Sexta-feira, 24 de março de 2000
   

 
REDE DE RESISTÊNCIA ALTERNATIVA

 



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Os 'amos libertadores' nos pedem obediência hoje em nome de uma libertação que veremos amanhã, mas amanhã é sempre amanhã. Por isso, propomos aos amos libertadores (delegações políticas, dirigentes burocratizados e outros militantes tristes) a libertação aqui e agora e a obediência, amanhã."

Manifesto Inaugural



trad. de http://www.sinectis.com.ar/u/redresistalt/index.html

por Railton Sousa Guedes - railtong@g.com  

 
1. Resistir é criar
Contrariamente à posição defensiva na qual se encontram a maioria dos movimentos e grupos de resistência ou alternativos, achamos que a verdadeira resistência passa pela criação, aqui e agora, de laços e de formas alternativas que levantem movimentos, grupos e pessoas, os quais através de uma militancia pela vida, superem o capitalismo e a reação. Cremos que, a nível internacional, assistimos hoje ao começo de uma contraofensiva, depois de um longo tempo de dúvidas, recuos e destruição das forças alternativas. Este retrocesso tem sido amplamente aproveitado pelas forças do neoliberalismo e do capitalismo para destruir uma boa parte do que foi construído ao longo de cento e cincoenta anos de lutas revolucionárias. Assim, resistir é criar novas formas, novas hipóteses teóricas e práticas que estejam à altura do desafio atual.
 

2. Resistir à tristeza
Vivemos uma época profundamente marcada pela tristeza. Não apenas a tristeza das pessoas, mas sobretudo, a tristeza da incapacidade. Os homens e as mulheres de nosso tempo vivem na certeza de que a complexidade da vida é tal que a única coisa que podemos fazer, sob pena de aumentá-la, é nos submetermos à disciplina do economicismo, do lucro e do egoísmo. A tristeza social e individual nos corrói e nos convence de que não temos mais os meios de viver uma vida verdadeira e assim nos submetemos à órdem e à disciplina da sobrevivência. O tirano precisa da tristeza porque assim, cada um de nós se isola em seu pequeno mundo, virtual e inquietante, pois os homens tristes necessitam do tirano para justificar sua tristeza. Cremos que o primeiro passo contra a tristeza (os efeitos do capitalismo em nossas vidas) é a criação de laços solidários e concretos. Romper o isolamento. O compromisso vêm da solidariedade, de uma militancia que não funciona mais "contra" mas "pela" vida, pela alegria, através da libertação da capacidade humana.
 

3. Resistência é diversidade
A luta contra o capitalismo, que não pode restringir-se à luta contra o neoliberalismo, implica práticas de diversidade. O capitalismo inventou um mundo único e unidimensional, mas esse mundo não existe "em si". Para que possa existir exige nossa submissão e nossa concordância. Esse mundo unificado, que é um mundo transformado em mercadoria, se opõe à multiplicidade da vida, se opõe às infinitas dimensões do desejo, da imaginação e da criação. Se opõe, fundamentalmente, à justiça. É por isso que nós cremos que toda luta que se pretenda global e totalizante contra o capitalismo se desenvolva fora das estruturas que são próprias do capitalismo ou do globalismo. A resistência deve aflorar e se desenvolver a partir das diversidades mediante a criação de laços de solidariedade e de ajuda, mas em nenhum momento de uma direção ou de uma estrutura que o globalize, que centralize estas lutas.
 

4. Resistir é um centro difuso
Uma rede de resistência que respeite a diversidade é um círculo que possui, poética e paradoxalmente, seu centro em todas as partes.
 

