Título: UIVOS PARA SADE
Autor: Guy Debord
Data: 1952
Descrição:
Tradução para o português do manuscrito e trilha sonora do primeiro filme de Guy Debord
Palavras-chave: França, Maio de 68, Situationistas
Linguagem: Português
Material Relacionado:
Manuscrito do filme traduzido da versão inglesa de Ken Knabb disponível em http://bopsecrets.org

Uivos para Sade

(manuscrito do filme)

Voz 1: Uivos para Sade, um filme de Guy-Ernest Debord.

Voz 2: Uivos para Sade é dedicado a Gil J. Wolman.

Voz 3: Artigo 115. Se alguém desaparece de sua residência e não se tem notícias dela durante quatro anos, as partes interessadas podem pedir ao tribunal civil para reconhecer oficialmente a ausencia de tal pessoa.

Voz 1: O amor é válido apenas em um período pré-revolucionário.

Voz 2: Nem todas essas garotas amam você, seu mentiroso! As artes nascem, crescem, e desaparecem porque pessoas insatisfeitas ultrapassam o mundo das expressões oficiais e vão além de seus festivais de pobreza.

Voz 4: Diga-me, você dormiu com Françoise?

Voz 1: Como na primavera! Coloque folhas novas na história do cinema: 1902: Viagem à Lua. 1920: O Gabinete do Doutor Caligari. 1924: Entr’acte. 1926: Couraçado Potemkin. 1928: O Cão de Andalucía. 1931: Luzes da Cidade. Nascimento de Guy-Ernest Debord. 1951: Treatise on Slime and Eternity. 1952: O Anticonceito. Uivos para Sade.

Voz 5: «Quando chegou a hora de dar início à projeção, esperava-se que Guy-Ernest Debord subisse ao palco e fizesse algumas observações introdutórias. Se ele tivesse feito isso, simplesmente diria: ‘O que vamos ver agora não é nenhum filme. O cinema está morto. Não é possível mais fazer nenhum filme. Se vocês desejarem, podemos passar para uma discussão'».

Voz 3: Artigo 516. A propriedade pode ser tanto real como pessoal.

Voz 2: Para que nunca fique sozinho novamente.

Voz 1: Ela é feia e bela — como tudo aquilo que amamos hoje.

Voz 2: A arte do futuro não pode ser nada menos que irrupção de situações.

Voz 3: Nos bares do Saint-Germain-des-Prés!

Voz 1: Você sabe, gosto muito de você.

Voz 3: Uma tropa considerável de cerca de trinta letristas, todos usando um uniforme imundo, a única marca registrada realmente original que possuem, vão até Cannes com o intuito de provocar algum escândalo que chame a atenção sobre eles.

Voz 1: A felicidade é uma idéia nova na Europa.

Voz 5: «Conheço as pessoas apenas pelas suas ações. Em outros aspectos eles são indistinguíveis uns dos outros. Definitivamente, somos diferenciados apenas por aquilo que fazemos».

Voz 1: E suas revoltas tornaram-se conformismos.

Voz 3: Artigo 488. A maioridade chega aos 21 anos; uma pessoa nesta idade está apta para todos os atos da vida civil.

   
   
DOIS MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 4:
 Ela constantemente reaparece em sua memória, repentinamente, como sódio efervescente dentro d'água.

Voz 1: Ele estava bem consciente de que nenhuma de suas façanhas permaneceria numa cidade que gira com a Terra, que gira dentro de uma galáxia, que é apenas uma porção insignificante de uma ilha minúscula eternamente distante de nós.

Voz 2: Escuridão total, os olhos se fecham diante da enormidade do desastre.

   

 

  UM MINUTO DE SILÊNCIO DURANTE O QUAL A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 1:
 É necessário criar uma ciência da necessidade de situações que incorporará elementos de psicologia, estatística, urbanismo, e ética. Estes elementos devem ser focados em uma meta totalmente nova: a criação consciente de situações.

   
    TRINTA SEGUNDOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 1:
Extrato de jornal em 1950: «Jovem Estrela do Rádio Pula no Isère. Grenoble. Madeleine Reineri, 12 anos, mais conhecida pelo nome de 'Pirueta' e atriz principal do programa de rádio Quinta Feliz nos Alpes-Grenoble, deixou sua pasta na escola e pulou no Rio Isère na tarde dessa sexta-feira».

