a interpretamos”.(193/188)
O que nos aparece como “algo”, nossa primeira palavra de identificação
intuitiva, na percepção imediata de uma lebre, um coelho, um pato, ou uma coisa
engraçada, este parente mais próximo da descrição, antes mesmo de descrevê-lo
como jogo de linguagem ou algum tipo de brincadeira. “O que é isso?” ou “o que
você vê aí?” parece exigir, num contexto de vivências cotidianas, uma descrição
do que percebemos. Antes mesmo de identificá-lo como “uma figura L”, a
possibilidade de responder “uma cabeça de lebre” ou “uma cabeça de coelho”,
mais do que um problema de tradução (Hasen/rabbit/hare), implica uma pré-imersão no mundo de significações, inclusive
as socialmente constitutivas.
Sem incorrermos num reducionismo
mentalista (por exemplo, “vi um coelho porque tive um coelhinho quando criança”),
devemos ainda admitir que o que vemos depende de nosso “horizonte de
expectativas”. Wittgenstein parece ter em vista não tanto uma “descrição
indireta” posterior à interpretação quanto uma descrição do que é visto
imediatamente, uma experiência espontânea da visão. Todavia, se alguém
retrucasse: “O que é que eu devo ver aí?”, serei obrigado a explicar as regras
do jogo e falar das duas possibilidades: “cabeça de lebre” e/ou “cabeça de pato”.
Poderei até mesmo propor que uma terceira possibilidade, “a cabeça L-P”, seria
a partir de então incorporada ao nosso imaginário cotidiano, e assim por
diante. Devemos também distinguir entre a “visão permanente” de um aspecto e a “revelação”
de um aspecto. Percebo as mudanças de aspectos:
“Mas o que é diferente:
minha impressão? Meu ponto de vista?--Posso dizê-lo? Descrevo a mudança como uma percepção, exatamente como se o objeto
tivesse se alterado diante dos meus olhos”. (193/190)
Suponha que duas figuras me sejam
mostradas, uma com a cabeça L-P cercada de cabeças de pato, outra cercada de
cabeças de lebre. Como poderíamos, antes de mais nada, diferenciar estas duas
situações imaginárias?
“Imagine a cabeça L-P
escondida sob um emaranhado de traços. Primeiro, noto-a na figura, aliás,
simplesmente como cabeça de lebre. Depois, olho a mesma figura e noto as mesmas
linhas, mas como pato, e nisto não preciso ainda saber que ambas as vezes
tratava-se da mesma linha. Se, mais tarde, vejo o aspecto mudar, --posso dizer
que aí o aspecto L e o aspecto P são vistos de modo inteiramente diferente do
que quando os reconhecera no emaranhado de traços? Não”. (199/193)
Devemos, finalmente, concluir que
seria equívoco dizer que o que vemos é o que cremos ver. O contexto parece
exigir que apenas vejamos o que nos aparece, sem nenhuma conexão com o problema
de crer ou saber --mesmo se alguém exclamasse “eu já sabia que era a figura L-P”
ou “eu já conhecia este jogo!” Não se trata, em última análise, de uma
diferenciação de estados mentais entre sujeitos que questionam a exterioridade
do mundo e suas representações, mas para além do solipsismo metafísico de toda
subjetividade trata-se de suspender todo e qualquer juízo sobre a interioridade
do sujeito. Isso é corroborado com a analogia entre o significado do que
falamos e representamos e a apresentação prática do que vivemos-- por exemplo,
a apresentação (Darstellung) do que é
visto (198/192).
Finalizando com a questão do
ceticismo no “segundo” Wittgenstein, encontramos em UG exemplos que ilustram a
mesma gramática da apresentação, tais como “Todo corpo é extenso” ou “a água
ferve a 100 oC”, que não dizem nada no sentido de constituir uma
asserção descritiva de um estado de coisas (Sachverhalt)
mas ajudam-nos a notar (bemerken)
algo. Também aqui o contexto é o da prova do mundo exterior, como atestam as
notas tomadas por Norman Malcolm, quando da estadia de Wittgenstein na sua casa
no estado de Nova York em 1949.[11] O ensaio de G.E. Moore sobre a prova do
mundo exterior, considerado por Wittgenstein o seu melhor artigo, inspira toda
a argumentação sobre a Certeza: “Se
tu sabes que aqui está uma mão, nós te concedemos todo o resto”(Wenn du weißt, daß hier eine Hand ist, so
geben wir dir alles Übrige zu).[12] Se para Kant a prova do mundo exterior
não tem sido alcançada pela filosofia (KrV
B xxxix) e permanece um artigo de fé, para Moore nós podemos ao contrário
saber/conhecer um número de proposições que não podemos provar, partindo de
premissas verdadeiras, que são tacitamente evidenciadas pela constatação
daquilo que todo mundo sabe ou reconhece, como senso comum. Contudo, como
observou Jaakko Hintikka, “Moore não está provando tanto a existência do mundo
exterior quanto mostrando que possuímos de fato um conceito impecável de
existência aplicável a mãos, cadeiras, casas e outros ‘objetos exteriores’
triviais”.[13] A passagem, portanto, de “eis uma mão” a “mãos existem” não pode
ser logicamente formalizada --seria impossível inferir ‘(Ex)P(x)’ de ‘P(a)’.
Assim, quando Wittgenstein associa a matemática a jogos de linguagem consistindo
de axiomas, teoremas, provas, operações, regras de inferência, etc., é o mesmo
problema de seguir uma regra que nos impede de dissociar realidade e
linguagem.[14] Contra a lógica da subjetividade metafísica, contra idealistas,
solipsistas e realistas (PU ‘ 402), Wittgenstein opera uma verdadeira suspensão
da representatividade pela apresentação das formas de vida que permitem ao
cético manter o significado da existência de objetos físicos sem contra-senso.
N O
T A S
Abreviaturas das obras de Ludwig Wittgenstein citadas:
PU = Philosphische Untersuchungen
T = Tractatus
Logico-Philosophicus
UG = Über Gewißheit
PG = Philosophische Grammatik
PB = Philosophische
Bemerkungen
Além destes na Werkausgabe
em 8 volumes (Frankfurt: Suhrkamp, 1985), foram consultadas traduções da PU (em
português, José Carlos Bruni, Os
Pensadores; em inglês, D.F. Pears e B.F. McGuinness; em francês, Pierre
Klossowski), do T (Luiz Henrique Lopes dos Santos, G.E.M. Anscombe, Pierre
Klossowski) e do UG (G.E.M. Anscombe e G.H. von Wright, Jacques Fauve).
2.
Cf. Gottlob FREGE, Begriffeschrift (trad. Os Pensadores); Edmund HUSSERL,
Logische Untersuchungen.
3. Cf. M. HEIDEGGER, Einführung in der Metaphysik. Mesmo
cometendo o parricídio, Heidegger não deixa de venerar o mestre, servindo-se de
fórmulas de autoria do pai da fenomenologia.
4. Uma primeira versão do artigo de Kripke foi publicada na obra Perspectives
on the Philosophy of Wittgenstein, org. I. BLOCK (Oxford: Blackwell, 1981).
Todas as referências neste ensaio remetem à versão definitiva: Saul A. KRIPKE,
Wittgenstein on Rules and Private Language: An Elementary Exposition,
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982), doravante abreviado RPL.
5.
Colin McGinn, Wittgenstein on Meaning: An Interpretation and Evaluation,
Aristotelian Society Series, Vol. 1,
6. Sobre a concepção grega de skepsis e epochê, cf. David SEDLEY, “The
Motivation of Greek Skepticism” in Myles BURNYEAT (org.), The Skeptical
Tradition, Berkeley:
7. Cf. Jacques BOUVERESSE, Le mythe de l’intériorité: Expérience,
signification et langage privé chez Wittgenstein. Paris: Minuit, 1976.
8. Em inglês “quus” contrasta com “plus” (“mais”).
9. KRIPKE, op. cit., p. 124.
10. Cf. T 5.632: “O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo”.
11.
Norman MALCOLM, Ludwig Wittgenstein: A Memoir.
