B.4 Como o capitalismo afeta a liberdade?

B.4.1 O capitalismo é baseado na liberdade?
B.4.2 O capitalismo é baseado na posse de bens de uso pessoal?
B.4.3 Mas ninguém é obrigado a trabalhar para eles!
B.4.4 Mas há épocas em que sobe a oferta de emprego!
B.4.5 Pare de me atormentar com política "deixe-me em paz!"
 
 
"[os esforços] para manter o alto nível de emprego. . . e um subsequente [e contínuo] boom, [provavelmente receberia] uma forte oposição dos 'homens de negócios'. . . uma vez que pleno emprego não é o que eles desejam. Os trabalhadores 'botariam suas mãos [nos lucros]' e os 'capitães da indústria' ficariam ansiosos por 'dar-lhes uma lição''' porque "sob um regime de permanente pleno emprego, 'o saqueio' [patronal] cessaria de exercer seu papel como instrumento de disciplina. A posição social do patrão seria solapada, a auto-confiança e a consciencia de classe do trabalhador se elevaria. As greves por maiores salários cresceria e a melhora nas condições de trabalho criaria uma tensão política. . . 'disciplina na fábrica' e 'politica de estabilidade' são mais apreciadas pelos homens de negócios [tubarões] do que lucros. Seus interesses de classe falam mais alto. Do ponto de vista deles, pleno emprego soa como algo mórbido e o desemprego se constitui em uma parte integral [e vital] da normalidade do sistema capitalista". Michal Kalecki 

 A propriedade privada em muitos aspectos assemelha-se a um estado particular. O dono ou a dona manda "no pedaço", portanto exerce um monopólio do poder sobre ele. Quando o poder é não é transferido para terceiros (auto-poder) é uma fonte de liberdade, mas sob o capitalismo o poder é uma fonte de autoridade coercitiva. Conforme Bob Black afirma em The Abolition of Work:
"Os liberais, conservadores e libertarianos [i.e. minarquista, ou liberal "clássica"] que se queixam do totalitarismo são impostores e hipócritas . . . Você encontra o mesmo tipo de hierarquia e disciplina em um escritório ou fábrica tanto quanto numa prisão ou monastério . . . Um trabalhador é um escravo de meio-período. O patrão determina quando chegar, quando sair, e o que fazer neste espaço de tempo. Ele ordena a você a quantidade de trabalho que deve produzir e o tempo dispõe para faze-lo. Ele é livre para impor seu controle da forma mais humilhante, estabelecendo as regras que lhe vem à cabeça, ele manda nas roupas que você veste ou determina quantas vezes você vai ao banheiro. Com poucas excessões, ele pode demitir você por alguma razão ou por nenhuma razão. Ele mantém você sobre vigilância através de delatores e supervisores que desenvolvem um dossiê sobre cada empregado. Qualquer reação contrária é qualificada como 'insubordinação', como se o trabalhador fosse uma criança desobediente, podendo não apenas demití-lo mas também demití-lo por "justa causa". . .O aviltante e degradante sistema de dominação que acabo de descrever prevalece sobre a metade das horas em que ficam acordados a maioria das mulheres e a vasta maioria dos homens  por décadas, na maior parte de suas vidas. De certa forma não é tão falso chamar nosso sistema de democracia ou capitalismo ou -- na melhor das hipóteses -- industrialismo, mas seu verdadeiro nome é fábrica fascista e escritório oligárquico. Qualquer um que diga que estas pessoas são 'livres' é mentiroso ou estúpido".
Da mesma maneira que uma companhia, o estado democrático pode ser influenciado pela capacidade de ação de seus cidadãos de forma a limitar (até certo ponto) o poder da elite dominante. É por isso que os ricos odeiam os aspectos democráticos do estado, e vêem os cidadãos cumuns como uma ameaça potencial ao seu poder. O "problema" foi notado por Alexis de Tocqueville no princípio do século 19 na América do Norte:
"É fácil perceber que os ricaços da alta sociedade nutrem uma vigorosa repugnância pelas instituições democráticas de seus países. E o populacho é ao mesmo tempo o objeto de seu desprezo e de seu medo".
Esse medo não mudou nem tampouco o desprezo pelas idéias democráticas. Nas palavras de um executivo de uma grande corporação dos EEUU, "um homem, um voto, resultará no eventual fracasso da democracia tal qual a conhecemos". [L. Silk e D. Vogel, Ethics and Profits: The Crisis of Confidence in American Business, pp. 189f]
 
"O capitalismo baseia-se na existencia da força de trabalho sem capital próprio suficiente para levar em frente seus próprios empreendimentos"

 

O desprezo pela democracia não significa que os capitalistas sejam anti-estado. Muito pelo contrário. Como foi dito anteriormente, os capitalistas dependem do estado. Isto ocorre porque o "liberalismo [clássico] em tese não é uma espécie de anarquia sem socialismo, o liberalismo portanto é simplesmente uma mentira, pois a liberdade não é possível sem igualdade . . . A crítica liberal dirigida aos governos consiste apenas em pretender subtrair algumas de suas funções e instigar os capitalistas a brigarem entre si, mas eles nunca atacam as função repressiva do estado pois é nela que repousa a sua essência: sem a polícia a propriedade pessoal não poderia existir". [Errico Malatesta, Anarchy, p. 46].

Os capitalistas apoiam e fortalecem o estado quando este age no interesse deles e quando defende a autoridade e o poder deles. O "conflito" entre estado e capital é como o conflito entre dois gangsters que se degladiam pela posse do produto de um roubo: eles se comerão pela pilhagem e por obter mais poder na gangue, mas eles necessitam uns aos outros para defender sua "propriedade" contra aqueles que roubaram.

A natureza estatista da propriedade privada pode ser "libertariana" (i.e. minarquista, ou liberal "clássica") palavras representativas do extremo laissez-faire capitalista:

"[se] alguem começa a construir uma cidade para si, em terras que não lhe pertencem e não viola a condição locheana [referente a Loch, de não-agressão], as pessoas que resolvererem ir para lá ou viver ali não terão nenhum direito sobre ela, a menos que se submetam aos regulamentos que o dono estabeleceu". [Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia, p. 270]
Isto é feudalismo voluntário, nada mais. Naturalmente, isto pode ser qualificado como "forças de mercado" que resulta na maioria dos proprietários liberais sendo os mais bem sucedidos. Por mais refinado que um patrão possa ser, continua sendo patrão. Parafraseando Tolstoy, "o capitalista liberal é como uma espécie de dono de jumento. Ele fará de tudo para o jumento -- cuidará dele, lhe dará alimento, banhho, tudo, exceto abrir mão dele!". Ou conforme destacou Bob Black, "Algumas pessoas dão órdens para que outros obedeçam: essa é a essencia da escravidão. . . . liberdade significa mais que o direito de mudar de patrão". [The Libertarian as Conservative]. Aqueles que apoiam o capitalismo reivindicando que o "direito" de mudar de patrão é a essência da "liberdade" proclamam a noção capitalista de "liberdade".

