Comunalismo Cristão

Índice e Prefácio
I - A Crise na Teologia e na Ética 13
II - O Caminho da Vida Abundante 21
III - O Caminho da Vida Perdida e Recuperada 35
IV - O Primeiro Impacto de Jesus 49
V - A Descoberta de Corinto 71
VI - O Tratado de Roma 83
VII - A Expansão do Pensamento de Paulo 99
VIII - A Plenitude de Cristo 115
IX - Paulo na Igreja Primitiva 137
X - A Vinda da Maioridade 145

VI - O TRATADO DE ROMA

Se fizera uma grande descoberta em Corinto, foi em Éfeso que Paulo desenvolveu seu significado, na forma de uma exposição ordenada das boas novas na Epístola aos Romanos. Após um longo interlúdio onde paga um tributo à sua origem judaica, enfrenta a terrível pergunta: «Por que Jesus foi rejeitado pelo seu próprio povo?». A resposta traz à tona discussões apaixonadas. Tanto a parte teológica quanto a parte ética de sua exposição revelam a maturidade de seu pensamento e a grandeza de sua sabedoria, uma coerência e uma perspicácia que tornaram esta carta nada menos que ponto de partida para a doutrina Cristã. Seu pensamento versatil acabou inevitavelmente sendo o pivô de uma variedade de interpretações; onde a figura do próprio Jesus é desenhada pelos homens da maneira que mais lhes convem, não poucas vezes de forma caricata e inteiramente distorcida. Mas por trás da diversidade de seus elementos há uma solidez e uma profundidade que faz com que todo estudante perceba o quanto ainda há por compreender. A Epístola aos Romanos foi seguramente fruto de seus dois anos na Ásia, de suas conferências na escola de Tyrannus, e do perigo que correu sob Alexandre. (1) Ele teve tempo não apenas para refletir e analizar sua própria experiência, mas também de discutir, expor e aprofundar ainda mais seu pensamento. Como resultado disso o antigo super-naturalismo externo de sua linguagem traduz-se quase que inteiramente em uma explicação interior e psicológica em termos de relacionamentos pessoais e coisas semelhantes, uma nova compreensão da natureza e do propósito de Deus.

(1) Cf. Atos 19 e 20; 2 Cor. 1.8-11; Tim. 4.14-5.

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O tratado começa com uma cristologia. O Apóstolo descreve a si mesmo como um escravo de Jesus Cristo. Relata que a boa nova foi prometida há muito tempo pelos profetas de Deus nas escrituras, que Seu Filho «tomou a forma humana e veio como criança, tendo nascido da linhagem e da descendencia do Rei Davi. E, ressurgindo dentre os mortos, Ele revelou-se como o poderoso FIlho de Deus, com a natureza santa do próprio Deus» (Rom. 1.3,4). A ênfase nessa dupla filiação aparece apenas nas passagens paulinas, introduzindo formalmente a teologia de sua obra.

Ele exprime sua gratidão por Jesus Cristo e pela sua boa nova, e por poder compartilhar sua proclamação com gregos e não-gregos, com doutos não doutos, e não apenas repartir com eles sua fé, mas tambem ser animado com a fé que eles possuiam. Então ele desenvolve uma filosofia da história, focalizando o fracasso do gênero humano em geral e dos judeus em particular. É uma interpretação bastante nova para o pensamento dele, e uma clara evidência de seu crescimento. Homens falham negligenciando a religião, negligenciando a retidão e consequentemente pervertindo a verdade. Deus tem se revelado: «Desde os primeiros tempos os homens viram a terra, o céu e tudo quanto Deus fez, tendo conhecido sua existência e seu grande e eterno poder». (Rom. 1.20). Assim eles são indesculpáveis. Eles bem sabiam de Deus, mas não admitiram, nem o adoraram, nem mesmo agradeceram a ele todo o seu cuidado diário. E, depois, começaram a fazer idéias tolas de como deus seria e o que ele queria que eles fizessem. O resultado foi que suas mentes insensatas ficaram confusas e em trevas. Dizendo-se sábios sem Deus, tornaram-se em vez disso completamente tolos. E então, em vez de adorarem ao Deus glorioso, vivente, tomaram madeira e pedra e fizeram ídolos para si, esculpindo-os para que parecessem simples aves, animais, serpentes e homens mortais. E assim Deus deixou que continuassem com toda a espécie de pecados sexuais e que fizessem tudo quanto desejassem: coisas vis e pecaminosas com os corpos uns dos outros, corrompendo aquilo que há de mais íntimo e sagrado nas relações humanas. «Abandonaram a Deus e nem mesmo o reconheceram» (1), lançando-se em todo tipo de vício e crime, desconsiderando e ignorando todos seus padrões morais. Mesmo que não se compartilhe do ponto de vista dele em todos os detalhes, coisas como sua insistência no primitivo e universal

(1) Rom. 1.28, onde Paulo usa pela primeira vez a palavra epignosis.