12. Wittgenstein está obviamente questionando o ponto de partida de Moore, “Here
is one hand, and here is another”. Cf. G.E. MOORE, “Proof of the External World”
in Proceedings of the British Academy 1939; cf. “Defence of Common Sense” in
Contemporary British Philosophy, 2nd Series, 1925 (org. J.H.
MUIRHEAD) Ambos publicados nos Philosophical Papers de Moore (Londres, 1959),
traduzidos para o português por Pablo Ruben Mariconda, in Os Pensadores, São
Paulo: Nova Cultural, 1989.
13.
J. HINTIKKA, Logic, Language-Games and Information.
14. Cf. L. WITTGENSTEIN, Remarks on the Foundations of Mathematics, trad.
G.E.M. Anscombe.
Capítulo
Dois
Episteme,
Theoria, Praxis: O Legado Platônico-Kantiano
da
Epistemologia Moral
Sem dúvida
um dos mais notáveis colegas e admiradores de Willard von Quine em Harvard,
John Rawls tem sido mais conhecido pela sua reformulação do construtivismo
moral de Immanuel Kant do que pela sua reavaliação da “epistemologia
naturalizada” (epistemology naturalized)
de David Hume, ao revisitar tanto a tese do dever-ser/ser (ought/is thesis) quanto a problemática relação entre crença (belief) e desejo (desire) ou entre razão (reason)
e paixão (passion) em sua teoria
ético-política da justiça como eqüidade (justice
as fairness). Ao invés de reduzir as paixões, como fazem os
não-cognitivistas (tais como Ayer, Russell e Gibbard) a emoções, expressões ou
inclinações do arbítrio humano (warm
passions, segundo a feliz fórmula de David Lewis) e esquivando-se de
identificar realismo moral e intuicionismo (na esteira de Clark, Sidgwick e
Moore), o cognitivismo anti-realista de Rawls mantém o dualismo
prático-teorético kantiano de forma a viabilizar um internalismo deontológico
capaz de revisitar a importante contribuição das teorias da escolha racional
para a ética e a filosofia política, sem incorrer na mera redução da
epistemologia moral a uma “moralidade psicologizada” (morality psychologized) ou
numa versão anti-humeana de legalismo. Partindo de suas leituras seminais de
Hume e Kant nas Lectures on the History
of Moral Philosophy (2000), procurarei examinar em que sentido o
construtivismo rawlsiano merece a denominação de “uma deontologia com face
humeana” (“deontology with a Humean face”)
em sua reabilitação da “epistemologia moral”, seguindo Ernest Sosa, Thomas
Nagel, Robert Audi, David Brink e outros filósofos analíticos de língua
inglesa, na busca de uma justificativa epistêmica para a ação moral. Rawls
parte da original contribuição humeana quanto ao “papel epistemológico dos
sentimentos morais” e sua correlata concepção da justiça como “virtude
artificial” em oposição ao “intuicionismo racional”, em direção à formulação de
uma razão prática deliberativa governada por um dispositivo procedimental de
construção de inspiração kantiana.
Os modelos
de justificação da moral de Kant e Rawls poderiam ser hoje classificados, com
efeito, como sendo ambos cognitivistas, racionalistas, universalistas e
deontológicos. Quanto ao seu suposto internalismo e anti-realismo, teríamos que
rever várias correntes e possíveis linhas de interpretação desses dois autores.
Isso é o que me proponho a fazer neste paper,
recorrendo à arbitragem do judicious
spectator de Hume. Grosso modo,
identifica-se o internalismo epistêmico da ética kantiana com a sua formulação
do imperativo categórico enquanto princípio a
priori da moralidade. Na medida em que justifica a regra de
universalizabilidade de proposições práticas, a crença de que devo agir de tal
modo ou que tenho razões para agir assim, nos remete segundo o modelo kantiano
ao imperativo categórico enquanto princípio supremo da moralidade. Neste
sentido, uma crença racional (o próprio princípio cognitivo da ação moral) não
exige nenhum desejo ou paixão no sentido humeano do termo (de que a razão é sempre
escrava das paixões). O construtivismo de Rawls, assim como o equilíbrio
reflexivo de seu correlato coerentismo epistêmico-moral (moral epistemic coherence theory), servem aqui para explicitar a
correlação que se busca estabelecer entre igualdade e liberdade na própria
formulação de um princípio universalizável de justiça, segundo o modelo
internalista e anti-realista da interpretação kantiana. A fim de justificar ou
fornecer razões para fazer algo, no foro da chamada “razão pública”, o
princípio de universalizabilidade é, segundo Rawls, reorientado para a
deliberação inerente aos processos decisórios que legitima procedimentalmente
as instituições sociais, econômicas e políticas de uma democracia liberal
constitucional. Procura-se, assim, enfrentar o problema de articular a
abordagem “epistemológica” com a “motivacional”, em Hume, assim como a vontade
(Wille) e o livre arbítrio (freier Willkür), em Kant, num sentido de
articulação da tarefa de fundamentação com a sua aplicabilidade empírica, ou,
nos termos kantianos, da moralidade com a legalidade enquanto dimensões
normativas internas e externas das leis da liberdade. Este tipo de problema
parece-me correlato ao problema rawlsiano, também de origem tão racionalista
quanto empirista, que é o do realismo e anti-realismo em epistemologia moral na
própria tentativa de tornar defensável a idéia de autonomia sem recorrer a uma “metafísica
da natureza humana” (Hume) ou a um suposto “fato da razão” (Kant). A
radicalidade do projeto deontológico do construtivismo kantiano consiste
precisamente em superar as aporias da heteronomia inerentes ao naturalismo
psicológico de Hume, de forma a viabilizar uma defesa razoável da autonomia. A
posição deontológica de Rawls defende, portanto, a impossibilidade de
compatibilizar juízos morais (“incommensurable
visions of the good”) como numa rede de crenças incomensuráveis,
aproximando o pluralismo razoável de um pragmatismo político, na medida em que
a razão pública se traduz pelo equilíbrio reflexivo, co-constitutivo de
concepções-modelo de pessoa (self) e
sociedade, ambos tomados num sentido normativo pragmático,
não-substancializado, não-fundacionista. Para Rawls, a visão de Kant é marcada por um
número de dualismos, em particular, entre o necessário e o contingente, forma e
conteúdo, razão e desejo, noúmenon e
fenômeno. Não seria questão de abandonar ou não esses dualismos como foram
concebidos por Kant, mas de abraçar sua concepção moral em sua estrutura
característica que é mais claramente discernível quando esses dualismos não são
tomados no sentido que ele lhes deu mas são reinterpretados e sua força moral
reformulada dentro do escopo de uma “teoria empírica”. Ao articular a “teoria
ideal” nas duas primeiras partes de Uma
Teoria da Justiça (capítulos I a VI) com a “teoria não-ideal” da terceira
parte (capítulos VII a IX), Rawls segue, portanto, um caminho já proposto pela
filosofia prática kantiana na medida em que procura responder aos desafios
suscitados pela crítica de Hume ao racionalismo, evitando o reducionismo
naturalista do direito natural clássico (direitos naturais como causalidade de
uma lei natural) e o dogmatismo teológico da metafísica tradicional (direito
divino dos monarcas). Rawls procura reabilitar o liberalismo político, mais ou
menos como Hume resgata o que viria a ser identificado como o sentido
pragmático da justiça política (the
circumstances of justice) e Kant reinterpreta o liberalismo lockeano e o
igualitarismo rousseauniano em sua reformulação do contratualismo (justiça
enquanto igual liberdade). Trata-se, em última análise, de um contratualismo
construtivista político e não moral, assim como o ideal de autonomia a ser
efetivado não é meramente moral ou libertário mas político e igualitarista. A
passagem de um estado de natureza a um estado jurídico-civil é, num certo
sentido, correlata a uma naturalização política da moral na medida em que esta