B.4.1 O capitalismo é baseado na liberdade?

Para anarquistas, liberdade significa tanto "liberdade de" como "liberdade para". "Liberdade de" significa não ser objeto de dominação, exploração, autoridade coercitiva, repressão, ou outras formas de degradação e humilhação. "Liberdade para" significa ser capaz de desenvolver e expressar habilidades, talentos, e potenciais o mais completamente possível compatibilizando tudo isso com o máximo de liberdade dos outros. Ambas estas espécies de liberdades implica na necessidade de auto-gestão, responsabilidade, e independencia, que basicamente significa que as pessoas participem nas decisões que afetam suas vidas. Visto que os indivíduos não vivem em vácuos sociais, isto também significa que a liberdade precisa assumir um aspecto coletivo, através das associações de caráter horizontal que os individuos formam uns com os outros (i.e. comunidades, grupos de trabalho, grupos sociais) desenvolvidas de maneira tal que os indivíduos participem nas decisões que o grupo toma. Esta liberdade para os anarquistas requer participação democrática, que significa discussão face-a-face e votar nos em assuntos que lhes dizem respeito.

Essas condições de liberdade são encontradas no sistema capitalista? Obviamente que não. A despeito de toda sua retórica sobre "democracia", a maioria dos estados capitalistas "avançados" praticam democracia apenas na aparencia e na superfície -- e isto porque a maioria de seus cidadãos são empregados que gastam cerca de metade de suas horas de vigília sob o chicote dos ditadors (patrões) capitalistas que não dão a eles nenhuma voz nas decisões econômicas cruciais que afetam suas vidas mais profundamente. Os patrões os obrigam a trabalhar sob as condições mais adversas ao pensamento independente. Se a mais básica liberdade, que é o direito de pensar por si mesmo, é negada, então a própria liberdade é negada.

O local de trabalho capitalista é profundamente antidemocrático. Noam Chomsky apropriadamente destaca que as relações opressivas de autoridade presentes nas grandes corporações, tipicamente hierárquicas por natureza, poderiam ser chamadas de fascistas ou totalitárias no que diz respeito ao seu sistema político. Em suas palavras:

"Não há nada tão individualista quanto as corporações. Trata-se de um conglomerado de instituições de caráter essencialmente totalitário mas fortemente individualista. Existem poucas instituições na sociedade humana que possua uma hierarquia tão extrita e um controle tão cerrado como as grandes organizações de negócios. Ninguém se atreve a dizer 'não pise em mim'. Você é pisado o tempo todo". [Keeping the Rabble in Line, p. 280]
Sem absolutamente nada a ver com "baseado na liberdade", o capitalismo na realidade destrói a liberdade. Robert E. Wood, o chefe executivo da Sears, deixou isso bem claro quando disse: "enfatizamos as vantágens do sistema do livre empreendimento, acusamos o estado totalitário, mas . . . criamos em maior ou menor gráu um sistema totalitário na indústria, particularmente na grande indústria". [citado por Allan Engler, Apostles of Greed, p. 68]

Ou, como Chomsky afirmou, aqueles que apoiam o capitalismo não compreendem "a doutrina fundamental onde você se torna livre do domínio e do controle, incluindo o controle do patrão e do dono" [Feb. 14th, 1992 publicado no Pozner/Donahue].

Sob o autoritarismo corporativista, os traços psicológicos mais recomendados aos cidadãos são eficiência, submissão, frieza, insensibilidade, e uma inquestionável obediência à autoridade -- traços que possibilitam as pessoas sobreviverem e mesmo prosperarem como empregados nas companhias hierárquicas. Naturalmente, para cidadãos "não comuns", i.e., chefes, encarregados, patrões, etc., o traço autoritário é necessário, e certamente o mais importante para exercer domínio sobre os outros.

Mas estas peculiaridades senhor/escravo são ambas inadmissíveis no funcionamento da democracia real (i.e. participativa/libertária), que requer que os cidadãos tenham qualidades como flexibilidade, criatividade, sensibilidade, compreensão, honestidade emocional, sinceridade, realismo, e abilidade para mediar, comunicar, negociar, integrar e cooperar. Portanto o capitalismo não é ademocrático, ele é anti-democrático, porque promove o desenvolvimento de traços que tornam a real democracia (que é a sociedade libertária) impossível. Importante destacar que a tal "democracia participativa" implantada por alguns governos de "esquerda" apenas substitui a relação senhor/escravo pela burocrata/escravo, igualmente incompatível com a democracia real.

Muitos apologistas do capitalismo procuram demonstrar que as estruturas autoritarias capitalistas são "voluntarias" e portanto,  não são uma negação da liberdade social. Milton Friedman (que idealizou a economia de "livre mercado" da economia capitalista) tentou fazer exatamente isto. Como a maioria dos apologistas do capitalismo ele ignorou as relações autoritárias explícitas e implícitas no trabalho assalariado (onde a "coordenação" no local de trabalho é baseada no comando vertical que vem de cima para baixo, não na cooperação horizontal). Em vez disso ela se concentra na decisão do trabalhador em vender seu trabalho para um patrão específico e ignora a perda de liberdade resultante desse contrato. Ele argumenta que "os indivíduos são efetivamente livres para entrar ou não em algum tipo de transação, uma vez que todas as transações são extritamente voluntárias. . . O empregado está protegido da coerção por parte do empregador porque existem outros empregadores para os quais ele pode trabalhar". [Capitalism and Freedom, pp. 14-15]
 
 

"[no capitalismo] cada transação "estritamente voluntária" é livre sim, mas não para entrar em alguma transação em particular, mas para não entrar em transação alguma".