5. Resistir é não desejar o poder
Cento e cincoenta anos de revoluções nos ensinaram que, contrariamente à visão clássica, o lugar do poder, os centros de poder, são por sua vez centros de mínima capacidade ou mesmo de incapacidade. O poder se ocupa - digamos - da gestão, e não tem, em si mesmo, a possibilidade de se modificar a partir do cume da estrutura social sem que as forças contidas na base o permitam. A capacidade se encontra, portanto, forçosamente separada do poder constituído. É por isso que, a nosso ver, as coisas que acontecem "de cima"  tem a ver com a gestão e a política, em sentido nobre, e as coisas que acontecem "em baixo", tem a ver com o poder constituído. É por ele que a resistência alternativa será potente na medida em que abandone a inação, ou seja, o dispositivo político clássico que posterga e espera, invariavelmente por um "amanhã", por um porvir, pelo momento da liberdade. Os "amos libertadores" nos pedem obediência hoje em nome de uma libertação que veremos amanhã, mas amanhã é sempre amanhã. Por isso, propomos aos amos libertadores (delegações políticas, dirigentes burocratizados e outros militantes tristes) a libertação aqui e agora e a obediência, amanhã.   
 

6. Resistir à seriedade
O poder mantém e dissemina a tristeza apoiado na ideologia da insegurança. O capitalismo não pode existir sem sizudez, sem dividir, sem separar. E a separação triúnfa quando, pouco a pouco, as pessoas, os povos, as nações, passam a viver sob a égide da insegurança. Nada é mais fácil que disciplinar um povo de ovelhas convencidas de que são, todos e cada um, um lobo para o outro. A insegurança e a violência são reais, mas somente na medida em que a aceitamos, ou seja, que aceitemos esta ilusão ideológica que nos faz crer que somos, cada um de nós, um indivíduo isolado dos demais. O homem triste vive como se o seu papel fosse meramente decorativo; os outros é que são os figurantes. A natureza, o mundo e os animais são "utilizáveis", e cada um de nós, o protagonista central e único de nossas vidas.
O indivíduo não é uma pessoa, o indivíduo é uma ficção, uma etiqueta; a pessoa, em troca, é cada um de nós desde que tenha os olhos abertos à realidade de pertencer a este todo substancial que é o mundo. Trata-se de rechaçar as etiquetas de: profissão, nacionalidade, estado civil, desempregados, empregados, descapatitados, etc., detrás das quais o poder intenta uniformizar e pasteurizar a diversidade que cada um de nós representa. Nós somos diversidades mescladas com diversidades. É por isso que o laço social não é algo que deva apenas ser construído, deve também ser também assumido. Os indivíduos, as etiquetas, vivem e reforçam o mundo virtual. Recebem notícias de suas próprias vidas através da tela da televisão. A resistência alternativa implica em dar um lugar ao real dos homens, das mulheres, da natureza. Os indivíduos encontram-se como tristes sedentários amarrados em suas etiquetas e regras. É por isso que a alternativa implica assumir um nomadismo libertário.
 

7. Resistir sem amos
A criação de uma vida diferente passa, fundamentalmente, pela criação de alternativas, de modos de vida, de modos de desejar. Se nós desejamos o que pussui o amo, se desejamos da mesma maneira que o amo, estaremos condenados a repetir as famosas revoluções mas, no sentido em que a física tem  dado à palavra "revolução", ou seja, uma volta completa em torno de um mesmo ponto. Trata-se assim de inventar e de criar concretamente novas práticas e imágens de felicidade. Se nós pensamos que somente podemos ser felizes da maneira individualista do amo e pedimos uma revolução que nos dê satisfação estaremos condenados eternamente a mudar de amos.
Há que se criar um comunismo não de obrigatoriedade mas de voluntarismo que gera solidariedade. Não se deve compartilhar com tristesa, ou seja, como se fôssemos forçados a fazer isso. Há que se descobrir o gozo de uma vida mais plena, mais livre. Na sociedade da separação, da atomização, ou seja, na sociedade capitalista, os homens e as mulheres não encontram o que desejam, devem contentar-se em desejar o que encontram. A separação é separação uns dos outros, de cada um de nós com o mundo, do trabalhador com seu produto, o que resulta em cada um de nós, separados, exilados de nós mesmos. Esta é a estrutura da tristeza.
 