é secularizada segundo uma neutralidade de propósito --e não procedimentalmente
neutra. A concepção rawlsiana de razoabilidade (reasonableness) visa justamente a desvencilhar-se de toda pretensão
de uma razão prática pura, assim como as diversas concepções de bem são objeto
de uma racionalidade (rationality)
empiricamente mensurável segundo teorias da escolha racional e cálculos
utilitaristas. A epistemologia moral é, desta forma, naturalizada pela
especificidade do político, na medida em que a vida humana deve ser regrada
para garantir a sua própria subsistência e sustentabilidade. Embora não tenha
operado de maneira explícita uma guinada lingüística (linguistic turn), a epistemologia moral revoluciona em Rawls a
relação entre o público e o privado pela subversão do a priori pelo a posteriori
desse formidável retorno pós-kantiano a Hume: sobre aquilo de que não se pode
mais falar com argumentos razoáveis, publicamente defensáveis, não se deve
esperar nenhum vínculo de obrigação a não ser em círculos privados de crenças
religiosas, morais ou político-partidárias, muitas vezes incapazes de serem
traduzidos de um nível a outro de racionalidade. A crença razoavelmente
justificada só se concebe politicamente como ponto de partida enquanto
resultado de critérios públicos consensualmente sedimentados ao longo de várias
gerações e de várias tentativas entre erros e acertos visando a escolha dos
princípios que devem reger as relações e instituições sociais. Um exemplo desta
epistemologia moral naturalizada encontramos, creio eu, na reformulação
rawlsiana dos direitos humanos
O termo “epistemologia
naturalizada” (naturalized epistemology)
foi forjado por W.V. Quine em alusão a sua abordagem da epistemologia
introduzida em seu famoso ensaio de 1969 ‘Epistemology Naturalized’, seguindo
várias premissas epistêmicas que encontramos
“It was sad for
epistemologists, Hume and others, to have to acquiesce in the impossibility of
strictly deriving the science of the external world from sensory evidence. Two
cardinal tenets of empiricism remained unassailable, however, and so remain to
this day. One is that whatever evidence there is for science is sensory
evidence. The other…is that all inculcation of meanings of words must rest
ultimately on sensory evidence”. (Quine
1969: 75)
Assim como
em Quine, o empirismo de inspiração humeana que interessa a Rawls é
intersubjetivo, falsificacionista e, interessantemente, externalista, i.e. uma
forma de pragmatismo político social, lingüística e historicamente
constitutivo. O problema do conhecimento, assim como o de dar razões para a
ação moral, permanece o grande problema humano segundo a formulação humeana. Nas
palavras de Quine, The Humean predicament
is the human predicament. O externalismo dos
naturalistas, na esteira de Hume e Quine, se oporia aqui ao internalismo dos
racionalistas e de Kant, segundo o qual a justificativa epistêmica para a
cognição e para a ação moral encontra-se na consciência (cogito) ou numa
estrutura de subjetividade transcendental. Embora não me proponha a desenvolver aqui o problema
internalista-externalista, creio que se trata de uma questão importante para
esclarecer a problemática prático-teorética que fornece grande parte do
pano-de-fundo conceitual para a articulação rawlsiana entre teoria ideal e
teoria não-ideal. Com efeito, creio que todo problema de articular teoria e
prática nos remete direta ou indiretamente ao debate entre racionalismo e
empirismo, herdado pelo próprio modelo kantiano do idealismo transcendental.
Se, como Quine sugeriu, o grande erro de Hume teria sido o de reduzir juízos
analíticos a juízos a priori, universais necessários, em contraposição a juízos
sintéticos, redutíveis por sua vez a juízos a posteriori, particulares
contingentes, a solução kantiana, como já observara Popper, não apenas não
resolve o problema da indução mas permite ainda o retorno, pela porta dos
fundos talvez, do auto-engano de pretendermos justificar a ação moral com uma
argumentação transcendental a priori. Esta me parece, de resto, a herança
maldita da argumentação pós-kantiana que, tal como a encontramos em Rawls,
retorna ao cerne procedimental de sua universalizabilidade ao mesmo tempo em
que busca livrar-se de seus dualismos.
Gostaria de
argumentar aqui em favor de uma articulação entre theoria e praxis que
defende a objetividade em moral sem incorrer em nenhuma das supracitadas
reduções, segundo um modelo rawlsiano que, seguindo Hume e Kant, logra manter a
correlação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal para dar conta de
problemas práticos, i.e. referentes à ação humana e mais especificamente à vida
política. Assim, limito-me a tão-somente reexaminar em que sentido a
articulação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal na trilogia rawlsiana
(A Theory of Justice, Political
Liberalism, The Law of Peoples) logra reabilitar o modelo deontológico de
inspiração kantiana de forma a responder aos desafios de um igualitarismo
político num modelo cognitivista universalista. Neste sentido, procurarei
mostrar que o conceito jurídico-formal de igualdade em Rawls, de inspiração
kantiana, torna sua utopia política realista, não apenas no sentido de
exeqüível mas ainda de defensável e capaz de responder às exigências da
instável condição humana de insociável sociabilidade.
Na medida
A questão
da justiça é introduzida no mais famoso diálogo platônico, A República
--considerado por muitos o primeiro tratado de filosofia política--com o
intuito pedagógico de elevar a alma () a um nível idealizado de inteligibilidade capaz de dar conta da melhor
constituição (em grego, , como é intitulado no original) para os cidadãos de uma polis
(cidade-Estado). O proto-comunismo platônico ou o seu igualitarismo ideal logra
articular num mesmo logos sobre a justiça uma concepção moral de
virtudes da alma com um projeto político aristocrático. A corrupção da polis
--tão iminente quanto a demagogia inerente aos movimentos das massas (daí sua
condenação pragmática da democracia)-- é dialeticamente proporcional à
perversão da alma, tentada pelos prazeres imediatos de uma existência finita,
destinada à morte. Resulta desse modo uma clara conexão entre imortalidade e
virtude, justiça e eternidade. De resto, a imortalidade da alma ocupa um lugar
privilegiado na história das teorias da justiça que estruturaram a tradição
metafísica, de Platão a Kant, segundo um raciocínio que nos remete a uma
teologia retributiva e punitiva. Para Platão, os conceitos correlatos de e desvelam o próprio modo de estruturação dialética que caracteriza não
apenas a composição deste diálogo de Platão, mas a sua filosofia ético-política
como um todo.(Oliveira, 1999, p. 39-50) Deste modo, as concepções platônicas do
bem, da justiça, das idéias, etc, fazem parte de um todo orgânico, uma
epistemologia ao mesmo tempo metafísica e moral, onde a alma humana figura como
ponto de encontro do macrocosmos e do microcosmos, do sensível e do
inteligível, das aparências e da realidade, do não-ideal e do ideal.(White,
1992, p. 277-310) Como seu mestre, Platão teria herdado o apelo délfico do
daimon socrático e procurado a verdadeira justiça na vida privada, antes mesmo
de proceder à missão pública do filósofo, através da definição das virtudes e
da idéia universal que as viabilizaria. Antes mesmo de falarmos de homens
justos ou de diferentes opiniões sobre o que seja justo e injusto, é mister
mergulharmos nas profundezas da alma e buscarmos uma definição ideal de
justiça, segundo o seu . Se há uma “teoria platônica das idéias” em termos de uma dialética
entre a (alma) e o destino coletivo da (cidade-estado), e em que consiste a forma do bem capaz de explicitar
tal teoria, permanece um assunto deveras complexo para esta breve comunicação.
