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.Exposição
apresentada no dia 30/07/96, na mesa V (Povos Indígenas)
do Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o
Neoliberalismo, perante a comunidade tzeltal de La
Garrucha e os participantes do encontro em sessão plenária.
Companheiras e companheiros do Comando!
Irmãs, irmãos, irmãzinhas e irmãozinhos de La
Garrucha!
Irmãs e irmãos do Encontro Intercontinental!
Tomar consciência do momento histórico em que vivemos.
Considero importante que tomemos consciência do momento
histórico que os irmãos Zapatistas têm nos chamado a
vivenciar neste encontro intercontinental. Para fazê-lo,
temos que inseri-lo na história do movimento indígena,
não só chiapaneco e mexicano, mas continental e mundial,
que, no meu entendimento, representa o acontecimento mais
significativo e mais prometedor deste fim de milênio. Um
acontecimento chamado a marcar de maneira determinante a
orientação do Terceiro Milênio.
Para todos os mexicanos conscientes, está claro que a
insurreição Zapatista divide a história moderna do México
em duas partes: antes e depois do primeiro de janeiro de
1994. Além disso, eu me pergunto, e pergunto a vocês,
se a explosão do movimento indígena continental e
mundial da última década não irá dividir em duas
partes a história moderna do continente americano e,
quem sabe, do mundo inteiro.
Então, inserir o nosso encontro na história do
movimento indígena mundial significa inseri-lo na história
do mundo. Significa interrogar-nos sobre o papel dos
povos indígenas na avaliação da civilização que os
excluiu e na construção de um mundo novo onde caibam
todos os mundos.
Os cinco Aguascalientes que acolhem o encontro
intercontinental, construídos em comunidades indígenas
e por comunidades indígenas, com o apoio da sociedade
civil mexicana, são o símbolo e o anúncio da nova história
que hoje começamos e para a qual o nosso encontro
intercontinental pretende contribuir. Pela primeira vez
em sua história e na história do mundo, os povos indígenas
projetam e constroem autonomamente grandes centros de
reunião e de mobilização política e cultural. Pela
primeira vez em sua história e na história do mundo, os
povos indígenas de Chiapas convocam seus irmãos de todo
o país, colocando a urgência de construir entre eles
uma nova unidade e, portanto, uma nova força histórica.
Pela primeira vez em sua história e na história do
mundo, os indígenas convocam todos os povos do mundo com
o objetivo de promover uma solene condenação da
civilização do mercado e da morte e de planejar a
construção de uma nova civilização na qual todos
tenham o direito de viver, de pensar, de amar, de cantar
e de sonhar.
A resposta de uma multidão tão grande e entusiasta que
recebeu o chamado Zapatista significa um reconhecimento
universal da autoridade moral e política do movimento e,
particularmente, dos povos indígenas que o constituem;
significa que reconhecemos o alcance universal de sua
mobilização e de sua perspectiva histórica, que
reconhecemos a eles um papel conscientizador para com
toda a humanidade; que reconhecemos a contribuição que
os povos indígenas, na atual crise de valores e certezas,
podem oferecer à construção de uma nova civilização.
A tarefa da nossa mesa.
Dentro desta perspectiva histórica, exigente e exaltante,
a nossa mesa tem uma tarefa fundamental. Parece-me que a
nossa tarefa não é a de repetir o trabalho realizado de
forma brilhante pelos irmãos Zapatistas em relação a
seus convidados e assessores na primeira e na segunda
mesa do diálogo de Sacamch&rsquoen. Tampouco, a
nossa tarefa é de prolongar o debate desenvolvido com
grande seriedade pelos 135 delegados de 44 organizações
indígenas e 28 agremiações educativas, sociais e políticas
reunidas no Segundo Foro Nacional Indígena Permanente.
É claro que a nossa tarefa situa-se na mesma diretriz
destes encontros. Mas seu caráter específico surge da
inserção na dinâmica de um encontro intercontinental e
dos problemas que ele coloca para o futuro da humanidade
no Terceiro Milênio. Nossa tarefa é a de definir a
contribuição que o movimento indígena mexicano,
continental e mundial, pode oferecer à construção de
uma nova civilização.
A nossa tarefa é de aprofundarmos a nossa conscientização
de que em tempos de globalização, não se pode pensar
numa transformação do Estado mexicano que não inclua
uma transformação do mundo: não se pode pensar numa
libertação dos povos indígenas que não implique na
libertação de todos os povos oprimidos. Nossa tarefa é
de proclamar perante os horizontes mundiais colocados
pela insurreição Zapatista, a necessidade de uma aliança
mundial dos excluídos e rebeldes, construída em torno
dos povos indígenas insurretos.
Parece-me que esta perspectiva universal e mundial é um
dos grandes traços do movimento Zapatista. Sua convocação
nacional e internacional vem da capacidade que tem
mostrado, não só de utilizar os mais modernos meios de
comunicação, e sim, de mostrar que os problemas
impostos pela marginalização de Chiapas ultrapassam
amplamente os problemas indígenas e envolvem as grandes
maiorias oprimidas do país; de mostrar que os problemas
implícitos na marginalização de Chiapas deitam raízes
no sistema econômico e político que constitui a nova
ordem mundial.