Friedman, para provar a natureza livre do capitalismo, compara o capitalismo com uma simples transação econômica baseada na independencia dos produtores, tomando como exemplo uma simples economia doméstica: "Ele tem a alternativa de produzir diretamente para si mesmo, [e portanto] não precisa participar de nenhuma transação a menos que extraia algum benefício dela. Consequentemente nenhuma transação será efetuada sem que ambas as partes saiam ganhando. A cooperação se estabelece sem coerção" [Op. Cit., p. 13]. Sob o capitalismo (ou economia "complexa") Friedman afirma que "os indivíduos são efetivamente livres para entrar ou não em qualquer transação em particular, pois cada uma das transações é estritamente voluntária". [Op. Cit., p. 14]

A verdade, todavia, revela que o capitalismo não é baseado em transações "estritamente voluntárias" como afirma Friedman. Cada transação "estritamente voluntária" é livre sim, mas não para entrar em alguma transação em particular, mas para não entrar em transação alguma.

Esta, e apenas esta, é a única condição apresentada no modelo simples de Friedman (baseado na produção artesanal) como sendo voluntária e não coercitiva. Esta é a coluna onde se apóia o argumento que apresenta o  modelo complexo (i.e. capitalismo) como sendo voluntário e não coercitivo. Ora, Friedman afirma claramente acima que a liberdade não entra em qualquer transação em particular, portanto, apenas alterando suas próprias premissas ele poderia afirmar que o capitalismo é baseado na liberdade.

É fácil ver o que Friedman fez, mas não é tão fácil justificar (particularmente por ser um lugar comum na apologética capitalista). Ele traça um paralelo entre uma transação efetuada por produtores independentes em uma economia simples e a economia capitalista sem mencionar a coisa mais importante que os distingue - o abismo que separa o trabalho dos meios de produção. Em uma sociedade de produtores independentes, o trabalhador tem a opção de trabalhar para si mesmo -- na sociedade capitalista essa opção não existe. O capitalismo baseia-se na existencia da força de trabalho sem capital próprio suficiente para levar em frente seus próprios empreendimentos, e portanto essa força de trabalho não pode escolher entre vender seu trabalho ou não. O próprio Milton Friedman concordaria que onde não existe escolha existe coerção. Esta tentativa de demonstrar que o capitalismo coordena sem coerção resulta, portanto, em fracasso.

Os apologistas do capitalismo são hábeis em convencer algumas pessoas de que o capitalismo é "baseado na liberdade" apenas porque o sistema tem determinadas aparências superficiais de liberdade.

Uma análise atenta dessas aparências revela o que elas escondem. Por exemplo, proclama-se aos quatro ventos que os empregados das empresas capitalistas tem liberdade porque eles podem parar de trabalhar para elas quando quiserem. Mas, conforme dito anteriomente, "Algumas pessoas dão órdens e outras as obedecem: esta é a essência da servidão [da escravidão]. Naturalmente, [da mesma forma que as presunçosas observações do libertariano de direita], 'ele pode trocar de emprego', mas não pode evitar de ter um emprego -- da mesma forma que no estatismo você pode mudar de nacionalidade mas você não pode evitar subordinar-se a uma ou outra nação estado. Mas liberdade significa mais que o direito de trocar de patrão" [Bob Black, The Libertarian as Conservative]. Das duas uma: ou "escolhe" ser governado/explorado ou vive nas ruas como um cão. Esta é a "liberdade" que o capitalismo proporciona aos trabalhadores.

O anarquismo aponta para uma real liberdade de escolha. A livre associação e o livre acordo precisam ter como base a igualdade social de seus membros, e todas as partes precisam receber benefícios equivalentes onde cada um recebe conforme sua necessiade e cada um contribui conforme sua capacidade. As relações sociais entre os capitalistas e empregados nunca podem ser iguais, pelo fato da propriedade privada dos meios de produção estabelecerem uma hierarquia social e relações de autoridade coercitiva e subordinação, como foi reconhecido por Adam Smith (veja abaixo).

O quadro pintado por Walter Reuther sobre a vida dos trabalhadores na América do Norte antes do ato de Wagner, comenta a desigualdade entre as classes: "Quando os homens caminham em direção aos seus empregos, eles deixam sua dignidade, sua cidadania e sua humanidade de lado. Eles foram ordenados para cumprir um dever quer queiram quer não. Se eles não se submeterem às conveniências de seus supervisores e patrões eles não receberão. E poderão ser demitidos sob qualquer pretexto. Eles se sujeitam às arbitrariedades, regras sem sentido... Homens são torturados por regulamentos que torna difícil até mesmo sua ida ao banheiro. Diante das grandiloquentes relatórios do presidente da imensa corporação. . . não há nenhuma pessoa ou agencia à qual o trabalhador possa apelar para transmitir suas queixas. A simples idéia de que o trabalhador esteja com a razão parece absurdo para o empregador". Sua indignidade permanece, e com a globalização do capital, a posição de barganha dos trabalhadores está se deteriorando de tal forma que tudo aquilo que conquistou em um século de luta de classes corre o perigo de se perder completamente.

Uma rápida olhada na enorme disparidade entre o poder e riqueza da classe capitalista e a classe trabalhadora mostra que os benefícios resultantes dos "acordos" estabelecidos entre as partes estão longe da igualdade. Walter Block, diretor do Fraser Institute, deixou claro as diferenças em poder e benefícios num debate sobre assédio sexual nos locais de trabalho:

"Considerando o assédio sexual que continuamente envolve uma secretária e um chefe. . . mesmo condenado por muitas mulheres, ele não é  uma ação coercitiva. Isto faz parte do pacote de regras os quais a secretária concordou em todos seus aspectos quando aceitou o emprego, e especialmente quando se ela concorda em permanecer no emprego. O escritório é, acima de tudo, propriedade privada. Não cabe à secretária questionar se a 'coerção' é condenável ou não". [citado por Engler, Op. Cit., p. 101]
Eis aí um exemplo da "liberdade" do sistema capitalista. O principal objetivo do Instituto Fraser é convencer as pessoas de que todos os outros direitos podem ser subordinados ao direito de conquistar prosperidade e riqueza. Neste caso, Block deixa claro que sob a propriedade privada, apenas os patrões tem "liberdade para", e a maior parte deseja assegurar que eles também tem "liberdade de" interferir com este direito.