De toda forma, para Platão, a politeia é a alma da polis,
como já observara Allan Bloom, na medida em que a psyché aparece como
o princípio (arché) racional por excelência que informa e governa a
vida humana, tanto individualmente como coletivamente.(Bloom, 1968, p. 440) No
entanto, a própria concepção de psyché já nos oferece aqui um grande problema para a epistemologia moral, na
medida em que serve para designar tanto o seu maior bem quanto o instrumento
que anima o ser humano (como os cavalos e os cães também têm alma), portanto os
seus desejos não-racionais assim como os racionais enquanto função (ergon)
a ser preenchida pela virtude. Com efeito, para Platão, os conceitos do bem e
da excelência da alma são correlatos aos da eudaimonia
(florescer humano) e da satisfação dos desejos da psyché. A notável semelhança entre a divisão tripartida da alma no Fedro
e a estrutura triádica da polis-psyche na República é
reveladora neste sentido. A fim de ir além das aparências da justiça (aquilo
que a justiça apenas parece ser), Sócrates parte em busca da verdadeira
natureza da “justiça”(dikaiosyné) e “injustiça” (adikia) na
alma humana (375-77). Com efeito, assim como o argumento da imortalidade da
alma ilustra a filosofia política de Platão, a própria polis surge
primeiro como um mero artifício ilustrativo (369a), precisamente ao introduzir
o microcosmos da alma individual. O eidos de tal relação entre a polis
e a psyché é tematizado de maneira mais completa no Livro IV,
quando Sócrates conclui com espanto “que em cada um de nós existem os mesmos
princípios e modos de ser que na polis” (435e). Platão emprega aqui a
palavra eidé, que é comumente traduzida como “formas”. Ora, é sabido
de todos que a metáfora platônica da visão, em particular sua concepção de eidos,
orquestra grande parte de seus conceitos. Esta palavra é derivada do verbo , “ver”, e pode significar “a aparência de algo”, o seu aspecto, como
algo aparece aos nossos olhos. Daí o sentido de “forma, classe ou espécie” de
coisa. A relação entre polis e psyché não pode, todavia, ser
reduzida a uma analogia ontológica de causa-e-efeito ao ponto de fazermos
corresponder às três classes da polis (governantes, soldados e “o
resto da polis”, 414d) meramente uma divisão tripartida da alma. Com
efeito, o eidos não implica nenhuma forma de correspondência causal,
pois o próprio Sócrates chega a descrever elementos opostos da alma em termos
de “classes”, isto é, diferentes que caracterizam contrários na estrutura da psyché.
Por exemplo, a análise do homem sedento que se abstém de beber é usada por
Sócrates para distinguir entre a faculdade racional (logistikon) e a
faculdade sensual (epithymetikon). Contudo, um terceiro elemento a ser
acrescentado é a faculdade afetiva, thymos (“vivacidade,
espirituosidade”), que é caracterizada pela ambigüidade, podendo aliar-se tanto
à razão como aos desejos (Livro IV). Neste caso, a razão aparece em oposição
principial ao eros --notando-se que a polis não abriu ainda
espaços para incluir o filósofo, que só entra em cena no Livro V. Às três
partes da alma correspondem portanto as três classes da polis, num
sentido estritamente dialético. Quanto às virtudes da polis, sophia
(sabedoria) e andreia (coragem) são “departamentais”, isto é, só
podem ser encontradas entre governantes e soldados, respectivamente, enquanto sophrosyné
(“temperança” em oposição a hybris, “excesso”) e dikaiosyné (enquanto virtude de alocar a cada parte da psyché sua função perticular) são estendidas a
todas as três classes. Como modelo da polis, a estrutura da alma é
hierárquica, governada pela sophia, auxiliada pela andreia;
um equilíbrio interno é mantido pela sophrosyné, e a “ordem” (kosmos)
é assegurada pela dikaiosyné. A polis ilustra e molda o ser
humano, assim como a psyché governa e informa o indivíduo viabilizando
a própria vida humana. Todavia, a constituição socrática da polis ideal
parece condenada a fracassar na sua constituição de almas capazes de compor tal
cidade-estado. Afinal, como observou MacIntyre, o desejo racional só se realiza
numa polis ideal com uma constituição
ideal.(MacIntyre, 1981, p. 140) Ora, se o bem é objetivamente estabelecido como
valor absoluto e supremo a ser alcançado pela elevação dialética da alma, como
dar conta da defasagem entre a razão deliberativa que guia o desejo racional e
o desejo sensual e afetivo da alma? O problema da akrasia, da fraqueza da vontade humana, já antecipa aqui a tensão
entre um querer racional (da vontade, Wille,
que quer o que deve ser quisto) e o arbítrio humano (Willkür, que traduz apenas as inclinações, paixões, instintos e
desejos empíricos) na filosofia prática de Kant.
3. Igualdade em Kant e Rawls
Gostaria de
propor agora que reexaminemos a questão ético-política da melhor constituição
para a polis à luz da transformação
da concepção platônica de isonomia
politiké, igualdade social. Vlastos nos lembra que há uma vasta literatura
desde a época de Heródoto que nos autoriza a identificar isonomia com demokratia
enquanto forma mais eqüitativa (fairest)
da constituição política.(Vlastos, 1981, p. 166s.) O termo ocorre na oração
fúnebre de Platão (Menexenus
“Se
alguém não pode provar que uma coisa é, pode tentar provar que ela não é. E se
não for bem sucedido em nenhuma destas (como freqüentemente acontece), ele pode
ainda perguntar se é de seu interesse aceitar uma ou outra das alternativas
hipoteticamente, de um ponto de vista teórico or prático. Em outras palavras,
uma hipótese pode ser aceita seja para explicar um certo fenômeno (como na
astronomia, para dar conta do movimento de recuo [Rückganges] e do estado de repouso [Stillstandes] dos planetas), ou para alcançar um certo fim, que
pode ser ainda pragmático, meramente técnico [Kunstzweck, um fim da arte], ou moral, i.e. um fim tal que a máxima
de adotá-lo é ela mesma um dever. Ora é evidente que não é a suposição (suppositio) de que um tal fim possa ser
exeqüível que seria tomado como nosso dever, o que seria meramente um juízo
teórico e, ademais, problemático; pois não pode haver nenhuma obrigação de crer
em um tal fim. O que nos incumbe como dever é antes o agir em conformidade com
a idéia daquele fim, mesmo se não há a menor verossimilhança teórica que ele
possa ser efetivado, na medida em que a sua impossibilidade não pode ser
tampouco demonstrada.”(Kant, 1997, p.
A 232s.)
Grosso
modo, identifica-se o internalismo epistêmico da ética kantiana com a sua
formulação do imperativo categórico enquanto princípio a priori da
moralidade.(Audi, 1997, p. 14) Na medida em que justifica a regra de
universalizabilidade de proposições práticas, a crença de que devo agir de tal
modo ou que tenho razões para agir assim, nos remete segundo o modelo kantiano
ao imperativo categórico enquanto princípio supremo da moralidade. Neste
sentido, uma crença racional (o próprio princípio cognitivo da ação moral) não
exige nenhum desejo ou paixão no sentido humeano do termo (de que a razão é
sempre escrava das paixões). Assim, podemos facilmente concordar que o modelo
deontológico kantiano é internalista, seguindo a formalização modal proposta
por David Brink (1997, p. 4-32):
ÿ (J « B) cognitivismo
ÿ (J ® M) internalismo
ÿ (M ® D) rejeitando
apenas a tese humeana, à (B . ~D)
Permanece,
todavia, o problema de articular vontade (Wille)
e livre arbítrio (freier Willkür),
num sentido de articulação da tarefa transcendental da fundamentação com a sua
aplicabilidade empírica, ou, nos termos da Doutrina
do Direito, da moralidade com a legalidade enquanto dimensões normativas
internas e externas das leis da liberdade. Este tipo de problema tem sido
identificado por Michael Smith (1994) como sendo o problema moral por
excelência, na medida em que satisfaz (1) a tese da objetividade (juízos morais
nos remetem a crenças racionais que podem ser epistemicamente justificadas, “It
is right that I ” --”objectivity
thesis”), (2) a exigência de praticabilidade (“practicality requirement”, i.e.,
o juízo moral é suficiente para explicar a ação que deve ser realizada), e (3)
a psicologia crença-desejo de inspiração humeana: “An agent is motivated to act in a certain way just in case she has an
appropriate desire and a means-end belief, where belief and desire are, in Hume’s
terms, distinct existences”.(ibid., p. 12) Brink e outros interlocutores de
Smith também mostram que essa problemática é correlata a um outro problema, de
origem tão racionalista quanto empirista, que é o do realismo e anti-realismo
Segundo
um dos mais ilustres interlocutores de John Rawls, Amartya Sen, o conceito de
igualdade admite hoje pelo menos quatro sentidos socio-econômicos
diferenciados, quando se discute o problema em teoria política --que não
poderia obviamente ser confundido com a igualdade ôntico-ontológica de entes na
natureza ou com a igualdade matemática, por exemplo. Segundo Sen, o grande
divisor de águas em teoria política e econômica é justamente o de se avaliar o
que está efetivamente em jogo na formulação da questão: “igualdade de quê?” (equality of what?). Como toda abordagem
ética dos arranjos sociais parece defender uma certa idéia de igualdade,
resta-nos especificar qual é o objeto da igualdade nas modernas versões do
igualitarismo. Enquanto igualitaristas de esquerda advogam a igualdade de
proventos e ganhos salariais (income-egalitarians)
e os libertarianos exigem apenas a igualdade de direitos e liberdades
individuais (pure libertarians),
utilitaristas clássicos insistem na igualdade de utilidades e os igualitaristas do bem-estar social (welfare-egalitarians) defendem a
igualdade dos níveis de bem-estar.(1994, p. 5ss.) A questão não seria,
portanto, de ser a favor ou contra a igualdade em termos sociais, econômicos e
políticos, mas de estabelecer os mecanismos institucionais capazes de promover
as igualdades desejáveis e de manter ou ignorar as desigualdades aceitáveis.