Lendo os riquíssimos documentos produzidos pela primeira
e a segunda mesa do diálogo de Sacamch&rsquoen e
comparando o ponto de vista do Exército Zapatista e do
Governo Federal, se descobre que um dos principais
elementos de divergência é justamente esse: os
Zapatistas insistem no alcance nacional e universal dos
problemas e das reivindicações, enquanto o governo
pretende restringir os problemas e as reivindicações
aos indígenas de Chiapas.
A conseqüência mais evidente deste contraste é que
onde os Zapatistas pensam que os problemas setoriais e
locais não encontrarão solução sem uma profunda
transformação política, econômica, social e cultural
de todo o país, o governo pensa de poder responder de
forma adequada com pequenas concessões setoriais e
locais; e onde os Zapatistas colocam a necessidade de uma
nova constituição, o governo pensa em resolver o
assunto com a reforma de alguns artigos.
Um dos grandes méritos históricos do movimento
Zapatista é justamente o de ter imposto à consciência
mexicana e internacional o tema da profunda convergência
entre os sofrimentos, os problemas, as reivindicações
dos povos indígenas e das maiorias marginalizadas do México
e do mundo inteiro; o de ter imposto a evidência de que
na história de hoje e de amanhã, os marginalizados já
não são marginais.
Ao colocar a problemática indígena numa perspectiva
mundial, sabemos que não estamos nos afastando de uma
realidade concreta e quotidiana, mas que estamos nos
aproximando melhor dela em suas dimensões mais profundas,
que encontramos as próprias raízes dos problemas e dos
sofrimentos.
Seria uma grave erro estratégico por parte dos que lutam
seriamente por uma mudança se, em nome do concreto e da
prática, deixássemos definitivamente às forças dos
impérios o papel de liderar o mundo e de determinar o
nosso futuro. Ao contrário, ao propor-se como objetivo o
questionamento do neoliberalismo, o nosso encontro
internacional questiona exatamente a atual organização
do mundo. Mas, sobretudo, se propõe como objetivo a
busca de alternativas ao neoliberalismo, pretende, como
perspectiva longínqua, mas efetiva, planejar uma nova ação
política e econômica no mundo.
O fatalismo contra a esperança.
Sabemos perfeitamente que, ao colocar os problemas com
esta amplitude e radicalidade, não estamos tornando-nos
mais simples, e sim, muito, mas muito mais complexos.
Quando, sobre as bases de análises objetivas, se
descobrem as imensas dimensões dos problemas que temos
à nossa frente, é muito forte a tentação de pensar
que, em última análise, são problemas insolúveis. É
assim que em cada consciência e na consciência do mundo
explode um acirrado conflito entre o fatalismo e a
esperança. Talvez, o conflito mais grave e mais decisivo
da história atual.
A cultura que o neoliberalismo pretende impor ao mundo é
a cultura do fatalismo. O fatalismo e a descrença têm
se convertido na essência do chamado "pensamento único"
que domina o mundo atual e o paralisa. O seu êxito mais
decisivo e mais trágico, é a convicção que já
penetra a consciência e o inconsciente das grandes
maiorias, de que este sistema não tem alternativas, de
que ele é a última palavra da história. É uma convicção
trágica para as grandes maiorias, porque significa que,
definitivamente, não há uma alternativa de vida ao
sistema de morte.
É uma convicção que, nestas duas últimas décadas,
penetrou também na consciência de muitos militantes e
ex-militantes, que têm abandonado os ideais e a paixão
política de sua juventude, têm se convertido ao
realismo e têm caído no desencanto.
É uma convicção que penetrou, inclusive, na cultura da
esquerda de nossos países que, ao aceitá-la, perdeu sua
identidade, sua razão de ser e sofreu assim sua derrota
final. O que significa, hoje, em muitos de nossos países,
ser de esquerda? Muito pouco, quase nada.
Pergunto a mim mesmo se a escassa presença da esquerda
oficial neste encontro contra o neoliberalismo não
significa que muitas organizações, supostamente de
esquerda, têm deixado de lutar contra o neoliberalismo e
têm subido no carro do triunfador.
Por que os Zapatistas e os indígenas do mundo se
mobilizam?
Neste contexto internacional, o chamado do Exército
Zapatista a formar aqui a internacional da esperança
ganha todo o seu sentido. Sem dúvida, cabe perguntar-se:
com que direito os Zapatistas lançam ao mundo um chamado
tão paradoxal e tão anacrônico?
Eu diria: com o direito conferido por sua mobilização e
a de tantos indígenas do país contra a ditadura
nacional e internacional do mercado. Com o direito que
lhes é conferido pela mobilização dos povos indígenas
do mundo inteiro contra o sistema de morte. Com o direito
que lhes conferem estes 504 anos de resistência a uma
civilização genocida e etnocida.