Voz 2: Maninha, não somos uma coisa bonita de se ver. O rio e a miséria continuam. Somos impotentes.

   
   
UM MINUTO DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.


Voz 4:
 Mas ninguém fala sobre o filme de Sade.

Voz 1: A frieza do espaço interestelar, milhares de graus abaixo da temperatura de congelamento, do zero absoluto de Fahrenheit, dos Centígrados ou dos Réaumur: a incipiente insinuação de um amanhecer que se aproxima. A passagem rápida do Jacques Vaché pelo céu em tempo de guerra, com seu opressivo senso de urgência, com sua pressa catastrófica conduzindo-o à auto-destruição; o espírito flagelador do Arthur Cravan que mergulhou no Golfo de México por aquele mesmo tempo. . ..

Voz 3: Artigo 1793. Quando um arquiteto ou intermediário contrata com o dono da terra a construção de um edifício sob determinado preço e condições, de forma alguma ele pode exigir qualquer aumento desse valor, seja por causa de aumento do preço da mão-de-obra, materiais ou por causa de qualquer mudança ou adição feita ao plano, a menos que tais mudanças, adições ou aumentos sejam autorizados por escrito e um novo valor de pagamento seja acordado com o dono da terra.

Voz 2: A perfeição do suicídio repousa em sua ambiguidade.

   
   
CINCO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 2:
 O que significa um e único amor?

Voz 3: Eu só responderei na presença de meu advogado.

   
   
UM MINUTO DE SILÊNCIO DURANTE O QUAL A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 1:
 A ordem reina mas não governa.
   
   
DOIS MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.


Voz 2:
 A primeira maravilha é chegar antes sem saber como falar-lhe. Mãos atadas não se movem mais rápido que cavalos de raça filmados em câmera lenta, como quando sua boca e seios são tocados; diante da inocência cordas viram água e rolamos juntos rumo ao amanhecer.

Voz 4: Acho que jamais nos veremos novamente.

Voz 2: As luzes nas ruas no inverno se apagarão com um beijo.

Voz 4: Paris ficou realmente divertida por causa da greve nos transportes.

Voz 2: Jack o Estripador nunca foi pego.

Voz 4: Telefones, eles são engraçados.

Voz 2: Qual um amor-desafio, como dizia a Madame Ségur.

Voz 4: Eu lhe contarei algumas histórias bem assustadoras de minha terra, mas elas têm que ser contadas à noite.

Voz 2: Meu querido Ivich, infelizmente há menos bairros chineses do que você pensa. Você tem quinze anos. Qualquer dia destes as pessoas deixarão de usar roupas coloridas.

Voz 4: Já o conheço.

Voz 2: A cada dia que passa o vento continental leva-o para mais longe. A floresta virgem é menos virgem que você.

Voz 4: Guy, daqui a um minuto será amanhã.

Voz 2: Arma Doida. Você lembra. As coisas eram assim. Ninguém era suficientemente bom para nós. Apesar . . . do granizo nas bandeiras de gelo. Não esqueceremos este maldito planeta.

   
   
QUATRO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 2:
 Algum dia eles serão famosos, você verá! Eu nunca aceitarei o fato escandaloso e inacreditável da existencia de algo como a polícia. Muitas catedrais foram erigidas em memória de Sarja Berna. O amor só é válido em um período de pré-revolucionário. Eu fiz este filme quando ainda havia tempo de falar sobre ele. Jean-Isidore, para sair daquela multidão efêmera. Na Praça Gabriel-Pomerand quando envelhecemos. No futuro todas as pequenas brincadeiras serão estudadas nas escolas secundárias e universidades.
   
   
TRÊS MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.


Voz 2:
 Ainda há muitas pessoas que não sorriem nem dão gargalhadas quando ouvem a palavra «moralidade».

Voz 3: Artigo 489. Um adulto que normalmente sofre de imbecilidade, demência ou que tem freqüêntes ataques de ira precisa ser mantido em prisão preventiva mesmo que tenha intervalos de lucidez.

Voz 2: Tão próxima, tão delicada, perco-me na ilha vazia da linguagem. Eu te abordo, você está solta como um grito, e é tão natural. Um rio quente. Um mar de óleo. Uma floresta em chamas.

Voz 1: Parece um filme.

Voz 3: A polícia de Paris está equipada com 30.000 cassetetes.

   
   
QUATRO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.