Dada a diversidade da natureza humana, da divisão social do trabalho e de suas
multiformes manifestações em seus processos civilizatórios (nas artes, nas
ciências e nas religiões), a filosofia ocidental sempre buscou ideais de
igualdade capazes de universalizar o sentido próprio do ser humano em suas
relações éticas e políticas. A articulação entre igualdade, liberdade e justiça
que embasa a teoria rawlsiana da justiça como eqüidade é, como todos sabem, de
inspiração kantiana e reformula, a meu ver, a mais importante contribuição de
Immanuel Kant para a filosofia do direito, a saber, o seu procedimentalismo
enquanto correlato jurídico do princípio de universalizabilidade em filosofia
moral. Com efeito, é sobretudo a partir do liberalismo kantiano que os ideais
iluministas da tolerância, liberdade, igualdade e reciprocidade convergiriam
numa teoria da justiça capaz de ordenar juridicamente as instituições sociais,
econômicas e políticas de uma sociedade igualitária. Seguindo uma interpretação
kantiana da justiça como eqüidade, proponho-me a reexaminar a questão da
igualdade à luz do opúsculo de Kant Sobre
a expressão corrente: Isto pode ser correto na teoria, mas não vale na prática
(“Über den
Gemeinspruch: ‘Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die
Praxis’,” 1793) e
do ensaio de Rawls, “Uma Concepção Kantiana de Igualdade” (1975). Se um dos
problemas centrais de uma teoria kantiana da justiça consiste em articular, de
um lado, liberdade e igualdade (como Rawls o sugere através do princípio da “igual
liberdade”), e, de outro lado, igualdade e desigualdade (“princípio da
diferença”), em que medida podemos resgatar um igualitarismo procedimental em
Kant sem incorrermos num conseqüencialismo utilitarista ou numa versão
conservadora de reformismo político? Creio que a correlação que Kant estabelece
entre theoria e praxis pode nos ajudar a encontrar uma posição defensável que faça
jus a ambos desafios, sobretudo quando, na segunda parte do Gemeinspruch, Kant argumenta em favor de
uma igualdade legal, na medida em que todos são
iguais perante a lei, em pleno acordo com o seu princípio de liberdade inata
correlato à própria concepção de igualdade inata, esboçado na Rechtslehre.
O projeto
kantiano da paz perpétua, enquanto extensão e fim terminal (Endzweck) de sua teoria do direito,
repousa numa “utopia realista” que Rawls corretamente identificou com um
igualitarismo cosmopolita liberal, cujo moto negativo (“veto irresistível”, unwiderstehliches Veto) foi formulado
pelo próprio Kant nos seguintes termos: “Não deve haver guerra” [Es soll kein Krieg sein].(A 233) Tanto
no estado de natureza para as relações entre cidadãos de uma mesma nação quanto
nas relações internacionais entre os povos, a guerra contradiz a própria idéia
kantiana do direito e da justiça. A passagem de um estado hobbesiano de guerra
para um estado de paz através do contrato social é condição sine qua non para a constituição
política e para a subseqüente sobrevivência do gênero humano, em sua complexa
condição de insociável sociabilidade. Interessantemente, na segunda parte do Gemeinspruch, Kant se propõe a ratificar
a teoria hobbesiana do estado de natureza, reformular sua concepção de
contratualismo e refutar o seu absolutismo. Segundo Kant, como já fôra de resto
assinalado na Primeira Crítica (KrV B
780), o estado de natureza é inevitavelmente identificado com um estado de
guerra, posição esta que é ratificada na Paz
Perpétua, onde Kant afirma que “o estado de paz entre os homens que vivem
lado a lado não é um estado de natureza (status naturalis), que antes é um
estado de guerra, i.e. posto que nem sempre uma eclosão de hostilidades,
contudo [é] uma ameaça permanente destas.”(kant, 1989, p. 32) Kant concorda,
portanto, com Thomas Hobbes quanto à igualdade dos seres humanos no estado de
natureza. O grande ponto de ruptura consiste precisamente no conceito de liberdade
que, para Kant, não poderia ser pensado em termos empíricos ou meramente
negativos (“ausência de impedimento”) na fundamentação de uma teoria da
justiça. Kant se refere ao princípio pacta
sunt servanda, concordando com Hobbes quanto ao exercício legítimo da
coerção que obriga a todos o cumprimento da lei segundo os próprios princípios
da justiça. Todavia, Kant não pode seguir Hobbes quando se confunde a renúncia
sem reserva da liberdade natural (enquanto faculdade de se fazer o que se quer)
com a instituição contratual do Estado despótico. É neste sentido que Rawls
aproxima o modelo kantiano do liberalismo de Locke e do igualitarismo de
Rousseau, em contraposição ao modelo hobbesiano. Como para Hobbes o conceito de
liberdade ainda permanece num nível negativo, isto é, de negação de
condicionamentos fenomênicos ou de ausência de determinação causal, Kant
obviamente aproxima-se mais de uma concepção liberal-democrática do que do
absolutismo hobbesiano. Para melhor compreendermos como se dá a apropriação kantiana
do modelo contratualista clássico seria necessária uma investigação de sua
filosofia da história, pois é no regramento de uma história mundial (Weltgeschichte) que a liberdade, em sua
acepção positiva de autodeterminação da razão prática pura, realiza a sua
finalidade moral de modo a satisfazer suas exigências externas e internas de
legalidade. Assim como Hobbes, Kant argumenta no Gemeinspruch (A 248) que o contractus
originarius ou pactum sociale não
deve ser tomado como um fato histórico mas, para além do filósofo de
Malmesbury, Kant concebe o contrato como uma “idéia da razão”, de forma a
estabelecer o teste de validade do direito público.(Kant, 1992, p. 82) Assim
como Kant rejeita o regramento hobbesiano de interesses particulares através da
barganha, o filósofo de Königsberg renuncia também ao modelo jusnaturalista de
John Locke, segundo o qual a autopreservação e a garantia absoluta de direitos
de propriedade são direitos naturais anteriores ao contrato social. De acordo
com Rawls, a contribuição kantiana consiste sobretudo em tornar defensável uma
correlação de igualdade normativa entre um ideal de pessoa humana (pessoa
moral, livre e igual) e uma sociedade ideal (que ele denomina “well-ordered
society”, seguindo uma fórmula de Jean Bodin, “république
bien ordonnée”, de 1576). A fim de sugerir a idéia principal, Rawls nos
convida a pensar na noção de uma sociedade bem ordenada como uma interpretação
da idéia de um reino de fins concebida como uma sociedade humana sob
circunstâncias de justiça. Segundo Rawls, “os membros de tal sociedade são
livres e iguais e nosso problema consiste, portanto, em achar uma interpretação
de liberdade e igualdade que seja naturalmente descrita como kantiana”. Assim,
partindo da distinção liberal entre liberdade positiva e negativa, tal como foi
apropriada e desenvolvida por Kant, Rawls se serve deste contraste e recorre à
idéia da “posição original”, de forma a supor “que a concepção de justiça
apropriada para uma sociedade bem ordenada é aquela que seria acordada numa situação
hipotética que fosse eqüitativa (fair) entre indivíduos concebidos como
pessoas morais livres e iguais, isto é, como membros de uma tal sociedade. A
eqüidade (fairness) das
circunstâncias sob as quais o acordo é alcançado se transfere à eqüidade dos
princípios acordados. A posição original foi concebida de tal forma que a
concepção de justiça resultante seria apropriada.”(Rawls, 2001, p. 254-266)
Para Rawls, a visão de Kant é marcada por um
número de dualismos, em particular, entre o necessário e o contingente, forma e
conteúdo, razão e desejo, noúmenon e
fenômeno. Não seria questão de abandonar ou não esses dualismos como foram
concebidos por Kant, mas de abraçar sua concepção moral em sua estrutura
característica que é mais claramente discernível quando esses dualismos não são
tomados no sentido que ele lhes deu mas são reinterpretados e sua força moral
reformulada dentro do escopo de uma teoria empírica. Ao articular a teoria
ideal nas duas primeiras partes de Uma
Teoria da Justiça (capítulos I a VI) com a teoria não-ideal da terceira
parte (capítulos VII a IX), Rawls segue, creio eu, um caminho já proposto pela
filosofia do direito kantiana na medida em que evita o reducionismo naturalista
do direito natural clássico (direitos naturais como causalidade de uma lei
natural) e o dogmatismo teológico da metafísica tradicional (direito divino dos
monarcas). Rawls procura reabilitar o liberalismo político, mais ou menos como
Kant reinterpreta o liberalismo lockeano e o igualitarismo rousseauniano em sua
reformulação do contratualismo.
