Comunalismo Cristão

Índice e Prefácio
I - A Crise na Teologia e na Ética 13
II - O Caminho da Vida Abundante 21
III - O Caminho da Vida Perdida e Recuperada 35
IV - O Primeiro Impacto de Jesus 49
V - A Descoberta de Corinto 71
VI - O Tratado de Roma 83
VII - A Expansão do Pensamento de Paulo 99
VIII - A Plenitude de Cristo 115
IX - Paulo na Igreja Primitiva 137
X - A Vinda da Maioridade 145

III - A VIDA PERDIDA E RECUPERADA

 

Assim começou a segunda fase do ministério e dos ensinamentos de Jesus. O primeiro plano, como o registro sinótico mostra, é resumido meritoriamente na primeira expressão vocal joanina sobre a vida: 'eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância' (João 10.10). É uma declaração que resume o propósito de todo processo criativo e evolutivo e isso seguramente deveria ser a meta de todo o esforço humano. Depois surge uma nova mensagem, a chave de tudo aquilo que viria a seguir. Após a confissão de Pedro, Jesus reúne seus discípulos e declara publicamente: 'se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá, e quem perder sua vida por causa das boas novas a salvará' (Marcos 8.34-35). Essa declaração, mas frequentemente citada do que qualquer outra, reproduz a segunda expressão vocal sobre a vida em São João. 'O homem que ama sua vida perde-la-a, e o homem que odeia sua vida como é neste mundo, guardá-la-a para a vida eterna' (João 12.25).

Foi com esse desvencilhamento do ego que teve início a viagem do norte em direção a Jerusalém. Jesus viu claramente aquele momento como um clímax. O grupo que reunira para o ministério público estava agora sendo treinado para experimentar a vida 'no Reino', e reconhecer sua realidade e caráter. A mensagem fora levada tanto pelas viagens do Mestre como na missão dos seus apóstolos, iniciando entre os companheiros de Israel, enquanto 'ovelha perdida' do rebanho, estendendo-se ao centurião que possivelmente era um prosélito, e posteriormente à mulher sirofenícia. Os discípulos, treinados por símbolos e parábolas, verificavam que a pessoa de Jesus era para

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eles e para todo o gênero humano a perfeita 'imagem' do invisível, o Homem esperado que viria do céu, o Ungido de Deus. Chegara o momento de apresentar as boas novas ao povo de Deus em sua cidade de Jerusalém. Jesus subiu para lá na Páscoa; 'ele ia adiante deles e eles estavam pasmos, maravilhados, eles o seguiam atemorizados'(Marcos 10.32). Tratava-se de uma nova situação, de uma nova tarefa.

Em sua secreta viagem a Cafarnaum pela Galiléia, em pleno ministério, ele levantou o tema da hierarquia. 'O que vocês discutiam pelo caminho?' (Marcos 9.33-37). Mas eles se calaram porque pelo caminho tinham discutido entre si sobre qual deles era o maior. Assim ele lhes aplicou diretamente uma lição, 'o primeiro será o último e o servo de vocês todos', e demonstrou a vida familiar do Reino tomando uma criança nos braços e reivindicando que Deus, ele e a criança são um. E quando o João protestou que um homem que não pertencia à comunidade estava usando o nome de Jesus para exorcismo, ele lhe disse para que não interferisse; 'quem não está contra nós está do nosso lado' (Marcos 9.40-50). Assim ele os adverte contra a xenofobia que é uma máscara de orgulho e imputa inimizade ao outro para afiançar nossa própria separação dele. A generosidade aos outros sempre é recompensadora; colocar obstáculos no caminho dos outros sempre é danoso para nós mesmos. Devemos ser rápidos para descobrir o que é que nos atrapalha, pode muito bem ser nossa própria mão, pé ou olho; se quisermos crescer em plenitude de vida, a fonte do dano deve ser abandonada; deve ser purificada como que através do fogo. Temos o sal purificador da vida dentro de nós; preservemo-lo, e vivamos em paz.

