Hierarquia e Religião

Embora a quase totalidade dos pensadores radicais repudiem aquilo que entendem por Religião, Deus, etc, nenhum deles poderia negar a presença desses valores e crenças no seio do povo e a sua constante manifestação em todas as civilizações desde tempos imemoriais. Buscar extirpar o sentimento religioso das multidões é como tentar podar algo inerente ao espírito humano.

Embora o conhecimento que um homem tem de Deus tenha que ser necessariamente expresso em termos humanos, infelizmente, tais termos nunca são suficientes para essa tarefa, todavia, isso não significa que a Religião se traduza, ou mesmo se esgote, em atitudes estereotipadas e fingidas de pessoas travestidas de religiosas – autômatos, insossos, sem graça, sem vida, que nos causa tanto asco nas igrejas, ruas, trens, emissoras de rádio, praças e TV. Por mais repugnante que seja o uso que certas pessoas fazem da Religião, isso não justifica o combate da Religião em si.

Ao contrário do que muitos pensam, o sentimento religioso não pode ser considerado nocivo ou algo que se opõe à verdade, justiça e liberdade. O argumento mais forte para o descarte da Religião, apresentado pela maioria dos radicais, diz respeito, ao uso que os poderosos fazem do sentimento religioso presente no povo: quando o torna matéria prima a serviço da dominação. Ora, se os capitalistas transformam rios piscosos em esgotos a céu aberto isso não significa que os rios não prestam, quem não presta são os capitalistas, pois emporcalham nossos rios. De forma similar o mal não está no sentimento religioso, mas naqueles que corrompe este sentimento.

O estado, o capital e a propriedade dos meios de produção, podem e devem ser abolidos, e a Religião pode perfeitamente contribuir para isso na medida em que assume seu caráter original de responsabilidade em prol da instituição da justiça, da liberdade e da solidariedade humana.

Em vez disso, as igrejas tradicionais ensinam quase sempre que a relação de Deus para com a humanidade é a de um Soberano que lá de seu trono força a obediência pelo exercício de um poder irresistível – o arquétipo do Poder do Estado. E quase nunca que trata-se de um Pai, como ensinou Jesus Cristo e os primeiros apóstolos, que constrange pelo poder de um amor que busca e cuida.

Por muito tempo se tentou inutilmente substituir o calor da espiritualidade humana pela frieza do cientifismo. Desse ponto de vista, os radicais fariamos melhor se em lugar do ateísmo ou do anti-teísmo pregassemos a anarquia na Religião tanto quanto pregamos a anarquia na política e na economia. O chefe religioso e o Clero que a ele se subordina «pastoreando» o povo são tão nocivos para as pessoas e para a Religião quanto o proprietário e a pirâmide de administradores são nocivos para os trabalhadores de uma empresa e para a economia. A Religião sem o chefe religioso e sem clero que a controla e domina pode e deve funcionar como instrumento de liberdade, justiça e solidariedade humana, nunca como instrumento para a conquista e para a subserviência como vemos por toda parte. O que deve ser combatido é a utilização e o cultivo do sentimento religioso popular enquanto tapume que cega os olhos do povo à realidade de exploração e miséria em que ele vive, deixando-o à mercê das classes dominantes. Dessa forma, a Religião se torna uma máquina de controle da mente do povo, e um atalho para a obtenção de fama, poder e dinheiro para seus dirigentes.

Quanto à ciência, por mais positiva que possa ser, ela jamais substituirá o sentimento religioso e jamais explicará todas as coisas e fenômenos, principalmente as principais perguntas que martelam em nossos corações e mentes. De qualquer forma, não podemos nunca impedir as pessoas de exercitar seus corações e mentes na procura de suas próprias respostas sobre a fonte da vida e a razão de suas existências.

Mas não é anti-radical reconhecer a relação de Deus com o homem, enquanto uma relação Pai/Mãe que constrange pelo poder de um amor que busca e salva suas crianças. Uma criança de quatro anos que brinca à beira do rio, repentinamente rola barranco abaixo e cai em suas águas profundas, o pai que passava por ali percebe, salta do barco e salva-a da morte. Eis aí a substancia da relação de Deus com o homem, e que não pode ser considerada jamais uma relação autoritária.