Portanto, quando os capitalistas sugerem que a "liberdade" está acessível sob o capitalismo, eles realmente se referem à sua liberdade protegida pelo estado para explorar e oprimir trabalhadores pela posse da propriedade, uma "liberdade" que lhes permite amealhar disparatadas quantias em dinheiro e riquezas, que resultam na continuidade de seu poder e privilégio.O fato da classe capitalista nos estados liberais-democratas dar aos trabalhadores o direito de mudar de patrão (e isto não é menos verdade sob o capitalismo de estado) está longe de mostrar que o capitalismo é baseado na liberdade, Conforme Peter Kropotkin acertadamente afirmou, "as liberdades não são dadas, elas são tomadas" [Peter Kropotkin, Words of a Rebel, p. 43]. Um homem que foi libertado por outro é como um cão que anda pelas ruas arrastando uma corrente presa em sua coleira. Sob capitalismo, você está "livre" para fazer aquilo que lhe é permitido pelos seus amos.

B.4.2 O capitalismo está baseado na posse pessoal?

Murray Rothbard, uma diretora capitalista "libertariana", afirma que o capitalismo está baseado no "axioma básico" do "direito à posse pessoal". Este "axioma" é definido como "o absoluto direito de cada homem [sic]. . . controlar o [seu] corpo livre de interferencias coercitivas. Desde que cada indivíduo possa pensar, aprender, valorizar, e escolher seus objetivos e meios de sobreviver e prosperar, o direito de propriedade dá ao homem [sic] o direito de desenvoltura em suas atividades vitais sem ser incomodado por abordagens coercitivas". [For a New Liberty, pp. 26-27]

Até aqui tudo bem. Contudo, novamente surge o problema do conceito de propriedade privada. Segundo argumenta Ayn Rand, outra ideóloga defensora do "livre mercado" capitalista, "nada supera o direito irrestrito à liberdade de expressão (ou de ação) [desde que se pague por isso]" [Capitalism: The Unknown Ideal, p. 258]. Ou, como comumente dizem os proprietários capitalistas, "Eu não pago você para pensar".

Similarmente, os capitalistas não pagam seus empregados para desempenharem aquelas "atividades vitais" listadas por Rothbard (aprender, valorizar, escolher metas e meios para alcança-las) -- a menos, naturalmente, que a firma requeira que os trabalhadores desempenhem essas atitidades no interesse dos lucros da companhia. De outra forma, nada assegura que os capitalistas farão qualquer esforço para engajar o trabalhador em tais "atividades vitais", pelo contrário, durante todo seu tempo dentro da empresa ele será "incomodado" por "abordagens coercitivas". Por essa razão, o trabalho assalariado (a base do capitalismo) na prática nega direitos associados à posse de si mesmo (ele não se pertence, pertence ao patrão), dos meios de produção, dos meios de vida, isto aliena o indivíduo de seus direitos básicos. Ou como Michael Bakunin expressou, sob o capitalismo "o trabalhador vende sua pessoa e sua liberdade por um determinado espaço de tempo".

Em uma sociedade de relativa igualdade, a "propriedade privada" (posse de si mesmo, meios de produção e de vida) não seria uma fonte de poder patronal. Em um sistema baseado no trabalho assalariado (i.e. capitalismo), a propriedade privada é uma coisa divorciada do conjunto, tornando-se uma fonte de poder institucionalizado e de autoridade coercitiva através da hierarquia. Conforme Noam Chomsky escreveu, o capitalismo é baseado numa "forma particular de controle autoritário. Especialmente aquela que surge através do controle e da posse privada, um sistema extremamente rígido de dominação". Quando "propriedade" é puramente aquilo que você, como um indivíduo, usa (i.e. possessão) ela não é uma fonte de poder. No capitalismo, contudo, direito de "propriedade" nem de longe coincide com direito de uso, e dessa forma eles tornam-se uma negação de liberdade e uma fonte de autoridade e poder sobre o indivíduol. Não foi atoa que Proudhon qualificou propriedade como "roubo" e "despotismo".

Conforme vimos na discussão sobre hierarquia (seções A.2.8 e B.1), todas as formas de controle autoritario dependem de uma "molestação coercitiva" --  i.e. o uso ou a aplicação de sanções. Definitivamente este é o caso das companhias hierárquicas sob o capitalismo. Bob Black descreve a natureza autoritária do capitalismo nas seguintes palavras:

"o local onde os [adultos] passam a maior parte do tempo e submetidos ao mais rígido controle é o local de trabalho. Dessa forma . . . tem-se a impressão que a fonte das maiores coerções diretamente experimentadas pelos adultos comuns não vem do estado mas do patrão que os explora. Seu chefe ou supervisor dá a você mais órdens em uma semana que a polícia em uma década".
Isto não significa que o estado seja menos coercitivo uma vez que o patrão sempre apela pelo seu socorro quando quando começa a perder o controle sobre os trabalhadores.

Nós já comentamos a objeção de que as pessoas podem abandonar seus empregos, que equivale a dizer "ame-o ou deixe-o!". Desnecessário dizer que a vasta maioria da população não tem como evitar o trabalho assalariado. O capitalismo ao contrário de ser baseado em "direito de posse pessoal", na realidade se constitui na negação deste direito, alienando o indivíduo de direitos básicos como livre expressão, pensamento independente, e auto-gestão de suas próprias atividades, que lhes são subtraídas quando eles estão empregados. O trabalho assalariado aliena o trabalhador de si mesmo, tanto quanto de seu poder e criatividade.

Citanto Chomsky novamente, "as pessoas podem sobreviver, [apenas] alugando a si mesmas à [autoridade capitalista], e basicamente de nenhuma outra maneira. . . .". Você não vende suas habilidades sem vender a si mesmo, pois essas habilidades são parte de você. Você vende seu tempo, sua força de trabalho, e portanto você mesmo. Sob o trabalho assalariado, direitos de "posse pessoal" está sempre colocado abaixo dos direitos de propriedade, o único "direito" que lhe resta é o de procurar outro emprego (embora até mesmo este direito seja negado em alguns países se o empregado dever dinheiro às companhias, constar nas listas de inadimplentes, ou ter nome "sujo" na praça).

Portando, contrariamente à afirmação de Rothbard, o capitalismo realmente aliena o direito de posse pessoal por causa da estrutura autoritária do local de trabalho, à qual deriva da propriedade privada. Se desejamos realmente a posse pessoal, não será tornando-nos escravos assalariados que iremos alcançá-la mesmo que sacrifiquemos a maior parte de nossas vidas nesse intuito. Apenas trabalhadores produzindo em auto-gestão, não no capitalismo, podem fazer a posse pessoal uma realidade.

B.4.3 Mas ninguém obriga você a trabalhar para eles!