8. Uma política de liberdade
Com efeito, a política, em seu sentido profundo, tem a ver com práticas emancipatórias, com idéias e imágens de felicidade que derivam delas. A política é a fidelidade na busca ativa da liberdade. Complementando essa idéia, política se eleva a política como gestão.
A gestão é um momento, é uma tarefa, é um aspecto. Mas este elemento almeja o todo. Reclama o todo da política. Demanda toda a atenção e hierarquiza as prioridades, limitando, freando e institucionalizando as energias vitais que a impulsionam. A gestão é representação, e a representação como tal é apenas parte do movimento real. Este - movimento real - não necessita de representação para viver.
A política revolucionária é aquela que a todo momento persegue a liberdade mas, em sua essência, não se associa a homens ou a instituições. Como um dever permanente não aceita atar-se, fundir-se, encarnar-se, nem institucionalizar-se. A busca da liberdade se vincula com a constituição do movimento real, da crítica prática, do questionamento permanente e do desenvolvimento ilimitado da vida. Neste sentido a política revolucionária não se contrapõe à gestão. Em todo caso o que se contrapõe à política revolucionária é a sua separação e não a aplicação da gestão.
A política como tal não é mais que a harmonia da diversidade da vida em conflito permanente com seus próprios limites. Liberdade é o desprendimento de capacidades, a gestão é apenas um momento limitado e circunscrito em que este desprendimento aparece.
 

9. Resistência e contracultura
Resistir é criar e desenvolver contrapoder e contracultura. A criação artística não é um luxo do homem, é uma necessidade vital da qual as imensas maiorias se encontram privadas. Na sociedade da tristeza, a arte foi separada da vida ainda mais, a arte está cada vez mais separada da própria arte, porque está possuída, gangrenada, por valores comerciais. É por isso que os artistas entendem, talvez melhor que muitos, que resistir é criar. A eles também nos dirigimos, para que a criação supere a tristeza, a separação, para que a criação possa libertar-se da égide do dinheiro e recupere seu lugar no seio da vida.
 

10. Resistir à separação
Resistir é, por sua vez, superar a separação capitalista entre teoria e prática, entre o engenheiro e o trabalhador, entre a cabeça e o corpo. Uma teoria que se separa das práticas se transforma em uma idéia estéril. Dessa forma, em nossas universidades, existem miríades de idéias estéreis, uma vez que as práticas que se separam da teoria estão condenadas a desaparecer com o tempo numa espécie de auto reabsorção. Resistir, então, é criar os laços entre as hipóteses teóricas e as hipóteses práticas, que todo aquele que saiba fazer algo saiba também transmití-lo para aqueles que desejam libertar-se. Fazendo assim estaremos criamos as relações, os laços, que fortalecem teorias e práticas de emancipação, longe dos cantos de sereia que nos propõem "ocuparmos nossas vidas". Dessa forma, nossas vidas se extenderão além dos limites de nossa pele.  
 