Kropotkin, o mais famoso escritor anarquista, surgido do Iluminismo e da Revolução Científica, assumia que a ciência substituiria a Religião, que tanto a Igreja como o Estado seriam abolidos, ao mesmo tempo que ponderava sobre um sistema secular de ética que substituiria a teologia sobrenatural pela biologia natural. Que a Igreja desapareça juntamente com o Estado, ótimo, já vão tarde! Mas quanto à Religião, pelo menos em sua essência, ser substituida pela ciência, é como substituir um ser vivo por um cadáver. Ciência sem a essência religiosa é bomba atômica, é progresso voltado para o beneficio de uma classe dominante, é destruição da camada de ozônio, é o fim do planeta e da raça humana. Convém ressaltar, porém, que se examinarmos a fundo esse «sistema secular de ética» e essa «biologia natural» propostos por Kropotkin, veremos que estavam muito mais próximos da essência da Religião do que a teologia sobrenatural e natural de todos os clérigos em todos os tempos. Infelizmente, outras teorias que não as de Kropotkin, acabaram prevalecendo e ensinadas nas escolas e nas igrejas, tornando-se, em parte, vigas mestras na justificação da competição capitalista.

Enquanto os radicais não levarem suas mensagens para dentro das igrejas, trazendo-a de volta às práticas da igreja caseira primitiva, ou como o fizeram os Profetas de Israel dos séculos VIII a IV AC em sua crítica revolucionária aos sacerdotes e aos governantes, a religião permanecerá como um terreno onde a erva daninha capitalista não para de crescer, não porque esse terreno seja estéril ao socialismo libertário, pelo contrário, mas porque ninguém se preocupa em lançar ali as idéias sobre uma sociedade mais justa, aqui e agora, na terra.

O problema mais grave da religião é que muitos se travestem de religiosos, trazendo tudo, menos a religião dentro de si, e muitos daqueles que trazem a religião dentro de si, acreditam em muitas coisas, menos o que verdadeiramente significa Deus e Religião, pela forma e pela natureza de sua religião, pelos estereótipos religiosos, pela falsidade e pelos formalismos religiosos.

Para muitos, a maior dificuldade em aceitar a idéia de Deus vem de associá-lo a um ser hierarquicamente superior. Isso, contudo, pode ser superado pela idéia mencionada acima, de uma mãe ou um pai que ama e cuida de sua criança. Quem teve um pai/mãe digno desse nome sabe que essa relação não implica necessariamente uma relação de poder.

O problema não está na Religião em si mas no que se faz com ela, um instrumento de escravidão, ignorância e opressão, ou uma fonte de liberdade, sabedoria e justiça. Algo que lança o povo nas trevas do preconceito e da ignorância, ou algo que realça a luz do espírito humano.

A atitude anarquista mais correta para com a Religião deve ir no sentido de colocar o trem da Religião em cima de seus verdadeiros trilhos -- a verdade, a liberdade, a justiça, o ódio ao mal, o amor ao bem, a solidariedade, a oposição a todos os sistemas de opressão, a desobediência aos homens e a obediência a Deus (enquanto expressão de justiça e liberdade). Sempre haverá pessoas com fé necessitando de Religião mas essa fé e essa Religião não significam obediência a homens, podem até mesmo significar um elemento a mais na luta contra o Estado e contra a hierarquia procurando convencer as pessoas a não se submeterem nem ao Estado nem aos homens mas unicamente à vontade de Deus, ou seja, ao amor, à justiça e à liberdade. A esperança anarquista no que diz respeito à política e à Religião é a abolição da hierarquia, que trará consigo a abolição do Estado e da Igreja. A questão é que Igreja, em seu sentido espiritual, sobrevive sem hierarquia, o Estado não. O Estado um dia irá finalmente desaparecer, talvez até mesmo a Igreja (templos), mas nunca a fé.

Alvimar Bessa

 

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