Voz 2:
 «O mundo da poesia fecha-se diante de si mesmo e acaba esquecido». Na calada da noite os marinheiros fazem a guerra; seus amores são navios dentro de garrafas. Você deita na praia como mãos amorosas que, como a chuva, o vento e o trovão, deslizam debaixo de sua roupa todas as noites. A vida é maravilhosa em Cannes durante o verão. O roubo, que é proibido, torna-se banal em nossas recordações. «Quando estávamos em Shenandoah». Claro. Naturalmente.

Voz 1: Libertem aqueles rostos que uma vez foram centelhas de desejos, como tinta esparramada em uma parede, como estrelas cadentes. Gin, rum, brandy — abaixo coisas como Forças Armadas. Chega de discurso funerário. Tais pessoas são banais.

   
   
CINCO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.

Voz 1:
Escapamos por pouco.

Voz 2: O mais belo ainda está por vir. A morte seria um bife tártaro; um cabelo molhado na praia fervente de nosso silêncio.

Voz 1: Mas ele é judeu!

Voz 2: Estávamos prontos para derrubar todas as pontes, mas as pontes nos derrubaram.

   
   
CINCO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.


Voz 1:
 Madeleine Reineri, 12 anos, mais conhecida pelo nome de «Pirueta» e atriz principal do programa de rádio Quinta Feliz nos Alpes-Grenoble, deixou sua pasta na escola e pulou no Rio Isère.

Voz 2: Mademoiselle Reineri, você ainda tem sua maravilhosa face e seu belo corpo, o melhor da terra prometida. Como as luzes do néon, os diálogos repetem suas verdades definitivas.

Voz 1: Eu te amo.

Voz 4: Deve ser terrível morrer.

Voz 1: Até logo.

Voz 4: Você bebe demais.

Voz 1: O que são amores de infância?

Voz 4: Não entendo você.

Voz 1: Eu passei por isso. Houve um tempo quando eu sofri muito com isso.

Voz 4: Quer uma laranja?

Voz 1: As belas errupções das ilhas vulcânicas.

Voz 4: No passado.

Voz 1: Não tenho nada mais para lhe dizer.

Voz 2: Uma vez mais, após todas as respostas intempestivas e o fim da mocidade, já é alta madrugada.

   


 
VINTE QUATRO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.
Voz 2: Como crianças perdidas vivemos nossas aventuras inacabadas.    

 

 
VINTE QUATRO MINUTOS DE SILÊNCIO DURANTE OS QUAIS A TELA PERMANECE ESCURA.

 

Nova tradução para o português do manuscrito e trilha sonora do filme de Guy Debord, Uivos para Sade.

O manuscrito completo (em inglês) deste filme, com ilustrações, descrições detalhadas das imagens, e extensas anotações, tudo isso pode ser visto no livro Complete Cinematic Works de Debord (AK Press, 2003). Para mais informações, veja Guy Debord’s Films.


Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord

INTRODUÇÃO

SCRIPTS
Uivos para Sade (1952)
No Caminho de Algumas Pessoas por um Curto Período de Tempo (1959)
Crítica da Separação
(1961)
A Sociedade do Espetáculo filme (1973)
Refutação de Todos os Julgamentos, Pró ou Contra, Sobre o Filme A Sociedade do Espetáculo (1975)
In girum imus nocte et consumimur igni (1978)


DOCUMENTOS
Deturnação: Guia para Usuários
Notas Técnicas dos Primeiros Três Filmes
Carta sobre Passagem
Por um Julgamento Revolucionário da Arte
Na Sociedade do Espetáculo (resposta a uma crítica do livro)
Cinema e Revolução
Na Sociedade do Espetáculo (lançamento do filme)
O Uso de Filmes Roubados
Temas de In girum
Instruções para o Engenheiro de Som de In girum
Introdução à Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord



O texto acima foi traduzido por Railton Sousa Guedes
Fonte consultada: http://www.bopsecrets.org/  


OUTROS ESCRITOS DE DEBORD (versões retiradas de http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 e adaptadas)

A Sociedade do Espetáculo
Panegírico


Dossiê Situacionista e textos de Debord publicados pela Biblioteca Virtual Revolucionária

Dossiê Internacional Situacionista

Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana


Teses sobre a revolução cultural

Introdução a uma crítica da geografia urbana


Texto de Phil Baker

Cidade Secreta: Psicogeografia e Devastação de Londres -- Um Ensaio de Phil Baker


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railtong@g.com