Assim como
em Hobbes o estado de natureza não pode ser pacífico, mas é necessariamente
belicoso, Kant evoca um estado de natureza internacional, na guerra de nações
contra nações, e que somente pela constituição de uma liga das nações, enquanto
dispositivo procedimental de contrato, pode-se contemplar a coexistência
pacífica entre os povos. Ao contrário de Hobbes, todavia, o vínculo contratual
não se encontra numa racionalização estratégica visando evitar o perigo
iminente da morte violenta, mas num ordenamento jurídico, fundamentado moral e
procedimentalmente num dispositivo de representação análogo ao do imperativo
categórico, por ele denominado o “princípio universal do direito / justiça”: “É
justa toda a ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à
conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um
segundo leis universais.”(Kant, 1997, p. 230) Apesar de
compartilhar com Hobbes a identificação do estado de natureza com um estado de
direito privado (na verdade, pode-se argumentar que, para Hobbes, o direito a
todas as coisas constitui-se num direito a coisa alguma), a passagem deste ao
estado de direito para a promoção da justiça é, para Kant, necessariamente
distinto de um estado social—portanto, como em Locke, a sociabilidade deve ser
politicamente regrada pelo contrato mas pode existir em sua condição natural (status artificialis, em oposição ao status civilis). Segundo Kant, “Do
direito privado no estado natural resulta um postulado de direito público: ‘Tu
deves juntamente com os demais, na relação de uma coexistência necessária, sair
do estado natural para entrar em um estado de direito, i.e., estado de uma
justiça distributiva”.(ibid., p. 145) Assim como em Hobbes, a hipótese do contrato
funciona em Rawls como um dispositivo heurístico capaz de dar conta de uma
situação histórica determinada: embora a maior parte das nações tenha
historicamente emergido de guerras contra seus vizinhos, o contrato é invocado
como metáfora solene de nascimento e coesão da commonwealth, em oposição a quaisquer situações de guerra civil.
Obviamente a concepção kantiana de razão prática refuta todo nível
empírico de fundamentação voluntarista, sendo a vontade pura (Wille) contraposta ao arbítrio ou “vontade”
(Willkür) no sentido fraco de
inclinação, desejo, impulso, escolha ou quaisquer atos de um querer
psicologicamente condicionado. Por isso mesmo, o princípio de autonomia da
razão prática deve coincidir, segundo Kant, com a própria vontade enquanto vontade
geral, universalizável e publicamente reconhecida como boa, soberana e
eficiente, isto é, capaz de realizar a liberdade de todos os membros da
sociedade enquanto seres humanos, assegurar a igualdade de todos enquanto
sujeitos e manter a independência de cada um como cidadão.(Kant, 1992, p. 73
ss.) A concepção de liberalismo em Kant permanece fiel ao seu distanciamento
teórico do dogmatismo racionalista de Hobbes: uma metafísica embasada more geometrico mostra-se insuficiente
para dar conta da liberdade e do complexo conceito de natureza humana, assim
como o império da lei (the rule of law)
não decorre de uma soberania absoluta mas de um estado de direito autonomamente
estabelecido, a própria base do Rechtsstaat
político. A justificação, segundo Locke, da resistência dos cidadãos a uma
determinada forma de governo (Commonwealth
no sentido político), portanto, a legitimação da dissolução do governo não
se coloca ao serviço, na perspectiva kantiana, de práticas revolucionárias mas
de reformas constitucionais.(ibid., p. 162) A concepção rawlsiana de sociedade
política enquanto sistema cooperativo estável embasado num consenso justaposto
de doutrinas abrangentes razoáveis é uma concepção liberal nitidamente pautada
pelo princípio lockeano da tolerância e pela formulação kantiana da liberdade
segundo um princípio de universalizabilidade que formaliza a idéia popular de
que “a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro”.(Rawls, 1996,
p. 43, 134) Nas palavras de Lewis White Beck, a fundamentação kantiana da moral
dá conta de um “conhecimento moral do senso comum”; mutatis mutandis, dir-se-á que Rawls visa a uma formalização
procedimental da “sociedade mais justa” que todo mundo, com um senso de justiça
e concepções razoáveis do bem, naturalmente deseja. Na Introdução à edição em paperback de Political Liberalism, Rawls explicitamente define sua concepção
político-liberal de justiça segundo as três condições seguintes: 1. uma
especificação de certos direitos, liberdades e oportunidades; 2. uma prioridade
especial para tais liberdades; e 3. medidas que assegurem aos cidadãos,
independentemente de sua posição social, meios adequados (referentes aos bens
primários) para fazer um uso inteligente e efetivo de suas liberdades e
oportunidades.(ibid., p. xlviii) Com efeito, assim como a proeminência das
liberdades civis e da tolerância contrapõem concepções liberais como as de
Locke, Kant e Rawls a versões (utilitaristas) que recorrem ao princípio de
utilidade, a primazia do justo sobre o bem é o que caracteriza o liberalismo
rawlsiano de inspiração kantiana em
oposição a toda forma de libertarismo.
Para Kant e
Rawls, o princípio universalizável da justiça deve preceder toda tentativa
pragmática de se chegar a um acordo segundo projetos racionais do bem precisamente
por causa da identificação entre fim terminal e liberdade humana, anterior a
toda escolha racional dos meios para atingir fins contingenciais. Neste
sentido, a concepção deontológica do liberalismo kantiano se opõe a Hobbes e a
Locke: “Todo conceito de um direito externo é derivado inteiramente do conceito
de liberdade nas relações mútuas
externas de seres humanos, e não tem nada a ver com o fim que todos os homens
têm por natureza (o propósito de alcançar a felicidade) ou com os meios
reconhecidos para atingir tal fim.”(Kant, 1992, p. 73)
Ao propor
uma concepção kantiana de igualdade, John Rawls visa situar dentro de sua
interpretação kantiana da justiça como eqüidade uma concepção de igualitarismo
que faça jus, por um lado, ao desafio empírico do liberalismo político,
prenunciado pela visão semântica ideacional de Locke (a idéia de igualdade,
numa perspectiva propriamente de uma filosofia prática da linguagem), e por
outro lado, à efetiva realização da igualdade pela liberdade, como
abstratamente formulado por uma “vontade geral” no sentido proposto por
Rousseau. Creio que uma concepção kantiana de igualdade, tal como foi
reformulada por Rawls, responde aos desafios teóricos de um termo que tem sido
empregado de maneira tão vaga quanto imprecisa em textos clássicos da ética e
da filosofia política, sobretudo quando confunde uma concepção formal de
igualdade (por ex., jurídica e política) com uma concepção material ou real de
igualdade. O exemplo clássico é o da Declaração Universal dos Direitos Humanos
quando afirma no seu artigo primeiro: “Les
hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits...” (os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direito). Esta seria, de resto, a
problemática platônica --retomada por seu mais ilustre discípulo, Aristóteles
(na Ética a Nicômaco)-- na formulação
de uma forma de igualdade capaz de
transcender a mera aparência de
coisas iguais, notavelmente pelas diferentes leituras dos argumentos socráticos
sobre participação e separação do ser dos entes no Fédon (74a-75e).
