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Por um Julgamento
Revolucionário da Arte
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O artigo de Chatel
sobre o filme de Godard [Breathless] em Socialismo ou Barbárie
#31 [fevereiro de 1961] pode ser caracterizado como uma crítica cinematográfica
dominada por preocupações revolucionárias. A análise do filme assume uma
perspectiva revolucionária na sociedade, confirma tal perspectiva, e conclui
que certas tendências de expressão cinematográfica deveriam ser consideradas
preferíveis a outras em relação ao projeto revolucionário. Isso obviamente
ocorre em virtude da crítica de Chatel abordar a questão em toda sua plenitude,
em vez de meramente apenas debater várias questões de preferência,
o que é interessante e chama ao debate. Especificamente, Chatel encontra
em Breathless um «valioso exemplo» em apoio à sua tese de que uma alteração
«nas formas presentes da cultura» depende da produção de obras que ofereçam
as pessoas «uma representação de sua própria existência».
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Uma alteração revolucionária
das formas presentes de cultura não pode ser nada menos que a substituição
de todos os aspectos do aparato estético e tecnológico que constitui a
agregação de espetáculos separados da vida. Isso não significa que deveríamos
superficialmente procurar relacionar um espetáculo aos problemas da sociedade,
mas em um nível mais profundo, relacionar o plano de sua função enquanto
espetáculo. «A relação entre autores e espectadores é não apenas uma transposição
da relação fundamental entre diretores e executantes.... A relação espetáculo-espectador
é por si só uma permanente coluna da ordem capitalista» (Preliminaries Toward Defining
a Unitary Revolutionary Program).
Ninguem deve ter ilusões reformistas
sobre o espetáculo, como algo que pode eventualmente ser melhorado de
dentro para fora, aperfeiçoado por seus próprios especialistas
sob um suposto controle de uma opinião pública bem-informada. Fazer isso
equivaleria a dar aos revolucionários a aprovação de uma tendência, ou
aparencia de tendencia, um jogo que nós absolutamente não devemos participar;
um jogo que temos que rejeitar inteiramente em nome das exigências fundamentais
do projeto revolucionário, que não pode de forma alguma produzir qualquer
estética pois já está completamente além do domínio estético. A questão
não é engajar-se em algum tipo de crítica artística revolucionária,
mas fazer uma crítica revolucionária da arte como um todo.
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A conexão entre a
predominância do espetáculo na vida social e a predominância de uma classe
governante (ambas baseadas na contraditória necessidade de uma aderência
passiva) não é um mero paradoxo estilístico habilidoso. É uma correlação
efetiva que objetivamente caracteriza o mundo moderno. É aqui que a crítica
cultural oriunda da experiência da completa autodestruição de arte moderna
se encontra com a crítica política oriunda da experiência da destruição
do movimento dos trabalhadores efetuada por suas próprias organizações
alienadas. Se alguém realmente teimar em achar algo positivo na moderna
cultura, deve ser dito que seu único aspecto positivo repousa em seu autoliquidação,
seu esvaziamento, seu testemunho contra si mesmo.
De um ponto de vista prático,
a que está em debate aqui é a relação entre a organização revolucionária
e os artistas. A deficiência das organizações burocráticas e de seus membros
na formulação e no uso de tal relação é bem conhecida. Mas parece que
uma consciente e coerente política revolucionária têm que efetivamente
unificar estas atividades.
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A maior fraqueza da
crítica de Chatel está precisamente no fato dele assumir desde
o começo, sem aludir nem mesmo à possibilidade de qualquer debate
sobre o assunto, que há uma radical separação entre o criador de qualquer
obra de arte e a análise política que poderia ser feita dela. A análise
que Chatel faz de Godard é um exemplo particularmente notável desta separação.