 
"os meios de vida precisam ser tomados para que a vida possa literalmente existir: é impossível a vida sem os meios. Negá-los ao povo é mais do que 'roubar'. . . é homicídio qualificado". Murray Bookchin

Naturalmente também se proclama aos quatro ventos que a questão do trabalho assalariado é uma opção "voluntária", onde ambos os lados (patrão e trabalhador) são beneficiados. Contudo, devido a fatos históricos do passado que envolveram o uso da força (i.e. o confisco de terras pela violencia) mais a tendencia de concentração do capital, um relativamente muito pequeno número de pessoas controla atualmente vastas riquezas, desprovendo todas as demais do acesso aos meios de vida. Conforme Immanuel Wallerstein afirma em The Capitalist World System (vol. 1), o capitalismo se desenvolveu do feudalismo, com o primeiros capitalistas usando as riquezas herdadas da família, derivadas de grandes extensões de terra, para criar fábricas. Aquelas "riquezas herdadas da família" podem ter sido o marco original inicial para posteriores conquistas pela força da violencia. Esta negação do livre acesso aos meios de vida é em última análise o princípio de que "o poder faz o direito", ou "o poder é a lei do mais forte". Ou como Murray Bookchin acertadamente afirmou, "os meios de vida precisam ser tomados para que a vida possa literalmente existir: é impossível a vida sem os meios. Negá-los ao povo é mais do que 'roubar'. . . é homicídio qualificado". [Murray Bookchin, Remaking Society, p. 187]
 
 

"a existencia do mercado de trabalho depende do muro que separa o trabalhador dos meios de produção"

David Ellerman também observou que o uso da força no passsado resultou na maioria tendo suas opções limitadas por aqueles que detinham o poder:

"Este é o verdadeiro e principal suporte do pensamento capitalista . . .  a mancha moral da propriedade dos escravos teve sua continuidade, ao contrário dos escravos, nas pessoas voluntariamente aceitando contratos de salários. Mas isto apenas ocorreu, no caso do capitalismo, porque lhes foram negadas os direitos naturais e pelo respaldo legal da força de trabalho como 'posse de mercadoria'. Assim, o trabalhador estaria habilitado a colocar voluntariamente sua própria força de trabalho [ou mercadoria] a venda. Quando um ladrão nega à sua vítima o direito de fazer um número infinito de outras escolhas a não ser [optar por uma das duas alternativas] entregar seu dinheiro ou sua vida, e essa negativa é feita com o uso de um revólver, o roubo fica claramente configurado mesmo que alguém diga que a vítima fez uma "escolha vontuntária" entre as opções que estavam a seu alcance. Quando o próprio sistema legal nega os direitos naturais à classe trabalhadora em nome das prerrogativas do capital, e esta negativa é sancionada pela violencia legal do estado, os teóricos do capitalismo 'libertariano' em vez de denunciarem o roubo institucional, celebram a 'liberdade natural' do povo trabalhador de escolher uma entre as únicas opções que lhe restam: vender seu trabalho como mercadoria ou ficar desempregado". [citado por Noam Chomsky, The Chomsky Reader, p. 186]
Portanto, a existencia do mercado de trabalho depende do muro que separa o trabalhador dos meios de produção. A base natural do capitalismo é o trabalho assalariado, no qual a maioria não tem outra opção a não ser vender suas habilidades, trabalho e tempo para que detem os meios de produção. Nos países capitalistas avançados, menos de 10% da população trabalhadora é auto-empregada (em 1990, 7.6% no Reino Unido; 8% nos EEUU e Canadá - como este quadro também inclui emprregados, isto significa que o número de trabalhadores auto-empregados é bem menor!). Consequentemente, para a grande maioria, o mercado de trabalho é sua única opção.

Michael Bakunin observa que estes fatos colocam os trabalhadores em uma posição de escravos dos capitalistas, mesmo que os trabalhadores seja formalmente "livres" e "iguais" sob a lei:

"Juridicamente ambos são iguais; mas economicamente o trabalhador é escravo do capitalista . . . pois o trabalhador vende sua pessoa e sua liberdade por um determinado tempo. O trabalhador está em uma posição de escravo por causa daquela terrível ameaça de fome que diariamente paira sobre sua cabeça e sobre sua família, forçando-o a aceitar qualquer condição que lhe for imposta pelos cálculos gananciosos do capitalista, do industrial, do empregador. . .  O trabalhador sempre tem o direito de abandonar seu emprego, mas ele dispõe dos recursos para fazer isso? Não. Só lhe resta vender a si mesmo para outro patrão. Ele é compelido a isto pela mesma fome que o forçou a vender a si mesmo para o empregador anterior. Esta liberdade do trabalhador . . . é apenas uma liberdade teórica, pois a privação dos meios para tornar possível sua realização faz com que ela seja apenas uma liberdade fictícia, uma completa falsidade. A verdade é que toda a vida do trabalhador torna-se [sob o capitalismo] simplesmente uma contínua e angustiante sucessão de condições, cláusuras, termos, de servidão -- voluntária do ponto de vista jurídico mas compulsória no sentido econômico. A mais breve quebra deste interlúdio [em direção à] liberdade é acompanhado pela fome; em outras palavras, isto é escravidão real". [The Political Philosophy of Bakunin, pp. 187-8]
Obviamente, uma companhia não pode forçar você a trabalhar para ela mas, em geral, você sempre acaba trabalhando para alguém. Isso por causa da "histórica iniciação pela força" no passado que deu orígem à classe capitalista e o estado que cria as condições objetivas para que façamos (forçosamente) nossas decisões empregaticias. Antes que qualquer contratação específica ocorra no mercado de trabalho, o muro que separa os trabalhadores dos meios de produção é um fato consumado (e o resultante do mercado de "trabalho" geralmente proporciona vantágens à classe capitalista). Dentro do capitalismo, na melhor das hipóteses, o que resta é decidir para qual capitalista iremos trabalhar. Em geral, não podemos escolher trabalhar para nós mesmos (o setor de auto-emprego na economia é minúsculo, o que indica o quanto a liberdade capitalista realmente é espúria). É natural que a habilidade para abandonar um emprego e procurar outro seja uma liberdade importante, contudo, esta liberdade, como a maioria das liberdades sob o capitalismo, é de uso limitado e esconde uma realidade anti-individuo.

