A Realização e a Supressão
da Religião Se é verdade que os escritos sobre o tema Religião são insuperáveis
na quantidade de "tonterías", essa verdade se aplica tanto a teístas quanto
a ateístas radicais, os enganos e os exageros se multiplicam por ambos
os lados. É comum ver cada uma dessas partes se agredindo mutuamente,
mas quase nunca olhando-se no espelho para ver o que está errado consigo
mesma. Quem se apressa em julgar, fixar sua atenção num pormenor e imediatamente
tirar deduções, geralmente incide em erro. O atalho rápido não leva a
lugar algum, principalmente quando procura estar de bem com o pensamento
dominante de seu grupo ou facção. Aqueles que dizem saber tudo sobre temas
tão complexos como religião ou espírito revolucionário, na maioria
das vezes ainda não saíram da estaca zero. A propensão
para ofensas, insultos, e recusa ao diálogo, significa um trancamento
interno devido a dogmas e doutrinas jamais questionados. E o que dizer
daqueles radicais que vivem querendo impor suas doutrinas a outros radicais,
eles não se assemelham a religiosos? Gente fugidia das responsabilidades,
grandemente atormentada e ansiosa. Gente demasiado ocupada para perceber
que seu combustível mor é desejo de obter posição e importância sobre
os demais. Felizmente, este não é absolutamente o caso de Ken Knabb autor de "A realização e a supressão da religião", aliás, é sempre bom ler uma crítica séria à religião escrita por um revolucionário, independente de sua visão. Na pior das hipóteses é um excelente ponto de partida para o debate construtivo. Knab, autor radical de tradição situacionista, externa alguns conceitos:
"a religião é a expressão alienada do qualitativo, a 'realização fantasiosa
da humanidade'"; conselhos: "o movimento revolucionário deve opor-se
à religião, mas sem preferi-la a um amoralismo vulgar ou um sentido comum
filisteu. Deve tomar posição do outro lado da religião. Não ser menos
que ela, mas mais"; e ponderações: "ultrapassa indubitavelmente
qualquer outra atividade humana em quantidade e variedade de tolices".
Mas é nessa expressão: "quando os situacionistas tratam a religião,
a consideram normalmente em seus aspectos mais superficiais e espetaculares.
. ." que quero me ater. Tanto o credo constantiniano (católico) como o agostiniano (Lutero, Calvino, Zuwinglio, Melanchton) base do reformismo protestante que se arrasta desde a decadência do feudalismo até nossos dias, ambos tem funcionado como uma luva em favor dos interesses capitalistas. É por isso que quase toda a literatura, imensa por sinal, dessas duas tradições são intragáveis a qualquer radical que pretenda se debruçar seriamente sobre o tema da religião. Mas esse que não é absolutamente o caso das tradições cristãs libertárias, como as renanas, anabatistas, huteritas, menonitas, quacres, ephratanas. O problema é encontrar traduções e obras dos autores dessas tradições, os capitalistas há séculos vem boicotando a difusão dessas obras. Mas Knabb prossegue referindo-se à religião, "Se se considera além disso seu papel como cúmplice da dominação de classe através da história, não surpreendente que haja atraído sobre si o desprezo e o ódio de cada vez mais pessoas, em particular dos revolucionários". Mas olhando essa questão sob outro ângulo, veremos que as religiões, não raras vezes, também exerceram um papel oposto, ou seja, de confronto radical à classe dominante. Três exemplos marcantes disso foram os escritos proféticos hebraicos do século VIII A.C., o advento de Jesus Cristo, e o papel dos anabatistas nas Revoltas Camponesas do século XVI e XVII. Cada um desses personagens históricos se opõem radicalmente às autoridades religiosas e seculares de seu tempo, cada um de seu jeito e em épocas bem distintas, mas com uma coisa em comum, a utilização dos aspectos essenciais da religião, a verdade e a urgente relevância do valor moral, a psicologia e a racionalidade, a liberdade e a justiça, contrastando com aquela "casca" religiosa sempre ao lado do poder político e econômico exercido pelas classes dominantes. O problema da religião é que tudo aquilo que não é cerne é lixo. O que for além da essência religiosa é contaminação, é falsa religião do começo ao fim. Assim surgem as miríades de religiões, tão inúteis quanto nocivas, principalmente pela frivolidade de seus aspectos formais e exteriores, repletos de mandamentos, submissão, sistemas de dogmas, dependência, observâncias, que sempre conspiram para nebular, quando não apagar a justiça e a liberdade, os escrúpulos e a moral. Qual seria a definição dessa essência religiosa? R. B. Y. Scoot em Os Profetas de Israel Nossos Contemporâneos, Págs. 194 a 199, Editora Aste, nos ajuda nesse sentido:
Inúmeras passagens nos evangelhos mostram Jesus encontrando
forte resistência ao ensinar essa essência da religião. Veja, por exemplo,
o que aconteceu numa sinagoga em Nazaré: "E todos na sinagoga se encheram
de ira (...) E levantando-se (...) o levaram até ao cume do monte em que
a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem".
Não estamos falando aqui de um ateu, mas de um religioso, mas naquele sentido da essência religiosa descrita acima por Scott. Alguns anos atrás, um jovem perguntou-me qual a utilidade da religião dentro do movimento revolucionário, transferi a resposta para uma senhora, por sinal religiosa, que acompanhava o debate e que prontamente respondeu: "nenhuma!". Essa resposta estava correta e ao mesmo tempo errada dependendo do conceito que cada um tinha sobre o significado daquela "religião" embutida na pergunta do rapaz. A maioria dos revolucionários reivindicaram o ateísmo por não acreditarem na existência de um Deus. Mas alguns desses revolucionários, contudo, não hesitaram em sacrificar suas próprias vidas em prol da justiça e do bem. Mas se a assertiva de Scott, baseada no pensamento dos Profetas de Israel de que "Buscar a Deus e buscar o bem são uma e a mesma coisa", está correta, então como é que se explica esse apelo interno pelo bem e pela justiça? Será que é tão difícil assim compreender a natureza desse grito por liberdade e justiça que sai do fundo da alma de um revolucionário sincero? Railton Guedes
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