"O capitalismo jamais será benéfico nem para as próximas gerações nem para o futuro do planeta, pois ele não enxerga seres humanos, em seu lugar vê apenas consumidores". |
Um elemento chave da visão social proporcionada pelo capitalismo, particularmente o capitalismo "libertariano", é comparar a "escolha" do "consumidor" com a escolha do "cidadão". De acordo com Milton Friedman, "quando você vai a supermercado, você adquire precisamente aquilo que escolher". Tal "escolha" estaria muito próxima daquilo que se afirma ser a maravilhosa "liberdade" proporcionada às pessoas que vivem sob o capitalismo (em oposição ao "socialismo", sempre confundido com o socialismo estatal, que será discutido na seção H). Contudo, uma análise dessa afirmação revela que a diferença entre consumidor e cidadão é de fundamental importancia.
O consumidor escolhe entre os produtos expostos nas prateleiras produzidos por outros com o propósito do lucro. O consumidor é o usuário final, essencialmente mais um espectador que um ator, ele meramente escolhe entre as várias opções que outras pessoas criaram. A decisão tomada no supermercado é portanto fundamentalmente passiva e reacionária, i.e. baseada em um processo iniciado por outros e sobre o qual não exerce qualquer controle nem tem nenhuma participação. Já o "cidadão", em contraste, é ativamente envolvido, pelo menos idealísticamente, em todos os estágios do processo de tomada de decisão, seja diretamente ou através de delegados que escolheu (delegados não para decidirem por ele, mas para encaminharem decisões tomadas coletivamente). Portanto, nas organizações descentralizadas de participação democrática as decisões tomadas pelos cidadãos podem ser pró-ativas, isto é, baseadas na ação humana, na qual as pessoas tomam a iniciativa e determinam todo o processo por elas mesmas. Na verdade, a maioria dos defensores do modelo "cidadão" apoia isto precisamente porque envolve os indivíduos ativamente na participação da tomada de decisão social, criando um processo de aspecto educacional e desenvolvendo as habilidades e o poder daqueles que estão envolvidos.
Além do mais, o poder do consumidor não é uniformemente distribuido através da sociedade. Tanto que a expressão "escolher" quando usada no contexto do mercado expressa uma idéia radicalmente diferente daquela que normalmente se associa a ela. Na política, escolher alguém é dar um voto, no mercado, escolher um produto é dar dinheiro em troca. Que tipo de "democracia" é esta que dá a uma pessoa mais opções de escolha do que dezenas de milhares de outras combinadas?
Portanto a idéia de "consumidor" falha em desprezar as diferenças de poder de compra que existem no mercado e em determinar um papel essencialmente passivo ao indivíduo. Enquanto indivíduos isolados, o máximo que podem fazer no mercado é comprar ou deixar de comprar. Mesmo assim, o problema continua, conforme argumenta E.F.Shumacher, "o comprador é essencialmente um barganhador; ele não está preocupado com a orígem dos bens ou com as condições sob as quais tais bens foram produzidos. A ele o que interessa é adquirir o maior valor pela menor quantidade de dinheiro". E continua, dizendo que o mercado "consequentemente diz respeito apenas superficialmente à sociedade e seu significado espelha uma situação momentânea num local e tempo determinado. Em si mesmas, pela sua obtusidade, não existe nada de honroso nas coisas, mas nos fatos naturais e sociais que estão por trás delas". [Small is Beautiful, p. 29]
O modelo de "consumidor" realmente funciona contra qualquer tentativa de "associar" fatos com coisas. Os consumidores raramente reconhecem o significado ou as implicações dos bens que lhes são oferecidos porque o mecanismo de preço lhes sonega tais informações. Acrescente-se a isto o fato de que a natureza atomística do mercado torna difícil a discussão sobre o "por quê" e o "como" da produção -- de maneira que podemos escolher um entre os vários "por quê". Em vez de uma avaliação critica dos prós e dos contras de certas práticas econômicas, tudo que nos é oferecido é a opção de escolher entre coisas que já foram produzidas. Podemos apenas re-agir quando já e tarde demais restando-nos apenas optar por um prejuízo menor (muitas vezes nem isso). Para descobrir o impacto ecológico ou social de um determinado produto nós temos que assumir um papel pró-ativo constituindo grupos que nos forneçam este tipo de informação (que, embora essencial para uma decisão racional, o mercado não fornece nem pode fornecer).