Conforme Karl Polanyi afirmou:

"Em termos humanos, o postulado [do mercado de trabalho] significa [quatro coisas] para o trabalhador: uma extrema instabilidade salarial, completa ausencia de critérios profissionais, relatórios abjetos retorcidos e falsificados indiscriminadamente pelo patrão, completa dependencia aos caprichos do mercado. . . A mercadoria não decide onde nem como seria alugada, para quais propósitos seria usada, por que preço seria trocada de mãos, e de que maneira seria consumida ou destruida". [The Great Transformation, p. 176]
Conforme as observações do economista keynesiano Michael Stewart, os trabalhadores do século dezenove "que perderam seus empregos tinham que encontrar outro rapidamente senão passariam fome ..." [Keynes in the 1990s, p. 31]. Quando os trabalhadores "reduzem suas exigencias" tendem a piorar cada vez mais sua situação, provocando mais desemprego a medida que a crise se agrava. Veremos mais detalhadamente a questões do desemprego e dos trabalhadores "reduzindo suas exigencias" na seção C.9).

Volta e meia se argumenta que o capitalismo precisa do trabalho, e como ambos (capital e trabalho) tem igual peso em termos de oferta, consequentemtne o mercado de trabalho é baseado na "liberdade". Mas para o capitalismo ser baseado verdadeiramente na liberdade ou no verdadeiro livre acordo, ambos os lados na divisão capital/trabalho precisa ter um igual poder de barganha, qualquer coisa menos que isso favorecerá o mais poderoso às custas da outra parte. Portanto, devido à existencia da propriedade privada e do estado necessário à sua proteção, esta igualdade é de fato impossível, não obstante sua teoria. É por isso que, em geral, os capitalistas tem três vantágens com o mercado "livre" de trabalho -- alei e o estado que proteje o direito de propriedade contra aqueles que trabalham, a existencia do desemprego na maioria dos âmbitos de negócios e os recursos que os capitalistas tem de sobra para poderem operar. Discutiremos todos eses pontos um por um.

A primeira vantagem, a propriedade privada garantida e protegida pela lei e pelo estado, assegura que quando os trabalhadores entram em greve ou usam formas de ação direta (ou mesmo quando eles tentam formar um sindicato) os capitalistas tenham um completo suporte do estado em suas ações quando fazem uso de seus fura-greves para entrar na fábrica (garantindo o "direito" de trabalhar), de seus seguranças para desfazer piquetes ou demitindo "lideranças". Isto obviamente proporciona um grande poder aos empregadores na mesa de negociações, deixando os trabalhadores em uma situação de fraqueza (uma situação que faz com que eles, os trabalhadores, pensem duas vezes antes de se levantarem pelos seus direitos).

Quando o fantasma do desemprego paira sobre a maioria dos ramos de negócios isso garante "aos patrões uma vantagem estrutural no mercado de trabalho, porque existem tipicamente mais candidatos . . . do que vagas a disposição". Isto significa que "a competição no mercado de trabalho [trabalhadores procurando emprego] via de regra funciona a favor do patrão: é um mercado de mão-de-obra. E em um mercado de mão-de-obra, o que conta é a oferta, [e se há grande oferta, seu preço cai]. A competição para o trabalho [patrões procurando trabalhadores] em termos gerais nunca é forte o suficiente para assegurar que a vontade dos trabalhadores prevaleça". [Juliet B. Schor, The Overworked American, p. 71, p. 129]. Se o mercado de trabalho geralmente favorece o patrão, então isto obviamente coloca o povo trabalhador em uma constante desvantagem diante da ameaça do desemprego e diante da miséria associada com a disposição dos trabalhadores em aceitar qualquer emprego e submeter-se às exigencias e ao poder de seus patrões. O desemprego, em outras palavras, funciona como um elemento disciplinador do trabalho. Quanto mais altas as taxas de desemprego, obviamente mais difícil se torna arrumar um trabalho. Como sai muito caro perder o emprego, isso faz com que haja pouca ou nenhuma disposição dos trabalhadores para a greve, para participar em reuniões no sindicato, ou resistirem às exigencias dos patrões, e daí por diante.

Conforme Bakunin argumentou, "[o dono da] propriedade privada. . . é igualmente forçado a procurar e contratar trabalho. . . mas não na mesma medida . . . [não há qualquer] igualdade entre aquele que oferece seu trabalho e aquele que o contrata". [Op. Cit., p. 183]. Isto significa que qualquer "livre concordância" beneficia mais os capitalistas que os trabalhadores (veja na próxima seção quando, em períodos de pleno emprego, as condições se inclinam em favor dos trabalhadores).

Finalmente, há a questão da desigualdade de riqueza e de recursos. Os capitalistas geralmente tem mais recursos de sustentação durante os períodos de greves e de procura por empregados (por exemplo, grandes companhias com muitas fábricas podem permutar a produção entre suas fábricas se alguma delas entra em greve). E tendo mais recursos de reserva (gordura para queimar), o capitalista pode aguentar muito mais que o trabalhador, nessa situação o patrão fica em uma forte posição de barganha o que lhe assegura um contrato favorável (leonino). Isto foi reconhecido por Adam Smith:

"Não é difícil notar que as duas partes [trabalhadores e capitalistas] precisam, ordinariamente em todas as ocasiões . . . [uma] forçar a outra a submeter-se a seus termos. . . Em todas estas disputas os patrões podem avançar muito mais [em seu favor]. . . mesmo se eles não empregassem um único homem geralmente poderiam viver um ano ou dois usando dos estoques em seu poder. Ao passo que muitos trabalhadores não subsistiriam uma semana, poucos poderiam subsistir um mes, e [muito menos] um ano sem emprego. Sem sombra de dúvida o trabalhador pode ser tão necessário ao patrão como o patrão a ele; mas a necessidade não é assim tão imediata. . . nas disputas com seus trabalhadores, os patrões geralmente tem vantágem". [Wealth of Nations, pp. 59-60]
De lá para cá as coisas pouco mudaram.

Definitivamente é por isso que ninguém obriga você a trabalhar para eles, o sistema capitalista funciona de tal forma que você não tem outra escolha a não ser vender sua liberdade e seu trabalho no "livre mercado". Não apenas isto, o mercado de trabalho (que torna o capitalismo possível) é (usualmente) inclinado em favor do patrão, assegurando que qualquer "livre concordancia" penda a favor do patrão e resulte em trabalhadores se submetendo à dominação e à exploração. É por isso que os anarquistas apóiam a organização de coletivos (como sindicatos horizontais), a resistencia (como as greves), a ação direta e a solidariedade para que nos tornemos mais, e não menos, poderosos que nossos exploradores e efetuemos nós mesmos importantes reformas, melhorias (para, finalmente, mudar por completo a sociedade), mesmo enfrentando as desvantagens do mercado de trabalho, conforme indicado. O despotismo associado à propriedade (usando da expressão de Proudon) deve ser resistido por aqueles que estão sujeitos a ele. Afinal, desnecessário dizer, o patrão não será vitorioso para sempre.