Uma das principais preocupações de Jesus foi revelar Deus e nutrir a sensibilidade dos homens para com ele e dos homens entre si. Agora que começaram a viver, eles precisam de uma ajuda mais concreta. Eles têm que aprender como a nova relação pode ser expressa em casos concretos e quando

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enfrentam assuntos especiais. Devem ser examinados os velhos hábitos, questões governamentais e costumes: eles podem ser guias bem cegos ou até mesmo enganosos para o modo novo de vida.

Até este momento Jesus estava tão completamente preocupado com as pessoas que sua condição, ocupação, raça e sexo aparentemente pouco importava. Ele fora amigável com publicanos e pecadores, com um centurião e com um dirigente da sinagoga. Embora falasse com dureza aos escribas e fariseus, vítimas de orgulho, gente falsa, isto aparentemente não afetou suas relações pessoais com eles. Na realidade ele tinha prestado ou parecia prestar pouca atenção aos problemas da vida, às questões sociais e econômicas, civís e políticas, sexuais ou domésticas. Todavia tais perguntas são dirigidas a ele, o que ele tem a dizer?

Quando uma caravana aparentemente vinda da Galiléia, do lado oriental da Jordânia cruzou o rio e passou para o territorio sob a jurisdição de Herodes no domínio romano da Judéia, os fariseus o confrontaram com a questão do divórcio trazida à tona pela conduta de Herodes.(1) Tal divórcio era legal? Era naquele tempo, uma questão controversa como em nossos dias? Moisés falara sobre esse tema --- mas o Torah manteve tais idéias? Com que significado? A resposta de Jesus é informada diferentemente em outra narrativa, desviada de sua forma primitiva. Jesus não tem nada a dizer sobre ritos de casamento e costumes ou consequentes restrições e regulamentos: todas estas coisas são o resultado da natureza torta do homem e de seus afetos truncados.

Ele reporta o fato básico, a dualidade e a congruidade dos sexos. Homem e mulher 'se pertencem mutuamente'; monogamia é a cuminação natural dessa interdependência; eles são 'uma só carne' e o ato que consuma tal união é final.

(1) Marcos 10.1-12. A versão expandida em Mateus 19.1-10 é mais legalista, aparentemente sanciona o divórcio para relacionamentos extra-matrimoniais, é mais ascética, porque Jesus reconhece que nem todos podem acatar sua palavra, e fala de pessoas que se tornam eunucos.

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Deus os uniu pelo ato da criação; ou seja, torna-se adultério se a união uma vez consumada é quebrada. Jesus, aqui pelo menos, não trata de opções alternativas, como paixões promíscuas, casuais, variáveis e relacionamentos sexuais, mas com o simples fato físico e espiritual que o criativo ato de procriação significa, algo santo, completamente independente de autorizações legais ou eclesiásticas. Quando defendemos votos de matrimônio e bênçãos da Igreja aparentemente assumimos que a pureza da perspectiva, da experiência e até mesmo da autenticidade do amor são coisas relativamente sem importância --- e que a união pessoal só é validada pelo penhor legal. Voltaremos depois a este assunto: por enquanto ficamos com o que Jesus disse. O que é certamente importante, mesmo se também concordarmos que o padrão dele é inacessível.

Então seguiu-se o segundo incidente, sobre crianças e a tentativa dos discípulos em mante-las distante. 'A menos que você dê boas-vindas ao Reino como uma criança, você não entra nele'. Uma declaração que não tem nenhuma relação com batismo infantil: não é a idade nem, pelo menos eu acho, a inocência do concorrente que importa, mas a espontaneidade, a criatividade e a simplicidade com que você entra nele. Não há nenhum espaço no primeiro momento da experiência com Deus para cálculos ou argumentos. A paz e a presença de Deus estão, como disse Paulo, além de todo argumento ou compreensão lógica: aceitar isto deveriam ser um ato de todo o ser. E, como os próximos incidentes irão revelar, tais coisas calam mais fundo do que obedecer regulamentos. O jovem que perguntou 'bom mestre, o que é que devo fazer para viver eternamente?' não apenas mereceu a repreensão 'apenas Deus é bom; toda a bondade é dele' -- como também, incidentemente, não significou de forma alguma um repúdio à própria bondade ou divindade de Jesus; provavelmente totalmente o contrário. Ele também foi advertido de que vida envolve uma singeleza de objetivos e uma plenitude de dedicação que aquele jovem, por causa da riqueza que possuia, ainda não atingira.