Considerando que o próprio Godard permanece acima de qualquer julgamento
político, Chatel nunca se cansa de dizer que Godard não criticou explicitamente
«o delírio cultural no qual nós vivemos» e que não pretendeu deliberadamente
«confrontar as pessoas com suas próprias vidas». Godard é tratado como
um fenômeno natural, um artefato cultural. Não se concebe a possibilidade
de Godard ter posições políticas, filosóficas ou outras que as pessoas
adotam ao investigar a ideologia de um furação.
Tal crítica se ajusta perfeitamente
à esfera da cultura burguesa — particularmente em seu setor de
«crítica da arte» — obviamente compondo o «dilúvio de palavras que camuflam
cada aspecto da realidade». Esta crítica é uma interpretação, entre muitas
outras, de um trabalho onde não temos qualquer função. O crítico assume
desde o princípio que ele sabe melhor que o próprio autor aquilo
que o autor pretende. Esta vaidade aparente é na realidade uma extrema
humildade: o crítico aceita tão completamente sua separação do especialista
artístico em questão que perde a esperança de poder atuar nele ou com
ele (o que obviamente requer levar em conta aquilo que o artista estava
explicitamente buscando).
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A crítica de arte
é um espetáculo em segundo grau. O crítico é alguém que faz um espetáculo
dentro de sua condição de espectador — um espectador especializado e portanto
ideal, que expressa suas idéias e sentimentos sobre uma obra na
qual ele realmente não participa. Ele reapresenta, remonta, sua própria
não-intervenção no espetáculo. A debilidade do acaso e os fragmentários
julgamentos largamente arbitrários relativos a espetáculos que realmente
não nos interessam é descarregado em cima de nós na forma de muitas discussões
banais sobre a vida privada. Mas o crítico de arte faz um espetáculo deste
tipo de debilidade, apresentando-o como modelar.
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Chatel acredita que
se uma porção da população vê a si mesma em um filme, será capaz
de «reconhecer-se, admirar-se, criticar-se ou rejeitar-se — e em todo
caso, usar as imagens que a tela passa para suas próprias necessidades».
Antes de mais nada notamos um certo mistério nesta noção de usar tal fluxo
de imagens para satisfazer necessidades autênticas. Parece ser necessário
primeiro especificar que necessidades estão em jogo de forma a determinar
se estas imagens podem realmente servir como meio de safisfazê-las. Além
disso, tudo que sabemos sobre o mecanismo do espetáculo, até mesmo no
nível cinematográfico mais simples, contradiz absolutamente esta visão
idílica de pessoas igualmente livres admirando ou criticando a si mesmas,
reconhecendo-se nos caracteres de um filme. Mas fundamentalmente, é impossível
aceitar esta divisão do trabalho entre especialistas incontroláveis que
apresentam uma visão da vida das pessoas para elas e audiências que têm
que reconhecer-se mais claramente nessas imagens. Atingir uma certa precisão
na descrição do comportamento das pessoas não é algo necessariamente positivo.
Mesmo com Godard apresentando as pessoas numa imagem delas mesmas onde
possam inegavelmente reconhecer-se mais que nos filmes de Fernandel, ele
os apresenta não obstante com uma falsa imagem na qual eles se reconhecem
falsamente.
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Revolução não é «mostrar»
vida para as pessoas, mas trazê-las à vida. Uma organização revolucionária
sempre tem que se lembrar que seu alvo não é fazer com que seus partidários
escutem as convincentes palestras de líderes especialistas, mas conseguir
fazê-los falar por si mesmos, para que alcancem, ou pelo menos se esforcem
por alcançar, um mesmo patamar de participação. O espetáculo cinematográfico
é uma das formas de pseudo-comunicação (desenvolvida, em detrimento de
outras possibilidades, pela presente classe tecnológica) na qual
tal alvo é radicalmente inatingível. Bem mais do que, por exemplo,
na forma cultural da conferência estilo-universidade com perguntas ao
final, em que o diálogo e a participação da audiência, apesar de submetida
a condições bastante desfavoráveis, não é completamente excluída.