Além disso, o modelo "consumidor" falha em reconhecer que as decisões que tomamos no mercado para satisfazer nossa "vontade" são determinadas pelas forças sociais e de mercado. ou seja, aquilo que somos capazes de querer depende do tipo de organização social onde nós vivemos. Por exemplo, as pessoas escolhem comprar carros porque a General Motors comprou e destruiu a rede de bondes nos anos 30 e as pessoas compram "fast food" porque elas não tem tempo para cozinhar em virtude do aumento das horas de trabalho. Isto significa que nossas decisões relativas ao mercado muitas vezes são limitadas em virtude de pressões econômicas. Por exemplo, as empresas que constituem as forças de mercado, por medo da falência, fazem qualquer coisa para cortar custos. Firmas que poluem, que mantém péssimas condições de trabalho, e que, fazendo essas coisas, obtém vantagens competitivas, o que faz com que outras empresas façam o mesmo sob pena de desaparecerem do mapa do mundo dos negócios. A "fuga da bancarrota" faz com que indivíduos tomem "decisões desesperadas" apenas para poderem sobreviver. Em outras palavras, a quebra de certos valores por parte de alguns indivíduos pode tornar-se irrelevante simplemente por se contrapor à intensidade das pressões econômicas. (Segundo Robert Owen o motivo do lucro se constitui num "principio inteiramente desfavoravel à felicidade pública e individual").
Naturalmente, o mercado não interrompe,
nem pode interromper a produção de "bens" nocivos às futuras gerações e danosos
à natureza. Apenas de olho em nosso dinheiro, sem se importar com a preservação
do planeta, eco-sistemas e outros recursos, os capitalistas, como um trator,
destroem tudo que vêem pela frente, eco-sistemas, lugares históricos, e daí
por diante. A necessidade de proteger "recursos" renováveis ou não vem sendo
ignorada há muito tempo em favor do mercado. Essa dinâmica cruel e inumana
coloca a vasta maioria das pessoas muitas vezes em dificuldades para conseguir
até mesmo seu próprio alimento. Isto significa que o capitalismo nunca poderá
prover-nos com bens que possam ser úteis a nós enquanto pessoas. O
capitalismo jamais será benéfico nem para as próximas gerações nem para o
futuro do planeta, pois ele não enxerga seres humanos, em seu lugar vê apenas
consumidores.
"As grandes empresas comerciais não são muito diferentes dos partidos políticos, onde o político profissional tenta vender seus artigos para o público". Erich Fromm |
Um claro sinal do crescimento do domínio da ideologia capitalista pode ser notado pelo esforço em transferir o modelo "consumidor" também para a arena política. Isto se reflete no aumento da quantidade de instituições políticas que direcionam recursos em grande escala visando transformar-nos em meros espectadores passivos que "apoiam" um ou outro "produto" (i.e. partido ou lider). Como Murray Bookchin commentou, "cidadãos educados, inteligentes e respeitáveis são reduzidos a meros pagadores de impostos que trocam dinheiro por 'serviços'" [Remaking Society, p. 71]. Na prática, em virtude do centralismo do estado, o processo político fica reduzido a mais um dos muitos braços do mercado, transformando "cidadãos" (seres pensantes) em meros "consumidores" (objetos de manipulação pela mídia e outros meios). Ou, conforme a brilhante análise de Erich Fromm, "O funcionamento da máquina política em um país democrático não é essencialmente diferente do procedimento no mercado de negócios. As grandes empresas comerciais não são muito diferentes dos partidos políticos, onde o político profissional tenta vender seus artigos para o público". [The Sane Society, pp. 186-187]
Que isto significa? Friedman sugere que é melhor ser um consumidor do que um cidadão, pois você e os outros enquanto consumidores tem "precisamente" aquilo que querem.
A questão chave aqui é se as pessoas sempre tem aquilo que querem quando compram. Será que os consumidores que compram aquele papel de impressão e papel higiênico com alto gráu de alvura realmente querem toneladas de dioxidos e outros organoclorados nos rios, lagos ou águas costeiras? Será que o consumidor que compra carros realmente quer congestionamentos, poluição do ar, e autoestradas riscando a paiságem e destruindo o verde da natureza? E quanto àqueles que não compram estas coisas também serem afetados pelas decisões dos outros? A noção de que apenas o consumidor é afetado por esta ou aquela decisão é um nonsense -- o desejo puéril de ter "precisamente" aquilo que quer, indiferente ao impacto social que isto irá provocar.