B.4.4 O que dizer sobre os períodos de alta taxa de emprego?

Naturalmente existem períodos quando a quantidade de vagas de trabalho é superior à quantidade daqueles que procuram emprego. No capitalismo esses períodos, via de regra, costumam anteceder a períodos de depressão, em outras palavras, eles se constituem na semente da depressão para o capitalismo. Como os trabalhadores estão em uma excelente posição para exigir, tanto individual como coletivamente, sua parte nos lucros. Este ponto será discutido com mais detalhes na seção C.7 (Quais são as causas do ciclo de negócios capitalista? ) e não vamos abordá-lo aqui. Por enquanto é suficiente ressaltar que durante tempos de normalidade (i.e. que prevalece no ciclo de negócios), os capitalistas muitas vezes exercem uma intensa e extensa autoridade sobre os trabalhadores, uma autoridade derivada do poder desigual de barganha entre o capital e o trabalho, conforme destacado por Adam Smith e muitos outros.

Todavia, as coisas mudam de figura quando o número de vagas se torna elevado. Para ilustrar, vamos supor que a oferta e a procura estão mais ou menos em um ponto de equilíbrio. É claro que a situação é boa apenas para o trabalhador. Os patrões não podem facilmente demitir um trabalhador quando não existe um outro imediatamente à disposição para substituí-lo, enquanto que os trabalhadores, por sua vez, tanto coletivamente pela solidariedade quanto individualmente pelo "êxito" (i.e. quites e em direção a um novo emprego onde irá ganhar mais), podem assegurar que os patrões respeitem seus interesses e, importante destacar, os trabalhadores podem almejar satisfazer estes interesses em sua plenitude. O patrão sente dificuldade em manter sua autoridade intacta em virtude dos constantes aumentos de salários que é forçado a conceder, ou pelos seus lucros que já não são tão altos como antes. Em outras palavras, o desemprego cai, o poder dos trabalhadores cresce.

Por outro lado, tendo apenas o direito de contratar, despedir e investir no processo de produção, o patrão se vê em uma situação onde seu poder já não é tão considerável. O trabalhador nos períodos de pleno emprego, que muito se assemelham à situações na vida real, traz constantes problemas ao patrão principalmente no que diz respeito aos custos do trabalho para sua empresa capitalista. Sob tais condições os trabalhadores não dependem mais de um capitalista em particular, resultando em que o nível dos esforços no trabalho é determinado muito mais pelas decisões dos trabalhadores (coletiva ou individualmente) do que pela autoridade administrativa. A ameaça de demissão não pode ser usada como arma para que o empregado trabalhe mais e aumente a produção. O pleno emprego aumenta o poder dos trabalhadores.

Com seus recursos fixos comprometidos, esta situação se torna intolerável para a empresa capitalista. São tempos ruins para os negócios que raramente acontecem dentro do universo do "livre mercado" capitalista. É importante destacar que na economia neo-clássica todas as entradas -- incluindo o capital -- são completamente inconstantes, mas nesse caso em particular a teoria ignora a realidade e assume o caminho da produção capitalista em si!

Durante o último perído de rápido crescimento ou boom capitalista, o período de pós-guerra, vimos a quebra da autoridade capitalista e o pânico que isso provocou na elite dominante. O relatório da Comissão Trilateral de 1975, em sua tentativa de "compreender" o crescente descontentamento na população em geral, dá uma boa idéia do que estava acontecendo. Em períodos de pleno emprego, de acordo com o relatório, existe "um excesso de democracia". Em outras palavras, durante os períodos de pleno emprego e do consequente crescimento do seu poder de barganha, os trabalhadores começam a pensar sobre si mesmos e buscam satisfazer suas necessidades enquanto seres humanos, não como mercadoria incorporada na força de trabalho. Naturalmente, tudo isso exerce um efeito devastador sobre a autoridade capitalista e estatista: "As pessoas não mais sentem aquela compulsão para obedecer aqueles que elas previamente consideravam superiores a elas mesmas pela idade, gráu, prestígio, posição social, perícia, posição, ou talento".

Esta perda dos vínculos de compulsão e obediência resulta em que "grupos anteriormente passivos ou desorganizados da população, negros, indios, chicanos, grupos étnicos brancos, homossexuais, estudantes e mulheres . . . embarcarem em esforços concentrados para reivindicar oportunidades, remuneração e privilégios que até então vinham sendo negados".

Este "excesso" de participação na política naturalmente constituia uma séria ameaça ao status quo, tanto que as elites o condenaram no relatório da Comissão Trilateral, quando alertava que "a operação efetiva de um sistema político democrático usualmente requer alguma medida [que provoque] a apatia e o não-envolvimento por parte de alguns indivíduos e grupos . . .  Esta marginalidade [que caracteriza] esses grupos é em si mesma inerentemente anti-democrática para [a democracia] poder funcionar efetivamente". Tal declaração revela a falsidade dos conceitos estabelecidos de "democracia", ou seja, para que funcione efetivamente (i.e. serva ao interesse das elites) a "democracia" precisa ser "inerentemente anti-democrática", usando as mesmas palavras do relatório.

Nos períodos em que as pessoas se sentem fortalecidas elas tendem a se comunicar com seus amigos, identificar suas necessidades e desejos, resistir à opressão, e a somatória de todas estas forças conduz à liberdade para poderem administrar suas próprias vidas. A necessidade capitalista de tratar as pessoas como mercadoria funciona como uma pancada mortal sobre a liberdade dos trabalhadores, pois (novamente citando Polany) "não cabe a uma mercadoria decidir, onde ela deve ser oferecida para ser alugada, para que propósitos ela seria usada, que preço seria exigido para que mudasse de mãos, e de que maneira ela seria consumida ou destruida". Quando as pessoas sentem e pensam elas partem para a ação reivindicando sua liberdade e humanidade.