11. Resistir à normalização
Resistir significa destruir o discurso falsamente democrático que pretende ocupar-se dos setores e das pessoas excluídas. Em nossas sociedades, não existem "excluídos"; em nossas sociedades, estamos todos incluidos de maneiras diferentes, de maneiras mais ou menos indignas e terríveis, mas incluídos. A exclusão não é um acidente, não é uma excessão. O que eles chamam exclusão e insegurança é o que nós devemos entender como a própria essência desta sociedade que ama a morte. É por isso que lutar contra as etiquetas implica em nosso desejo de contatarmos com as lutas dos denominados "anormais" ou incapacitados. Em nosso entendimento, não há homem ou mulher anormal, não há homem ou mulher incapacitados. Existem pessoas e modos de ser diferentes. As etiquetas atuam como minicampos de concentração onde cada um de nós está limitado por um determinado nível de incapacidade. O que nos interessa é a capacidade, a liberdade. Um incapacitado existe somente em uma sociedade que aceita a divisão entre fortes e fracos. Se nós rechaçamos isto, que é a barbarie, não haverá o isolamento, a seleção do capitalismo.
É por isso que a alternativa implica em um mundo onde cada um de nós assume sua fragilidade e onde cada um de nós desenvolve o que pode, com os outros e pela vida. Conhecemos, por exemplo, a incrível riqueza da cultura sorda, criada na ocasião em que tanto homens como mulheres de corágem souberam explodir as cadeias da toxicologia médica, da mesma maneira, a luta contra a psiquiatrização da sociedade, e tantas outras lutas que, longe de serem pequenas lutas por um pouco mais de espaço, são verdadeiras criações que enriquecem a vida. Por isso, convidamos, também a resistir juntamente conosco, aos grupos que lutam contra a normalização da disciplina médico-social. O mesmo sucede com as formas de disciplinamento próprias dos sistemas educativos. A normalização opera aqui como uma ameaça permanente de fracasso ou desemprego. Existem em troca experiências paralelas, alternativas e diversas a respeito da escolarização nas quais os problemas ligados à educação aparecem em uma lógica diferente. 
Incapacitados, desocupados, presos, culturas marginalizadas, homosexuais, tudo isso são formas de classificação sociológica que operam separando e isolando a partir da incapacidade, do que não pode fazer, tornando unilateral e pobre, o múltiplo, o rico, o que pode ser visto como pleno de capacidade.
 

12. Resistir ao racismo
Resistir é, também, rechaçar a tentação de um racismo de identidade que separe nacionais de estrangeiros. A imigração, os fluxos migratórios não são um problema, são uma profunda realidade da humanidade, desde sempre e para sempre. Não se trata de ser filantropicamente bom para com os estrangeiros, trata-se de desejar a riqueza que a mestiçagem produz. Resistir é criar laços entre os "sem", sem teto, sem trabalho, sem papéis, os sem dignidade, os sem terra, todos os sem que não possuem a "boa cor de pele", a boa prática sexual, etc. Uma união de sem, uma fraternidade dos sem, não para ser "com" mas para construir sociedades donde não existam mais os sem e os com.
 

13. Resistir à ignorancia
Nossas sociedades que se apresentam como culturas científicas são, na realidade, do ponto de vista histórico e antropológico, o modo de ser de uma sociedade que tem produzido o maior gráu de ignorância que a epopéia humana jamais conheceu. Se em toda cultura os homens possuíam técnicas, nossa sociedade é a primeira propriamente possuída pela técnica. Noventa por cento de nossos contemporâneos são incapazes de saber o que se passa entre o momento em que eles apertam os botões e o momento em que o efeito desejado se produz. Noventa por cento de nossos contemporâneos ignoram a quase totalidade dos recursos e mecanismos do mundo em que vivem.
Assim, nossa cultura produz homens e mulheres ignorantes que, ao sentirem-se exilados de seu meio, podem destruí-lo sem mais delongas. A violência deste exílio é tal que, pela primeira vez, a humanidade se encontra frente a uma real e concreta - talvez inevitável - possibilidade de sua destruição. Nos dizem que dada a complexidade da técnica os homens devem aceitá-la sem compreendê-la, mas o desastre ecológico mostra que aqueles que crêem compreender a técnica estão longe de saber manejá-la. É urgente criar coletivos, núcleos, foros de socialização do saber para que os homens possam novamente fazer parte do mundo real. Hoje em dia, a técnica da genética nos põe diante de uma seleção entre os seres humanos de acordo com critérios de produtividade e benefício. O eugenismo, em nome do bem, bestializa a humanidade. Nos dizem, desde os mecanismos que ordenam nossas vidas, que já podemos proceder à clonágem de um ser humano, e nossa triste humanidade desorientada ignora até mesmo o que seja um ser humano. Estas são questões profundamente políticas que não devem cair em mãos de técnicos. A responsabilidade pública não deve desaguar em responsabilidade técnica.
 