Qualquer um que alguma vez viu um debate de cine-clube notou imediatamente
as linhas divisórias entre o líder da discussão, os aficionados que regularmente
falam em toda reunião, e as pessoas que apenas ocasionalmente expressam
seus pontos de vista. Estas três categorias estão claramente separadas
pelo grau de domínio do vocabulário especializado que determina seus lugares
dentro desta discussão institucionalizada. Informações e infuências são
transmitidas de forma unilateral, do topo para a base, nunca da base para
o topo. Não obstante, estas três categorias estão bem próximas entre si
em sua comum e confusa ineficácia como espectadores fazendo seu próprio
espetáculo em relação à verdadeira linha que os separa das pessoas que
de fato fazem os filmes. A unilateralidade da influência ainda é mais
rígida em relação a esta divisão. As consideráveis diferenças entre os
vários espectadores peritos em ferramentas conceituais de debates de cine-clubes
são no final das contas reduzidas pelo fato de que essas ferramentas são
todas igualmente ineficazes. Um debate de cine-clube é um sub-espetáculo
associado ao projeto do filme; é mais efêmero do que a crítica escrita,
mas nem mais nem menos separado. Uma discussão de cine-clube é aparentemente
uma tentativa a diálogo, um encontro social, de indivíduos crescentemente
isolados pelo ambiente urbano. Mas é de fato uma negação do diálogo uma
vez que as pessoas não se juntam para decidir sobre nada, mas para
sustentar uma discussão sob um falso pretexto e com falsos meios.
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Sem considerar seus
efeitos externos, a prática deste tipo de crítica cinematográfica apresenta
de imediato dois riscos para uma organização revolucionária
O primeiro perigo é que certos camaradas podem ser conduzidos a formular
outras críticas expressando seus diferentes julgamentos sobre outros filmes,
ou até mesmo deste. Partindo das mesmas posições concernentes à sociedade
como um todo, o número de possíveis julgamentos diferentes de Breathless,
embora obviamente não ilimitados, é não obstante bem grande. Só para dar
um exemplo, alguém poderia fazer uma crítica com o mesmo talento de Chatel,
expressando exatamente as mesmas políticas revolucionárias, mas tentando
expor a própria participação de Godard em um setor inteiro da mitologia
cultural dominante: o do próprio cinema (tomadas do tête-à-tête com a
fotografia de Humphrey Bogart, detalhe do Café Napoléon). Belmondo — no
Champs-Élysées, no Café Pérgula, na esquina da Rua Vavin — poderia ser
considerado a imagem (largamente irreal, naturalmente, «ideologizada»)
que a micro-sociedade dos editores do Cahiers du Cinéma (e até
mesmo toda a geração de diretores franceses que emergiram nos anos cincoenta)
projetaram de sua própria existência; com seus sonhos mesquinhos de sub-espontaneidade
ostentada; com seus gostos, suas reais ignorâncias, mas também seus entusiasmos
culturais.
O outro perigo seria a impressão
que a exaltação proporcionada por Chatel do valor revolucionário de Godard
pudesse levar outros camaradas a opor-se a qualquer discussão de assuntos
culturais simplesmente para evitar o risco da falta de seriedade. Pelo
contrário, o movimento revolucionário tem que outorgar um lugar central
à crítica da cultura e da vida cotidiana. Mas qualquer exame destes fenômenos
deve ser em primeiro lugar desabusado, não respeitoso para com determinados
meios de comunicação. As verdadeiras bases das relações culturais existentes
devem ser contestadas pela crítica que o movimento revolucionário precisa
fazer para realmente trazer à tona e afetar todos os aspectos da
vida e das relações humanas
GUY DEBORD
1961
Traduzido por Railton Sousa
Guedes a partir da versão inglesa de Ken Knabb (versão ligeiramente
modificada da versão constante na Antologia Internacional Situacionista).
Livre para uso pessoal sem
fins comerciais desde que citada a fonte.
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