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Depois de suas advertências sobre riquezas e seu efeito corruptor, Pedro enfatizou que os discípulos tinham entregue tudo que possuiam. Jesus assegurou a ele que tal sacrifício teria sua própria recompensa mesmo sem abrogar o princípio primeiro-último. A seguir ele é confrontado com a grande ilustração do gosto pelo prestígio externado pela mãe de Tiago e João, seus seguidores mais íntimos. Seguramente seriam candidatos a estarem próximos a ele no Reino. Mas tal reivindicação não poderia ser concedida; não pode haver nenhuma barganha para qualquer privilégio, nem talvez para a fuga, no reino do amor de Deus; sua família não tem nenhuma criança predileta. Quando os outros discípulos, não sem razão, expressaram seu aborrecimento a esta tendencia ao nepotismo, Jesus disse a todos eles que a nova comunidade não tinha nada em comum com dinastias e hierarquias do mundo das nações; a grandeza é colocada em termos de ministério onde a prioridade é dada ao escravo. Realmente o Filho do Homem veio 'não para ser servido mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos' (Marcos 10.45). E assim foi, na estrada de Jericó, em Jerusalém e em sua Paixão.

São notáveis as mudanças de caráter na fase final do ministério de Jesus. Ele não apenas se torna mais explícito em sua apresentação da vida em Deus como também se torna mais claramente focado na pessoa de Jesus. Seu clamor à submissão, sua posição como Messias, sua relação especial com Deus -- agora todas estas coisas se tornam manifestas. Os homens vinham ve-lo nesta relação; e perceberam não apenas um novo conceito da natureza de Deus como nosso Pai, mas também um novo símbolo, o perfeito Filho do homem, como forma de união com o divino. Nele, a adoração poderia ser transportada em amor: amor encarnado, o que significou para seus discípulos a única imagem adequada de Deus, uma vez que era apresentada em termos de nosso elemento mais elevado. O antropomorfismo sob tal perspectiva não poderia ser encarado como um rebaixamento da Deidade mas para nós, os homens, como sua única expressão apropriada. Vida eterna, vida em termos da terceira definição joanina,

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'o conhecimento do único Deus verdadeiro, e de Jesus Cristo, a quem ele enviou' (João 17.3).

Assim, quando atravessava Jericó, ele é saudado pelo cego Bartimeu: 'Jesus, filho de David', conforme descrito em Marcos (10.47-49). O mesmo ocorre quando, montado em um jumento, entra em Jerusalém, tanto os que iam à frente como os que seguiam atrás clamavam: 'Viva o Rei!', 'Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!'... 'Bendito seja o reino de nosso pai Davi!'. No dia seguinte, agindo em nome de Deus, ele esvaziou o mercado de Templo, expulsando os cambistas e os vendedores; as autoridades não ousaram interferir; pois as pessoas estavam atentas ao seu ensino. Foi no dia seguinte, quanto questionaram sua autoridade arrazoando que tanto ele como Joao Batista apenas expressavam um clamor humano, que ele revelou o grande desafio para o qual fora chamado. Ele o fez através de uma parábola, método bem familiar aos profetas e salmistas, e contou como Deus tinha disposto, plantado e equipado seu vinhedo na casa de Israel, arrendando-o e posteriormente enviando pessoas para que recolhessem sua quota parte. Enviou seus mensageiros um a um, sucessivamente, e cada um deles foi maltratado, agredido, ferido ou morto. Até que por fim, enviou seu próprio filho amado, pensando: 'eles irão respeitar meu filho'. E eles disseram: 'Ele vai ser o dono da propriedade quando o pai morrer. Vamos matá-lo, e então a propriedade será nossa'. Assim foi que eles o agarraram, mataram e jogaram o corpo fora da vinha. Que acham vocês que o dono fará quando souber o que aconteceu? Virá, matará todos eles, e dará a vinha a outros. Os líderes judaicos queriam prender Jesus naquele mesmo momento, por ele usar esta ilustração, pois sabiam que os lavradores maus da sua história eram eles. Porém tinham medo do povo; então desistiram da idéia e foram embora (Marcos 12.1-12).