Talvez Friedman achasse que quando consumimos algo também aprovamos o impacto que isso provoca. Mas quando "escolhemos" no mercado isto não significa que estamos expressando aprovação à poluição, cobrança de impostos ou concentração de poder. Isso ocorre porque não temos outra escolha a fazer. Tais escolhas são pré-definidas ou um resultado da somatória de processos nos quais não tivemos qualquer participação individual ou coletiva. Dessa forma, ficamos incapacitados de fazer outras escolhas individualmente senão aquelas que somos forçados a fazer. No final, todos acabamos prejudicados coletivamente. Dessa forma, o mercado, pela mentalidade nefasta que produz e reforçado pelo apoio proporcionado pelo estado, induz ao erro. O mercado não nos propicia outras opções senão aquelas que ele já determinou.
Aquilo que Friedman afirma com relação a escolhas: "você acaba com algo diferente daquilo que você escolheu" é igualmente válido no que diz respeito ao mercado.
Considerações como estas indicam que o modelo do homem "consumidor" é de certa forma limitado (para dizer o mínimo!). É necessário, portanto, reconhecer a importancia do modelo "cidadão" dentro do qual não caberia esse modelo de "consumidor". Participar como membro ativo de sua comunidade não significa que ter que parar de fazer escolhas individuais de consumo entre as várias opções apresentadas. Pelo contrário, a remoção das escolhas torpes (tais como aquelas que visam lucros, bens ou direitos às custas dos trabalhadores, das famílias, dos pobres, da natureza) tornará nossas opções potencialmente enriquecidas.
Importante destacar também o papel que o modelo "cidadão" exerce sobre aqueles que o praticam e como ele pode enriquecer nossa vida social e pessoal. A ação através de instituições participativas alimenta e fortalece uma especie de "ânimo público". Os cidadãos, em virtude de tomarem decisões coletivas tendem a levar em consideração os interesses dos outros tanto quanto os seus próprios, bem como pesar o impacto que suas possíveis decisões irão provocar nos outros, na sociedade e no meio ambiente. Isto significa, pela sua própria natureza, um processo educativo através do qual todos saem ganhando no desenvolvimento de suas habilidades críticas aperfeiçoando e expandindo suas definições de auto-interesse considerando a si próprios como parte da sociedade e do eco-sistema tanto quanto indivíduos. O modelo "consumidor", pela sua própria natureza exclusivamente orientado pelo privado e pelo dinheiro proporciona pouco ou nenhum desenvolvimento às faculdades das pessoas, as quas tendem colocar seus interesses mesquinhos pessoais e imediatos como o guia que orienta direta ou indiretamente suas ações "racionais".
Conforme argumenta Noam Chomsky, "hoje podemos constatar que nem mesmo as notas de rodapé que expressam as 'externalidades' dos economistas merecem nossa confiança. Nenhuma pessoa que concentre seu pensamento por alguns momentos nos problemas da sociedade contemporânea pode falhar na avaliação dos custos sociais provocados pelo consumo e pela produção, pela progressiva destruição do meio ambiente, pela irracionalidade uterina na utilização da tecnologia contemporânea, pela inabilidade de um sistema baseado no lucro ou na maximização do crescimento em determinar necessidades que apenas podem ser expressas coletivamente, e o enorme vácuo que esse sistema impõe através da maximização das mercadorias de uso pessoal em vez de proporcionar um aumento generalizado na qualidade de vida..." [Radical Priorities, p. 223]
O modelo "consumidor" traz em seu bojo o fato de que a somatória das decisões tomadas por indivíduos racionais pode não produzir um efeito coletivo racional (ou seja, prejudica o envolvimento individual e trabalha contra seus próprios interesses). Padrões sociais criados e enriquecidos por processos de discussão e diálogo podem ser efetivamente bem sucedidos, coisa inadmissível num modelo "consumidor", que além de ser essencialmente pobre em propiciar uma construtiva mudança social, em hipótese alguma proteje o indivíduo contra eventuais "situações de desespero" que tanto ele como a sociedade podem chegar (veja também seções E.4 e E.5).
Isto de forma alguma significa que os anarquistas desejam eliminar a tomada individual de decisões, pelo contrário. Uma sociedade anarquista será baseada na tomada individual de decisões sobre o que se quer consumir, onde se quer trabalhar, que espécie de trabalho se quer fazer e quando. Portanto o objetivo do modelo "cidadão" não é "substituir" o modelo "consumidor", mas apenas aperfeiçoar o ambiente social onde fazemos nossas decisões de consumo individual. O que o modelo "cidadão" de decisão humana deseja é colocar tais decisões sob uma estrutura social (não mercantil), de tal forma que todos tomem parte ativa em proporcionar qualidade de vida para todos pela remoção da "Lei de Gerson" tanto quanto possível.