Gostaria de
propor aqui que a articulação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal da
justiça decorre precisamente da articulação kantiana entre theoria e praxis, na
medida em que a teoria é tomada strictu
senso enquanto teoria das representações (no nosso caso, das Idéias de
liberdade, contrato e igualdade) e a praxis
é concebida não no sentido pragmático vulgar (que Kant explicitamente rejeita
no seu Gemeinspruch) mas no sentido
crítico do “uso prático da razão pura”, i.e. na realização efetiva das
representações práticas de nossa liberdade na moral, no direito e na política:
“Chama-se
teoria mesmo a um conjunto de regras
práticas quando estas regras são pensadas como princípios numa certa
universalidade, e aí se abstrai de um grande número de condições as quais, no
entanto, têm necessariamente influência sobre a sua aplicação. Inversamente,
denomina-se prática (Praxis) não toda a operação, mas apenas
a efetuação de um fim conseguida como adesão a certos princípios de conduta
representados na sua generalidade.”(Kant, 1992, p. 57)
Kant visava
inicialmente em seu opúsculo à sátira do eminente matemático Abraham Kästner
que denunciara, no seu texto de 1793 [“Pensamentos sobre] a inabilidade de
escritores produzirem uma rebelião”, (Gedanken
über das Unvermögen der SchriftstellerEmpörungen zu bewirken). Kant buscava
mostrar, assim, que a validade de uma teoria não dependia de suas conseqüências
revolucionárias, como se houvesse uma fórmula quimérica vulgar que colocasse em
prática todas as utopias teorizadas, mas evitava igualmente as reações
conservadoras de Edmund Burke com relação à Revolução Francesa (Reflections on the French Revolution,
1790) e seus leitores na Alemanha, em particular o grande jurista Gottfried
Achenwall, Friedrich Gentz (que traduziu a obra de Burke para o alemão em 1793)
e o secretário do Chanceler Wilhelm Rehberg. Interessantemente, Burke rejeita o
ideal revolucionário da igualdade por ser contrário à própria natureza, assim
como a liberté em questão não passava
de uma idéia metafísica esvaziada de todas as relações concretas e a fraternité era apenas um pretexto dos
revolucionários para promover seus vícios da ambição, orgulho, lascívia e
sedição. Tal evento serviu mais uma vez para questionar o valor da teoria
filosófica e suas pretensões morais, em face dos acontecimentos históricos. Se
Kant já havia contraposto o ser dos eventos naturais ao dever-ser da liberdade,
a própria questão da intervenção humana na história em seus processos
civilizatórios exigia no final do século XVIII uma reflexão que desse conta das
aspirações da liberdade num contexto político tão polêmico quanto complexo.
Para Kant, em última análise, a teoria define a prática na sua própria
aplicação efetivante, o que poderia ser formulado através da faculdade de julgar
(Rechtslehre § 62), em se tratando de
uma relação sintética entre o que é determinado pela teoria e o que permanece
objeto de experiência prática. O grande desafio moral da teoria política (assim
como da teoria do direito) consiste afinal na real condição humana de
desregramento, de não se submeter a princípios racionais que, idealmente ou em
teoria seriam os mais razoáveis para balizar uma condição estável ou viabilizar
a estabilidade social e política. Embora não proceda a uma analogia direta com
a matemática (como queriam os racionalistas, de Descartes a Leibniz), Kant
afirma no § E (1997, p. 233) que não é tanto o conceito de direito (condições
que permitem que o meu direito e o teu direito sejam compatibilizados conforme
a lei universal da liberdade) mas antes enquanto coação plenamente recíproca e
igual que viabiliza tal conceito sob uma lei universal. É neste sentido mesmo
que Kant defende no Gemeinspruch a
igualdade quanto ao direito de coação, atribuído a cada membro da comunidade,
enquanto súditos, na medida em que todos estão igualmente sob as mesmas leis do
Estado:
“...Todo
o direito consiste apenas na limitação da liberdade de outrem com a condição de
que ela possa coexistir com a minha segundo uma lei universal... em virtude da
qual todos os que, enquanto súditos, fazem parte de um povo encontram-se num
estado jurídico (status juridicus) em geral, a saber, num estado de igualdade
de ação e reação de um arbítrio reciprocamente limitador, em conformidade com a
lei universal da liberdade.”(A 240s.)
Deste mesmo
princípio decorre a condenação da escravidão, na medida em que o súdito deixa
de ser seu próprio senhor e entra na classe dos animais domésticos, no que
seria mais tarde identificado pela sociologia como uma “morte social”. Creio
inclusive que esta concepção de igualdade pode ser aplicada contra o sexismo,
latente na visão pré-feminista de Kant (que ainda submete a mulher ao seu
marido, como tem sido o costume de 2400 anos de falocentrismo!) Rawls se
reapropria de Kant precisamente para defender uma concepção igualitária e
pública de autonomia política. Assim a autonomia política, enquanto liberdade
positiva, exige uma correlação entre liberdade e igualdade nos seguintes
termos:
“Minha liberdade exterior (jurídica) deve antes
ser definida assim: ela é a autorização de não obedecer a nenhuma lei exterior
a não ser àquelas que pude dar meu assentimento. A igualdade exterior (jurídica) num Estado é justamente assim aquela
relação dos cidadãos segundo a qual ninguém pode obrigar juridicamente outrem a
algo sem que ele ao mesmo tempo se submeta à lei de também poder ser obrigado por ele reciprocamente do mesmo modo.”(Kant,
1989, p. 34)
À guisa de conclusão,
observamos que Rawls mantém os dois princípios igualitários de justiça, visando
um ideal de sociedade (“bem ordenada”), de forma a assegurar a proteção
recíproca dos interesses fundamentais que os membros de uma tal sociedade
supostamente possuem, portanto, os seus direitos básicos. Isso nos remete, mais
uma vez, a uma noção normativa de pessoa moral, não apenas livre, mas igual,
isto é, na medida em que todos são igualmente livres. A normatividade implícita
nesta reformulação do ideal kantiano de pessoa é correlata à estruturação
institucional da sociedade, e é neste sentido jurídico preciso que podemos
dizer que as pessoas modelam a sociedade na mesma proporção em que são por esta
modeladas --muito reminiscente da correlação entre alma e polis
“...as pessoas não se
concebem como se fossem inevitavelmente vinculadas a qualquer arranjo
particular de interesses fundamentais; ao contrário, elas se percebem como
capazes de rever e modificar esses fins terminais. Elas desejam, portanto, dar
prioridade a sua liberdade para fazer isso, e assim sua lealdade original e
contínua devoção aos seus fins devem ser formadas e afirmadas sob condições que
são livres. Ou, para dizer em outros termos, os membros de uma sociedade bem
ordenada são vistos como responsáveis pelos seus interesses e fins
fundamentais. Embora enquanto membros de associações particulares alguns possam
decidir na prática delegar esta responsibilidade para outros, a estrutura
básica não pode ser construída de forma a prevenir que as pessoas desenvolvam
sua capacidade de serem responsáveis ou que obstruam seu exercício da mesma uma
vez a tenham alcançado. Os arranjos sociais devem respeitar a sua autonomia e
esta aponta para a propriedade dos dois princípios.”(Rawls, 2001, p. 260)
Na
Teoria da Justiça, as duas primeiras
partes tratam do que Rawls denomina uma teoria ideal da justiça, enquanto a
terceira diz respeito à teoria não-ideal. Trata-se portanto de articular o
trabalho meta-teórico dos procedimentos formais da moral com o seu correlato
substantivo normativo: a fim de problematizar a sociedade como ela é, deve-se
partir de uma análise deontológica, qual seja, a de como ela deveria ser para
ser caracterizada como uma sociedade justa. No nível da teoria ideal,
encontra-se propriamente a sua idéia de um igualitarismo liberal, através dos