Tudo que eles poderiam fazer era tentar desacreditá-lo. Procuraram confundi-lo com questões referentes ao pagamento de impostos --- com o intuito de incriminá-lo pela sua resposta --- e com questões sobre ressurreição e relações subseqüentes. Um inquiridor sincero perguntou-lhe sobre a importancia comparativa dos vários mandamentos da

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lei. Ele respondeu, como sempre, sem hesitação ou evasão, e então repetiu de uma forma bem simples o desafio de sua parábola: 'O próprio Davi chama-lhe Senhor. Como, pois, pode ser seu filho?'. (Marcos 12.35-37). A declaração em São Mateus (22.41-45) traz uma forma mais direta ainda: 'O que acha você do Cristo? De quem ele é filho?'. O dia termina com uma advertência contra o exibicionismo dos religiosos e um elogio à generosidade dos pobres. A hierarquia dos saduceus, nula em apoio popular, revela-se comprometida com o regime romano, contrapõe suas doutrinas às boas novas,(1) e planeja juntamente com os rabinos uma forma de prendê-lo e matá-lo.

Ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso, e apenas esperava o desenrolar dos acontecimentos. Parecia claro que o desfecho dramático não poderia ser contido nem pela luta nem pela força; há muito tempo ele tinha previsto o perigo. Mas como sempre, ele aceitou o que haveria de vir. Os dois dias seguintes são marcados pelas histórias de duas ceias: uma em Betânia na casa de Simão, o leproso, com o belo incidente da mulher com seu frasco de perfume, 'um unguento preparado para seu enterro'; e a outra no andar superior, talvez na casa da mãe de Marcos em Jerusalém onde o pão e o vinho do novo pacto são santificados e compartilhados. Depois veio o Getsêmani.

Eis que a crise chega --- a crise que Jesus previra e se preparava para enfrentar juntamente com seus discípulos --- a crise que defronta cada homem quando a vida com Deus no mundo revela sua impossibilidade. O registro que temos, brevemente traçado em São Marcos, esboça uma vida com Deus no Reino, uma vida

(1) ambos comprovados por sua resposta (Marcos 12.18-27) e pela ressurreição de Lázaro (João 11.45-53).

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consistente na multiplicidade de suas relações, e abundante em todas as ocasiões em que foi testada. Tanto em sua plenitude como em sua dedicação ela se revela completa, o caminho por onde o homem deve andar. Ele soluciona os problemas e revela a universalidade e a praticabilidade do viver em Deus; tornando convictos os que por ele andam e o soldaram em uma comunidade. Não se tratava da criação de uma redoma utópica de sol e felicidade --- mas de uma situação onde a luz do amor e da alegria eram ricamente experimentadas. Um caminho que seria trilhado no mundo tal qual o conhecemos, um mundo de homens e mulheres egoístas, todos eles imperfeitos e alguns deles maldosos. Por enquanto esse ambiente, onde bons e ruins viveriam juntos como trigo e palha, seria um possível ambiente para o Reino. As sementes seriam lançadas com algumas delas arraigando, crescendo e frutificando. Mas chegara o tempo em que o Caminho parecia finalmente bloqueado, o tempo em que cada um de nós se depara com o fato concreto da morte que de forma inescapável nos confronta, quando somos compelidos a perceber que o espaço onde nos fixamos está cessando para nós, e que todas nossas ligações, nossas relações terrestres pelas quais Deus revelou-se, chega a um fim. Jesus e os homens e mulheres ao seu redor serão separados; já não mais poderão ser expressas as esperanças e tarefas particulares que uniram cada um deles em seu convívio familiar; chegou a hora da partida --- ele tem que ir e eles ficarão. Mesmo que esteja seguro de que pelo menos com alguns deles um afeto imortal foi estabelecido, como essas coisas pordem ser mantidas quando toda sua expressão terrestre desaparece?