E, além do mais, é mais que legítimo perguntar-se:
como se explica que os Zapatistas, perfeitamente
conscientes da enorme complexidade dos problemas que
colocam, perfeitamente conscientes da grande desproporção
que existe entre suas forças e as de seu principal
inimigo, do bloqueio imperialista supranacional,
perfeitamente conscientes da impossibilidade de um
triunfo militar, se atrevem, sem dúvida, a jogar sua
vida numa luta tão desigual?
A mesma pergunta surge a propósito de todas as lutas que
os indígenas estão desencadeando em vários países do
continente e do mundo. Em geral, é evidente sua extrema
inferioridade política, militar e econômica diante do
inimigo. Sem dúvida, sobretudo na última década, eles
insurgem, se mobilizam, se organizam, lutam, caem e se
levantam. Obviamente, lutam para vencer; lutam porque
confiam em sua força e na de seus aliados; lutam porque
esperam contra toda esperança.
Eles pensam, e acabam de reafirmá-lo na inauguração
deste encontro, que um sistema de opressão não pode ser
eterno; que a força do direito, da justiça, da
solidariedade, do amor, acabarão por triunfar sobre o
direito da força; que Davi (o comandante Davi)! acabará
por triunfar sobre Golias. Eles pensam que se o triunfo
militar não é possível, o é o triunfo moral e político.
Parece-me muito importante que a nossa solidariedade com
o Exército Zapatista se manifeste também valorizando
perante a opinião pública internacional a estratégia
essencialmente não violenta e antimilitarista deste
movimento guerrilheiro. É claro que os Zapatistas
tiveram que empunhar as armas para poder tomar a palavra
e é evidente que para transformar a sociedade mexicana e
para construir um mundo novo, eles não apostam na força
das armas e sim, na força do direito. E em nosso
encontro continental, uma das coisas que mais
impressionam é o contraste entre a pobreza dos meios e a
riqueza do ideal que perseguimos. Além do mais, esta opção
ético-política e estratégica não é própria do Exército
Zapatista, mas é comum à grande maioria das organizações
indígenas.
Partilhar a esperança Zapatista.
Agora, a nossa solidariedade com o Exército Zapatista e
com o movimento indígena mundial seria bastante frágil
se nos limitássemos a partilhar sua luta sem partilhar
sua esperança. Parece-me ser este o sentido profundo do
chamado Zapatista a construir, no nosso encontro
intercontinental, a internacional da esperança.
Os Zapatistas sabem que o direito, a justiça, a
solidariedade e o amor se convertem em forças históricas
transformadoras e libertadoras somente se chegam a
penetrar na consciência das grandes massas e a mobilizá-las.
Além do mais, se estas forças históricas pretendem ser
o ponto que levanta e transforma o mundo, é necessário
que elas penetrem e mobilizem a consciência dos
oprimidos do mundo inteiro. É necessário que elas
consigam construir, ao redor dos Zapatistas e dos indígenas
do mundo, um novo bloco popular que se contrapõe ao
bloco imperial do Norte. Este novo bloco popular de
alcance mundial parece-me ser o conteúdo político e
moral mais profundo da internacional da esperança que
queremos fundar.
Este encontro teria realmente uma importância enorme
para o futuro se todos saíssem daqui partilhando
plenamente a esperança Zapatista, a esperança indígena.
Se saíssemos daqui partilhando a convicção de que é
possível uma alternativa ao sistema de morte, que
podemos construi-la todos juntos, que o nosso mesmo
encontro é uma pedra importante na construção de um
novo futuro; se saíssemos daqui decididos a difundir a
mensagem Zapatista de esperança entre todos os irmãos e
irmãs do mundo, especialmente os que, depois de anos de
militância entusiasta, têm caído vítimas do
desencanto e do desespero. Se saíssemos daqui gritando,
com profunda convicção, "Somos todos indígenas!
Somos todos zapatistas!"
Muitos de nossos compatriotas nos lembrarão que esta
esperança está completamente fora do tempo. Que ela
contradiz o "pensamento único", ou seja, o
pensamento do homem moderno, do homem normal. Nos dirão
que partilhar a esperança zapatista é partilhar sua
loucura. Então que seja. Queremos que do nosso encontro
saia uma grande conspiração dos loucos, se é verdade
que, hoje em dia, só os loucos são capazes de esperar e
de lutar por um mundo onde a exclusão deixe de ser algo
normal, por um mundo no qual caibam todos os mundos.
A esperança zapatista e indígena nos lembra uma
mensagem do revolucionário russo Bakunin: "É
apostando no impossível que, ao longo da história, tem
se avançado no descobrimento e na realização do possível.
E todos os que têm se contentado sabiamente em acreditar
no possível não avançaram um único passo".
VIVA A INTERNACIONAL DA ESPERANÇA!
VIVA O EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL!
Giulio Girardi é filósofo, teólogo da libertação e
membro do Tribunal Permanente dos Povos
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para: emiliogennari@mandic.com.br
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