14. Resistir permanente
Resistir é afirmar que, contrariamente ao que podemos crer, a liberdade não será nunca um porto de chegada. Paradoxalmente, a esperança nos mergulha na tristeza. A liberdade e a justiça existem somente aqui e agora, pelas vias que a constroem. Não há amo bom nem utopia realizada. A utopia é o nome político da essência da própria vida, a saber, o porvir permanente. É por isso que o objetivo da resistência não será jamais o poder. O poder e os poderes estão todos condenados a não alijar-se demasiado do que um povo deseja. É por isso que é sempre uma atitude de escravo crer que o poder decide o real de nossas vidas. É por isso que o homem triste - conforme dizíamos - necessita o tirano. Não é suficiente pedir aos homens que ocupam o poder que ditem tal ou qual lei, separadas das práticas da base social.
Não podemos, por exemplo, pedir a um governo que dite leis de solidariedade para com os estrangeiros se não construirmos esta solidariedade na base social. A lei e o poder, se são democráticos, devem
refletir o estado da vida real da sociedade. É por isso que nosso problema não é que o poder seja corrupto e arbitrário. Nosso problema e nosso desafio é a sociedade que este poder reflete, quer dizer, nossa tarefa, como homens e mulheres livres, é que existam os laços de solidariedade, de liberdade e amizade que impeçam realmente que o poder seja reacionário. Não há mais liberdade que as práticas de libertação.
 

15. A alternativa é luta
Não se pode realmente ser anticapitalista e aceitar, ao mesmo tempo, as imágens de felicidade e realização que o mesmo sistema gera. Se se deseja ser como o amo, ter o que o amo tem, se está em posição de escravo. O caminho da liberdade é incompatível com o desejo do amo. Precisamente da resistência surgem outras imágens da felicidade e da liberdade, imágens alternativas, ligadas a criação e ao comunismo.
Desejar o poder do amo é o oposto de desejar a liberdade. E a liberdade é porvir livre, é luta. A composição de laços aumenta a capacidade, a separação capitalista a diminue. A luta pela liberdade é a luta comunista para recuperar e aumentar a capacidade.
O capitalismo em mudança opera por abstração, por serialização e retificação, decompondo laços e mergulhando-nos na incapacidade. Por isso a luta pela liberdade e pela democracia são um moto constante que não encontra encarnação definitiva. Por isso a luta é sempre por encontrar-se com a capacidade, por compor laços, por alimentar o desejo de liberdade em cada situação concreta.
 