Em todo caso para os discípulos --- e realmente para muitos outros, inclusive Saulo de Tarso --- o evento que viria a seguir era catastrófico. Era o fim do seu mundo, o momento da proclamação da sentença sobre os tradicionais sistemas de moralidade legalizada, de servidão e de individualismo, de todas as formas de associação humana não baseadas em relações pessoais e mútua

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solidariedade. Jesus viera em carne e osso, exatamente como predito pelos profetas. Nele Deus 'visitou seu povo'. A esperança aguardada por Israel e por todas as nações se cumprira. E o resultado foi o Calvário. Os melhores representantes de seus contemporâneos, as duas mais respeitadas instituições, o Sinédrio do povo de Deus estabelecido no sacerdócio e no rabinato, e a justiça imperial de Roma estabelecida na pessoa de seu procurador, ambos combinaram crucificar o Cristo. Julgado pelos seus próprios padrões, ele não passava de mais um revolucionário iludido enganando seus seguidores e que poderia envolver a terra santa em matança e destruição. Bastaria matá-lo e deixar o tempo passar. Mas, para os discípulos que o conheceram, que o viram e que acreditaram nele, aquela atitude significava simplesmente a traição e a ruína de Israel, o fim daquele mundo, o nascimento de um modo novo de vida, um novo amor os uniria, uma nova comunidade os integraria, uma nova e completa perspectiva e conhecimento os inspiraria. Da mesma forma que receberam a Páscoa como garantia de sua presença viva, e sua Ascensão como conhecimento de sua condição divina, da mesma forma eles encontraram no Pentecostes a vida eterna que lhes foi dada na vida abundante de seu ministério, e a vida pela morte do ego em sua crucificação. Para eles, como para o mundo, tratava-se de uma nova civilização; a velha tinha morrido. Esse foi o significado do Gethsemane.

Talvez, muito freqüentemente nossa interpretação da sua Paixão seja colocada em termos do seu sofrimento, da sua completa tortura e do desgosto que envolveu aquela contínua agonia. Seguramente o sofrimento advindo de sua escolha e submissão esteve intimamente ligado aos seus discípulos, o choque de sua prisão, a vergonha de sua traição, a decepção dos seus sonhos, a perda do seu amor, o fim do seu contato, o triunfo dos seus inimigos, o fracasso de sua missão --- a agonia, inconsolada pela sua presença ou por sua fé em Deus, tudo isso teve um gosto amargo tanto para ele como para seus discípulos, o Gethsemane é a evidência disto; e quando o último

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conflito de lealdades se resolveu, 'eu quero a sua vontade e não a minha',(1) este foi o veredito.

No que diz respeito a detalhes como o julgamento, os dados relativos à Páscoa, a sequencia, a legalidade, a amplitude dos poderes constitucionais do Sinédrio sob o governo romano, o interlúdio com Herodes, o caráter e os motivos de Pilatos, todas estas coisas não tem nenhum interesse especial nesse momento. De qualquer forma, na medida em que Jesus resolve enfrentar a situação mesmo sem ter nenhuma condição de desafiar a autoridade do estado, os modernos problemas altamente complexos da relação entre a cristandade e os chamados governos seculares cristãos não vem à tona. Quanto à fascinante e importante questão envolvendo a atitude dos fariseus e de outros judeus que tinham um especial interesse em atacar Jesus, discutiremos mais adiante. Por enquanto basta notar que as autoridades não conseguiram encontrar bases secundárias para condená-lo, tendo que deter-se na questão básica. 'Você é o Messias, Filho de Deus?'. Em resposta o Jesus afirmou não só sua condição de Messias como também a explicou citando Daniel (7.13) no advento do Filho do Homem. Acabaram condenando-o naquela mesma noite com base nessa acusação na sessão oficial do Sinédrio, a formulação básica de sua missão, em seguida o enviaram ao Procurador --- a acusação foi modificada pelo tribunal romano pela reivindicação de reazela, portanto, traição contra o Imperador. O escárnio dos soldados e a inscrição na cruz confirma esse veredito.