Como foi mencionado no começo desta seção, os efeitos econômicos de tais períodos de fortalecimento e revolta serão discutidos na seção C.7. Para terminar caem muito bem as palavras do economista polones Michal Kalecki, que observou que um contínuo rápido crescimento ou boom capitalista não seria de interesse para a classe dominante. Em 1943, respondendo aos keynesianos mais otimistas, ele afirmou que "[os esforços] para manter o alto nível de emprego. . . e um subsequente [e contínuo] boom, [provavelmente receberia] uma forte oposição dos 'homens de negócios'. . . uma vez que pleno emprego não é o que eles desejam. Os trabalhadores 'botariam suas mãos [nos lucros]' e os 'capitães da indústria' ficariam ansiosos por 'dar-lhes uma lição''' porque "sob um regime de permanente pleno emprego, 'o saqueio' [patronal] cessaria de exercer seu papel como instrumento de disciplina. A posição social do patrão seria solapada, a auto-confiança e a consciencia de classe do trabalhador se elevaria. As greves por maiores salários cresceria e a melhora nas condições de trabalho criaria uma tensão política. . . 'disciplina na fábrica' e 'politica de estabilidade' são mais apreciadas pelos homens de negócios [tubarões] do que lucros. Seus interesses de classe falam mais alto. Do ponto de vista deles, pleno emprego soa como algo mórbido e o desemprego se constitui em uma parte integral [e vital] da normalidade do sistema capitalista". [citado por Malcolm C. Sawyer, The Economics of Michal Kalecki p. 139, p. 138]

Portanto, há períodos em que os patrões entram em desespero porque não encontram mão de obra porque há mais vagas que trabalhadores, e esses períodos não são saudáveis para o capitalismo, pois eles permitem às pessoas reivindicarem sua liberdade e humanidade -- ambas fatais para o sistema. É exatamente por isso que notícias sobre grande número de novos empregos faz com que a bolsa de valores oscile violentamente (ou pareça uma praça de guerra com tiros para todos os lados). Isso explica também porque os capitalistas ficam tão ansiosos nestes dias procurando manter uma taxa "natural" de desemprego (o que indica que sua erradicação é não "natural"). Kalecki também corretamente previu o surgimento de "um poderoso bloco" composto por "grandes homens de negócios e interesses financeiros" todos contra o pleno emprego e que "eles provavelmente encontrariam mais que um economista para declarar que a situação está manifestamente deteriorada". A resultante "pressão exercida por todas estas forças, particularmente por parte dos grandes homens de negócios" faria com que "o governo fosse induzido a retornar à. . . política ortodoxa". [Kalecki, cited Op. Cit., p. 140] Foi precisamente isto que aconteceu nos anos 70 com os monetaristas e outras seções dos direitos de "livre mercado" provendo o suporte ideológico necessário para suprir os interesses dos tubarões na luta de classes, e cujas "teorias" (quando aplicadas) prontamente gerariam desemprego em massa, que daria à classe trabalhadora sua merecida lição.

Mesmo prejudicando o lucro, os períodos de recessão e de alto desemprego não são apenas inevitáveis mas absolutamente necessários para o capitalismo de forma a "disciplinar" os trabalhadores e "dar-lhes uma lição". Portanto não é de se estranhar que o capitalismo raramente produza períodos que se aproximem do pleno emprego -- tais períodos não funcionam em favor de seus interesses (veja também seção C.9). A dinâmica do capitalismo inevitavelmente provoca recessão e desemprego, da mesma forma que torna a luta de classes (que cria esta dinâmica) inevitável.

B.4.5 Pare de me atormentar com política, "deixe-me em paz"!

É irônico quando defensores do laissez-faire capitalista, tais como os "libertarianos" e os "anarco"-capitalistas, pedem para serem "deixados em paz". Ora, o capitalismo nunca permitiu isto a ninguém. Conforme Max Stirner expressou: "[Essa agitação toda] tira nosso fôlego, vá se divertir tranquilamente, não podemos extrair conforto de nossas possessões..." [Max Stirner The Ego and Its Own, p. 268].

O capitalismo não nos deixa tomar "fôlego" simplesmente porque ou ele cresce ou ele morre, isso exerce uma constante pressão tanto nos trabalhadores como nos próprios capitalistas (veja D.4.1). O trabalhador nunca pode relaxar ou se ver livre da ansiedade sobre perder seu emprego, porque se ele não trabalha, ele não pode comer, nem tampouco pode garantir uma vida melhor para seus filhos. Os próprios capitalistas não podem relaxar porque eles precisam estar seguros de que a produtividade dos seus trabalhadores cresce mais rápido que os salários de seus trabalhadores. Além do mais, seus negócios podem falir (veja seções C.2 e C.3). Isto significa que cada companhia tem que inovar senão inevitavelmente ficará para trás, será expelida para fora do mundo dos negócios ou do trabalho. Uma vez que o trabalho não pago é a chave da expansão capitalista, o trabalho precisa continuar a existir e a crescer. Tais fatos, combinados com as relações autoritárias associadas com a propriedade privada e a implacável competição, garante que o desejo de ser "deixado em paz" não será satisfeito sob o capitalismo.

Como Murray Bookchin observa, "a despeito de suas declarações sobre autonomia e desconfiança no estado autoritário. . .  os pensadores liberais clássicos em última instancia [nunca aceitaram] a idéia do indivíduo completamente livre para [dirigir a si mesmo] independente de leis [e] legisladores. Na realidade, sua interpretação de autonomia  pressupõe um total e definitivo arranjo fora do alcance do indivíduo -- principalmente as leis e o mercado. A autonomia individual [proporcionada por] estas leis constitui-se num sistema de organização social em que todas as 'coleções de indivíduos' são submetidos ao domínio da famosa 'mão invisível' da competição. Paradoxalmente, as leis do mercado esmagam o exercício da 'livre vontade' . . .". ["Communalism: The Democratic Dimension of Anarchism", p. 4, Democracy and Nature no. 8, pp. 1 - 17]

A interação humana é uma parte essencial da vida. O propósito anarquista é eliminar apenas as interações sociais indesejáveis e as imposições autoritárias inerentes ao capitalismo e indicativas de alguma forma de hierarquia na organização socio-economica (p.e. socialismo). O eremita logo torna-se menos que humano, pois a interação social enriquece e desenvolve o indivíduo. O capitalismo pode tentar nos reduzir a eremitas, apenas "conectados" ao mercado, privando-nos de nossa humanidade e individualidade, a semente de um inevitavel espírito de revolta. Na prática, as "leis" do mercado e a hierarquia do capital nunca nos "deixarão em paz", pelo contrário, esmagarão nossa individualidade e nossa liberdade. Noam Chomsky descreve estes aspectos do conflito capitalista com o "instinto de liberdade" humano como o combustível da revolta através do radicalismo e da rebelião dentro do povo oprimido (veja seção J).

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