conceitos da “posição original” e da “sociedade bem-ordenada”. A teoria
não-ideal procura demonstrar a exeqüibilidade da justiça como eqüidade, na
medida em que a cultura política, movimentos sociais e reformas constitucionais
viabilizam, pelo “equilíbrio reflexivo”, uma aproximação cada vez maior dos
ideais de justiça, liberdade e igualdade propostos. Rawls procura esquivar-se
assim do positivismo jurídico, de um lado, e das definições materiais da
justiça (do jusnaturalismo clássico), de outro. É precisamente este modelo procedimental,
formal, de articulação entre regras (procedimentos) e práticas (instituições)
que caracteriza o trabalho conceitual da obra de Rawls como um todo e a
aproxima dos projetos políticos de Platão e Kant. No Liberalismo Político, Rawls reafirma que a teoria ideal (“which
defines a parfectly just basic structure”) é um complemento necessário para a
teoria não-ideal “sem a qual o desejo de mudança carece de propósito” (without
which the desire for change lacks an aim).(Rawls, 1996, p. 285) Mais uma vez,
Rawls defende aqui seu modelo de uma teoria puramente procedimental (a purely
procedural theory) mas cujos princípios estruturais são capazes de substantivar
e efetivamente tornar a nossa ordem social vigente em uma ordem cada vez mais
justa, em direção ao ideal de uma estrutura básica eqüitativa (a fair basic
structure). Assim, a articulação entre a
teoria ideal e a teoria não-ideal atinge todo o seu vigor climático para uma
teoria da democracia, que a meu ver permeia a original contribuição de Rawls para
a teoria política do nosso século. Embora não possa desenvolver este ponto
aqui, creio que neste sentido muitas críticas dirigidas ao Direito dos Povos são errôneas, sobretudo no que diz respeito à
lista minimalista dos direitos humanos evocados por Rawls (the right to life and to personal security, the right to personal
property, the right to the requirements of a legal rule, the right to a certain
amount of liberty of conscience and association, and finally the right of
emigration). Segundo tais críticos, o projeto de Rawls teria fracassado ao
excluir de sua lista dos direitos humanos universais fundamentais direitos tais
como o de um governo democrático, da igualdade política ou o direito a uma
distribuição igualitária ou welfrista de bens materiais. Gostaria de concluir
afirmando que, justamente por se tratar de uma teoria não-etnocêntrica, não
concordo (1) que haja uma tal exclusão e (2) que não seja contemplada a
possibilidade de intercâmbios e de trocas interculturais, capazes de enriquecer
cada vez mais nossa compreensão do que sejam os direitos humanos ou o escopo
político-pragmático de tais direitos, de forma a incluir valores e
contribuições de povos não-eurocêntricos, não-cristãos e não-ocidentais. (1) A
própria concepção de um consenso sobreposto (overlapping consensus),
evita a tentação de reduzir o modelo procedimental do “liberalismo político” a
uma cosmovisão (world view, Weltanschauung) ou doutrina abrangente
(moral, religiosa, ideológica ou mesmo filosófica!). Embora tal concepção seja,
com efeito, “filosófica”, o consenso sobreposto se refere reflexivamente a uma
razão pública irredutível a quaisquer filosofias ou doutrinas abrangentes.
Creio que aqui reencontramos a dimensão histórico-pragmatista do argumento
rawlsiano, neste sentido mais defensável do que as leituras alternativas de
tomar o liberalismo político como uma doutrina abrangente ou de praticar o
proselitismo democratizante do imperialismo americano ou de outros projetos na
esteira do argumento de Trasímaco (“a justiça é a lei do mais forte”). (2)
Assim, o sentido substantivo da humanidade (muito próximo, convenhamos, da
versão material do imperativo categórico kantiano, qual seja, de tratar sempre
a humanidade também como um fim em si) adquire toda sua força normativa. O ser
humano é um fim terminal (Endzweck), sagrado, digno de ser preservado
em sua integridade e inviolabilidade, enfim, em sua própria constituição
empírico-transcendental, para além de todos os reducionismos empíricos e
transcendentais. Creio que a filosofia política de Rawls nos ajuda a entender,
afinal, por que os direitos humanos exigem uma fundamentação filosófica ao
mesmo tempo em que não se deixam reduzir a nenhuma filosofia ou pretensão de
verdade --metafísica ou não.
Introdução: Fenomenologia semântico-transcendental
Perspectivismo
Ética e Natureza Unisinos
1. Significação do Mundo: Da semântica transcendental
do Tractatus à desconstrução do
significado nas Philosophische
Untersuchungen de Wittgenstein
Bipolaridade da proposição teoria das representações e
teoria do enunciado
Witt
1.1
1.2
1.3
2. Episteme, Theoria, Praxis: O Legado
Platônico-Kantiano da Epistemologia Moral
teoria ideal e teoria não-ideal
kant direito pelotas
-
Aristoteles Begriffe der Ousia, Theoria und Praxis
-
Contrário a correntes da suspeita radical
pós-moderna e da condenação dos processos civilizatórios da chamada civilização ocidental. (supostamente
benéfica: resposta de Rousseau sobre progresso moral que não parece acompanhar
um indiscutível progresso nas artes e nas ciências
Questão da especificidade da filosofia
2.1 - Hume e o Problema da Epistemologia Naturalizada
2.2 - Justiça e Igualdade em Platão
2.3 - Igualdade, Theoria,
Praxis: O Transcendental Kantiano
2.4 - Teoria Ideal e Não-Ideal em Rawls
3. Karl Marx antropologia e trabalho, Desconstruindo a
libertação theologia praxis
natureza humana: trabalho e espécie genérica
3.1 –
3.2
- Derrida como árbitro entre Lutero e Marx Howard
3.3
-
3.4
-
4. Kant über
Theorie und Praxis Habermas-Kant-pedagogia-processos de aprendizagem
Pierre KERSZBERG, Critique and
Totality (Albany, NY: SUNY Press, 1998), Studia Kantiana 2 (2000).
5. Hegel contrato comunitarismo
6. Artigo: “Ética e Estética
na Terceira Crítica de Kant,” Veritas
45/4 (2001): pp. 312-321.
6.1 -
6.2 -
6.3 -
6.4 -
7. Derrida e o après-Hegel: Desconstruindo a
fundamentação normativa da modernidade
7.1 -
7.2 -
7.3 -
7.4 -
8. Rawls Judiciario FilPol
8.1 - A guinada lingüístico-pragmática em filosofia
política
8.2 - Mundo da vida, fenomenologia e filosofia
analítica
8.3 - Problemas analítico-hermenêuticos
8.4 - A presentação do mundo
9. Direitos Humanos Kant Rawls Pessoa
Conclusão
[1] Cf. Pauline
Kleingeld, “Kant on the Unity of Theoretical and Practical Reason,” The Review of Metaphysics 52 (1998): pp.
500-528.
[2] Cf. os Prolegômenos às Investigações Lógicas e os escritos da Crise, de Edmund Husserl.
[3] Cf. Amy Gutmann, “Rawls on the
Relationship between Liberalism and Democracy,” in
Samuel Freeman (org.), The
[4] Norman
Daniels (org.),
[5] Cf. F.
Kaulbach, Studien zur späten
Rechtsphilosophie Kants und ihrer transzendentalen Methode. Würzburg, 1982; Z. Loparic, A semântica transcendental de Kant.
[6] Cf. Z. Loparic, “Acerca da sintaxe e da semântica
dos juízos estéticos”, “O problema fundamental da semântica jurídica de Kant”,
in Daniel Perez (org.), Kant no Brasil.
São Paulo: Escuta, 2005, pp. 231-313.
[7] Jean-Jacques Rousseau, Du contrat
social, ou principes du droit politique (1762), Livre I.1.
[8] Ibidem.
[9] Cf. Michael Smith, Meta-Ethics. Aldershot: Dartmouth,
1995.
[10] Tractatus ethico-politicus.
Genealogia do ethos moderno.
Porto Alegre: Edicpucrs, 1999.
[11] Cf. R. Audi, Moral Knowledge and Ethical
Character.
[12] Cf. Philip Petit, “The contribution of analytical philosophy” e
David West, “The contribution of continental philosophy”, in Robert Goodin and
Philip Petit (eds.), A Companion to
Contemporary Political Philosophy.
[13] QUINE, W.V. “Epistemology Naturalized”, in Ontological Relativity and Other Essays.
[14] BECK, L.W. A Commentary on
Kant’s Critique of Practical Reason.
[15] DESCARTES, R. Discours de la
méthode. Troisième Partie.
[16] Cf. Tractatus ethico-politicus (Edipucrs, 1999) e Tractatus theologico-philosophicus.