A crucificação, morte considerada pelos judeus como especialmente amaldiçoada, era a penalidade aplicada nestes casos. Foi na própria cruz, como os registros e a experiência madura da cristandade concordam afirmar, que a boa notícia alcançou seu pleno significado: o 'mistério', o

(1) Marcos 14.36. Acho que essas palavras foram preservadas para nós pelo rapaz que vestia o 'pano de linho' (Marcos 14.51-52). Ele bem pode ter sido o evangelista que celebrou a Última Ceia na casa de sua mãe: cf. Atos 12.12.

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segredo do paradoxo de vida com Deus no mundo, é revelado. Até aqui vimos isto em termos da relação entre o Jesus com seu ambiente. Ele, diferentemente de todos os filhos dos homens, viveu eternamente, ou seja, em uma união irrompível com o divino, do Filho com o Pai. Ele também viveu neste mundo, tanto no tempo como no espaço, de individualidades multiformes. Viveu como um homem entre homens, e mostrou como unidades diversas poderiam ser erguidas acima da contraditória normalidade entre o egoísmo e o altruísmo das suas próprias naturezas. Eis aqui a mutualidade, a vida reconciliada, o Caminho da nova e suprema felicidade propiciada pela aceitação de Jesus na qualidade do próprio Deus. Trata-se de amor --- mas amor que supera nossas limitações de exploração e de sentimentalismo, amor que nem domina nem idealiza, amor completamente livre do sadismo e do masoquismo.

Em nós, e em Jesus, há lugar tanto para a auto-realização como para a auto-redição: motivos completamente egoísticos e altruísticos não devem ser materializados pela supressão de um ou de outro mas pela integração entre ambos. Unidade e diversidade, o velho problema da unidade e da pluralidade que era o assunto básico de filosofia grega, deve ser solucionado. A história da evolução, do átomo para a molécula, da molécula para a célula, do unicelular para o multicelular, provê séries de exemplos do mesmo processo, pelo menos no nível humano, conforme sugerido por Thelhard de Chardin naquilo que chama de 'hominização', uma realização semelhante é atingível.

Aqui, a grande frase registrada por Marcos, o grito de desamparo 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?', nos revela o momento em que a tensão é quebrada. A expressão vocal da mais completa solidão, a rendição da última garantia da presença divina; e assim o meio para o endosso do triunfo final. Aqui cumpre-se o paradoxo de vida perdida e recuperada, da declaração de Jesus freqüentemente repetida nos registros de sua vida. A morte é, ou parece ser, o isolamento absoluto do ego, e portanto, 'o portão

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da vida', a liberação de uma relação de amor onde egoísmo e altruísmo são uma e a mesma coisa.

Essa mesma frase é uma clara referência ao poema profético que chamamos de Salmo 22 onde um coração quebrantado aparentemente derrotado é envolvido pelo esplendor e plenitude da vida eterna. Na tradicional sucessão das Sete Palavras da Cruz, organizadas nos Evangelhos como um padrão perfeito, seu conjunto é visto como a dramática apresentação e expressão do amor personificado no crucificado. Aqui é o amor que perdoa, que suporta, que une; isso dá tudo e que dando recebe; ele atrai, tem sucesso, e se consuma. É a crise dramática e o resumo do ministério de Jesus, de uma vida que seus inimigos julgavam ter chegado ao fim com a Cruz mas onde de fato a Cruz foi o ponto central. A vida encontrou sua plenitude no Pentecostes, a plenitude que ainda opera externamente na comunidade santificada, seu Corpo ressurreto.

Embora nem o Evangelho de São Marcos nem a fonte comum a São Mateus e São Lucas dêem detalhes das aparições, nada é mais certo de que logo após o enterro seus discípulos não tinham nenhuma dúvida de que Jesus estava vivo e com eles. Em uma época quando não havia nenhum idioma que pudesse distinguir experiências físicas de psíquicas, e em um assunto sem precedente é difícil determinarmos os eventos precisos que estabeleceram tal convicção. Mas esses eventos mudaram inteiramente a perspectiva e o caráter daquelas pessoas, e repetido com um forte grau de semelhança ao longo da história na experiência de São Paulo a caminho de Damasco. Não estamos aqui interessados em descrever detalhadamente tais eventos, e muito menos a ocasião que denominamos de Ascensão quando aparentemente foi manifesto o estado divino de Jesus. Basta-nos a narrativa de São João das três ocasiões que tipificaram tais eventos, a suficiência de Jesus em conhecer a solidão de

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um coração quebrantado, a confusão da derrota, e as dúvidas dos cépticos (João 20.11-29).