16. Resistência dos trabalhadores
A resistência e a criação de novas sociedades exige que pensemos a questão do chamado sujeito revolucionário, ou seja, a classe trabalhadora, personágem messiânico dentro do historicismo moderno. Contrariamente ao que pretendem os sociólogos pós modernos da complexidade, a classe trabalhadora não tende a desaparecer. Simplesmente, a função trabalhadora se desprende e se ordena geográficamente. Assim, se nos países centrais numericamente há menos trabalhadores, a produção afeta os chamados países periféricos, onde a exploração brutal de homens, mulheres e crianças garante enormes benefícios às empresas capitalistas.
Assim, nos países centrais, mediante a evocação da insegurança e do medo, se propõem às classes populares alianças nacionais para melhor explorar o terceiro mundo. A produção capitalista é uma produção difusa, desigual e combinada. É por ela que a luta, a resistência, deve ser múltipla, mas solidária. Não existe libertação individual ou setorial. A liberdade se conjuga somente em termos universais, ou seja, minha liberdade não termina onde começa a liberdade do outro, mas que minha liberdade não existe senão sob a condição da liberdade do outro. Em nosso entendimento, não existe um sujeito revolucionário, existem, de todas as maneiras, múltiplos sujeitos revolucionários.
Hoje em dia, vemos florescer coordenações, coletivos e grupos de trabalhadores que abarcam amplamente em suas reivindicações as mais diversas lutas setoriais. Estas lutas devem em cada singularidade, em cada situação concreta, superar os encarceramentos do amo, ou seja, rechaçar a separação entre empregados e desocupados, entre nacionais e estrangeiros. Não porque o empregado, o nacional, homem, branco, seja caritativo com o desempregado, o estrangeiro, a mulher, o descapacitado, o menor, mas porque toda luta que aceite e reproduza estas diferenças - diga-se isto claramente e de uma vez por todas - é uma luta que, por mais violenta que seja, respeita e reforça o capitalismo.
Mas a função operária também se manifesta em outro sentido. Da fábrica clássica como espaço físico privilegiado de constituição de valor à fábrica social, em que o capital assume a tarefa de coordenar e assumir todas e cada uma das atividades sociais. O valor se dissemina por toda a sociedade. Circula através das múltiplas formas de trabalho. A acumulação capitalista se amplia por toda a sociedade e, portanto, pode ser saboteada em qualquer ponto do circuito, mediante atos de insubordinação. O trabalho valoriza o mundo de formas múltiplas mediante a combinação de um complexo de tarefas puramente técnicas, profissionais, administrativas e criativas, sejam elas manuais ou intelectuais. Na base de todo o processo está a capacidade da cooperação como a força produtiva do valor.
 

17. Trabalho e o não trabalho
Parte da construção das hierarquias e classificações que se nos impôem surgem da confusão oriúndas das divisões técnicas do trabalho e da divisão social do trabalho. É que sob a noção de trabalho entendemos duas coisas diferentes. Por um lado uma atividade constitutiva, antropológica ou ontológica do homem, o conjunto das relações sociais que nos conformam, a perspectiva materialista da sociedade e da história. Mas por outro lado o trabalho é esse dever alienante, essa escravidão moderna sob a qual o capital nos separa em classes. É aquilo que nos faz sofrer quando o temos e quando não o temos. Abolir o trabalho neste último sentido é realizar as possibilidades da idéia comunista do trabalho, a do primeiro sentido.
As hierarquias que se fundam na unidimensionalização da vida na questão do trabalho alienado, do emprego, devem se dissolver na multiplicidade de saberes e práticas da vida.
O trabalho, do ponto de vista ontológico, o conjunto de atividades que efetivamente valorizam o mundo (técnicas, ciências, artes, políticas) são, por sua vez, uma fonte de democratização radical e um questionamento definitivo e total do capitalismo.
 

18. Resistir é construir práticas
Reistir não é, então, ter opiniões. Em nosso mundo, contrariamente ao que se crê, não há "pensamento único"; há quantidades de idéias diferentes. O que ocorre é que opiniões diferentes não implicam em práticas realmente alternativas e portanto essas opiniões são apenas opiniões sob o império do pensamento único, ou seja, da prática única. Há que se parar com esse mecanismo da tristeza que faz com que tenhamos opiniões diferentes e práticas únicas. Romper com o mundo do espetáculo significa não ser mais espectadores de nossa vida, espectadores do mundo.
Atacar o mundo virtual, este mundo que existe para nos disciplinar, para nos serializar, para fazer com que todos nós e cada um estejamos na mesma hora em frente a um televisor para nos informar, para nos dizer como deve ser o mundo, a economia, a educação, de maneira abstrata. Resistir é construir milhões de práticas, de núcleos de resistência que não se deixem engolir pelo que o mundo virtual chama "seriedade". Ser realmente sério não é pensar a globalidade e constatar nossa incapacidade. Sermos sérios implica construir, aqui e agora, as redes e laços de resistência que libertem a vida deste mundo de morte. A tristeza é profundamente reacionária. Ela é compreensível mas não deixa de ser reacionária. A tristeza nos faz impotentes. A libertação, finalmente é também libertação dos comissários políticos, em síntese, de todos estes turvos e tristes amos libertadores. É por isso que resistir é também incentivar a criar redes que nos retirem do isolamento. O poder nos quer isolados e tristes, sejamos alegres e solidários.
É neste sentido que nós não reconhecemos a militancia como uma escolha individual. Todos temos um determinado gráu de compromisso. Não existem os não militantes e os independentes. Todos estamos ligados. A questão é saber por um lado que gráu de comprometimento se tem e, por outro lado, saber de que lado da luta se está comprometendo.
 