O que é mais imediatamente relevante é a manifestação no Pentecostes de um novo tipo de comunidade humana, um companheirismo do qual se dizia ser 'um só na mente e no coração' (Atos 4.32) e por São Paulo que eles eram 'o corpo único de Cristo e cada um de seus membros' (1 Cor. 12.27). Neste corpo homens e mulheres, compartilhando da mesma lealdade, dedicados ao serviço comum, e unidos pelo amor mútuo, alcançaram uma solidariedade orgânica que os habilitava individual e coletivamente na expressão da plenitude do modo de Cristo --- ou, melhor, em provê-lo de um instrumento pelo qual sua vontade poderia se cumprir. Símbolo e instrumento assim criados realmente eram o produto final de seu ministério.

Este realmente foi, desde o princípio, seu claro objetivo. Mesmo que toda a fonte e a história do Evangelho comum tanto a São Mateus como a São Lucas e conhecida pelos estudiosos como Q, possa conter pequenas dúvidas compartilhadas por São Marcos (de onde alguns trechos foram compilados) que ostenta o status dos registros seguramente mais autênticos que possuímos. Nada é mais esclarecedor do que a história da Tentação. É fácil de considerar os três testes como os que o afetaram mais intensamente. Ele usará sua vocação para atingir conforto e segurança, poder e controle, ou maravilha e adoração? Sua obra está principalmente dentro do campo econômico, político ou religioso? Mas para alguém que enfrentou o chamado e a missão de seu batismo, e o comprometido não trabalhar para si mas para Deus e para o seu próximo, seguramente há uma questão maior e mais evidente. Havia três métodos principais pelos quais uma comunidade poderia ser construída, três tipos de instituições apropriadas ao avanço humano. Panem et circenses, pão e circo, segurança e bem-estar social --- no que diz respeito a uma aldeia sob o jugo estrangeiro a primeira tarefa seria elevar o

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padrão de vida. Todo o Império estava familiarizado com sociedades amigáveis, guildas muradas e clubes de elite: apenas um século depois os magistrados amigavelmente se dispuseram autorizar a Igreja sob esta categoria. Mas 'o pão não saciará a alma dos homens': um ideal econômico nunca é completamente satisfeito. Tu regere imperio populos,(1) significava legiões marchando e estabelecendo um império que deveria dominar e unificar os povos. Tal método era totalmente familiar: tinha sido opressivamente usado mas para a paz romana. Não poderia o Filho de Davi preencher as expectativas populares, expelindo seus senhores pagãos, e estabelecendo, mediante uma certa dose de força, sua própria supremacia? 'Adore somente ao Senhor Deus: Obedeça somente a ele' --- nenhuma revolução política atingiria a vontade e o jeito de Deus.

'O Messias descerá de céu nos Tribunais do Templo', assim eles tinham predito, e assim tinha sido prometido. 'Deus enviará seus anjos para impedirem que se machuque'... 'eles impedirão você de despedaçar-se mas pedras lá embaixo'. Seguramente era necessário confiar em Deus, para o cumprimento de sua palavra, para vindicar sua missão. 'Dê-nos um sinal' foi a constante petição dos seus ouvintes. Ao provocar o temor e a adoração do seu povo, exibindo-lhes recursos do sobrenaturais --- Israel responderia a tal convocação e Deus cumpriria sua palavras e a responderia às espectativas do povo. 'Não se deve impor ao Senhor Deus uma prova absurda!'

Assim foram rejeitados os três tipos de instituição e os três conceitos de Deus como Provedor Universal, como Rei de Reis, e Provedor de Milagres, todos eles foram rejeitados como inadequados e falsos. O que permaneceu? O modo paternal [maternal] e familiar, o conceito do amor criativo e que a todos abarca, a oração do 'Pai Nosso' e a comunidade santificada de seus filhos. Assim foi fixado o curso em direção ao Calvário e ao Pentecostes.

(1) 'para ter domínio sobre os povos' (Virgilio).

 

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