19. Conectar-se é capacitar-se
Resulta imprescindível refletir sobre nossas práticas. Pensá-las, torna-las visíveis, inteligíveis, compreensíveis. Poder conceitualizar o que fazemos é parte da legitimidade de nossas construções e, ademais, da socialização de saberes entre o que pensamos fazendo e fazemos pensando. Sermos nossos próprios leitores, pensadores e teóricos de nossas práticas para evitar que nos empobreçam com leituras normalizadoras. Ser capazes de apreciar o valor de nosso trabalho.
 

20. Resistir é criar laços.
Este manifesto é um convite não à adesão a um programa ou menos ainda a uma organização.
Convidamos simplesmente aos homens e às mulheres, aos grupos e aos coletivos que se sintam refletidos nestas preocupações a entrar em contato conosco, a contar para nós vossas experiências e inquietudes para começar aqui e agora a destruir o isolamento.
Pedimos às pessoas que receberem este manifesto nos mais diferentes países a fotocopiá-lo e difundi-lo pelos meios que disponha.
De nossa parte, sem privarnos nem rechaçar métodos como internet, pensamos que seria melhor que este manifesto possa circular de maneira mais concreta de mão em mão.
Todos aqueles que sozinhos ou juntos queiram produzir comentários, propostas ou relatos, que os façam chegar até nós. Nós nos comprometemos a fazê-lo circular pela REDE DE RESISTÊNCIA ALTERNATIVA.
Ao não propomos contruir um centro ou direção colocamos a disposição dos companheiros e amigos o conjunto dos contatos da R.R.A. para que estes, projetos e diálogos não ocorram de forma concêntrica.
 

21. Coletivo de coletivos
Muitos de nossos coletivos e grupos possuem revistas ou publicações. Nelas se encontram experiências e saberes que podem ser proveitosos para outros grupos. A RRA se propõe acumular e por a disposição dos outros grupos estes saberes libertários que possam ajudar e capacitar a luta dos companheiros.
Centenas de lutas se esgotam pelo isolamento ou por falta de apôio. Centenas de lutas se vêem obrigadas, por assim dizer, a cobrir-se de cera. E cada luta que fracassa não é só uma "experiência", cada fracasso reforça, vacina o inimigo. Daí a necessidade de nos ajudarmos, de criar "retaguardas solidárias" para que cada pessoa, em qualquer lugar do mundo, que lute à sua maneira, em sua situação, pela vida e contra a opressão, possa contar conosco, como nós esperamos contar com vocês.
 

22. Anticapitalismo ativo
O capitalismo não cairá de cima para baixo. É por isso que na construção das alternativas não há projeto pequeno ou projeto grande.
 

Desde o outono de Buenos Aires, 1999.
Saudações fraternais a todos os IRMÃOS DA COSTA*.
  *"Irmãos da costa": saudação pirata.
Diferentemente dos corsários, traficantes, escravagistas e mercantilistas dos mares, os piratas eram comunistas e criavam comunas livres.
 

Firmas:
El Mate (Argentina)
Asociación Madres de Plaza de Mayo (Argentina)
Colectivo Amauta (Perú)
Malgré Tout (Pasís-Francia)
Colectif Che (Toulon-Francia)
Cllectif contre les expulsins (liege-Bélgica)
Centre Social (Bruselas-Bélgica)
 


   

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