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fato da religião, a importancia primaria do sexo e dos contatos pessoais, a necessidade de padrões de decência, são muito mais apropriadas para nós do que a maioria das teorias éticas de seu tempo.

Então ele se refere aos judeus afirmando que eles não estão em condições de criticar ninguém: na realidade sua condição não é de modo algum privilegiada. Deus não olha para rótulos ou aparências: ele julga os homens pelo que fazem sejam eles judeus ou gregos. Os judeus tem sua revelação especial, não na natureza mas na Lei: embora a lei não salve ninguém a menos que os homems a guardem; e as Escrituras declaram que todos praticaram aquilo que a Lei define como pecado; a Lei não nos livra do pecado.

Diante deste pano de fundo ele proclama uma nova revelação da retidão de Deus. Já havia sido dada pela Lei e pelos profetas, mas agora vem de uma forma nova e universal. Isto é, pelo comprometimento com Jesus Cristo, a dádiva e a oportunidade dada por Deus para nossa justificação, o meio de libertação de nossa escravidão do pecado, a expiação e a propiciação, o objeto sagrado como a Arca da Convenção (Rom. 3.25), o ponto de intersecção de Deus com o homem, um exemplo, uma inspiração, um refúgio. Este é o ato de Deus, o presente gratuito de Deus para nós todos, tanto para gentios como para judeus; pois todos são de Deus.

Ele conclui esta primeira seção voltando ao caso de Abraão conforme já tinha feito na carta aos gálatas. É impossível saber se tinha conhecimento da objeção feita ao seu argumento na Epístola de Tiago (2.20-24), mas certamente estava familiarizado com seu conteúdo. Sua resposta, embora feita com cortesia, é decisiva. A promessa em Gen. 15.6 foi dada não por obedecer oferecendo Isaac (Gen. 22), como Tiago alega, mas bem antes quando Abraão era ainda incircunciso e antes mesmo do nascimento de Isaque. Assim a promessa era claramente uma recompensa à sua fé e não teve nada a ver com a

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Lei ou seus atos subseqüentes; e a bênção foi cumprida em Cristo.

Na segunda seção ele desloca-se do vasto campo da história para o campo mais restrito do significado de nossa reconciliação. Por causa de Jesus Cristo temos paz e acesso à graciosa relação com Deus, confiamos e esperamos pela glória de Deus. Além disso podemos encarar até mesmo nossas aflições com semelhante confiança e garantida esperança uma vez que tais coisas vêm para nos fortalecer e nos testar. Nossas aflições eram nossa fraqueza quando éramos pecadores e inimigos de Deus, até que Cristo entregou sua vida por nós: agora que a morte dele nos salvou, a vida dele nos manterá seguros e reconciliados com Deus. Por um homem, Adão, o pecado e a morte nos contaminou a todos, agora, e em grande escala, pela graça de um homem o dom da graça de Deus foi conquistado para nós. A morte é substituída pela vida.

Mas se fora de nosso pecado Deus achou ocasião para nos salvar, nós não podemos retirar disso um argumento para continuar pecando? Por que não aceitar o pecado e permanecer nele? Para as pessoas que resolvem a questão do pecado através de uma sucessão de atos particulares (e certos tipos de ensinamentos na igreja aparentemente fazem isso) isto pode ser plausível. Mas Paulo rejeita isso de imediato: pecado e graça não funcionam como débito e crédito de uma conta: trata-se de uma questão de vida ou morte. O homem reconciliado com Deus não pode viver novamente «em pecado». Ele morreu em Cristo, o representante dele: ele foi elevado por ele para viver nele. A morte já não pode dominar Cristo e não pode, devido a nosso pecado, ter licença para tomar posse de nós que estamos em Cristo. Esta união primária com Deus em Cristo é o evento decisivo -- a experiência da conversão. Como podemos interpretar isto? E tendo feito assim, como podemos estabelecer a possibilidade de seu cumprimento?

Em seguida Paulo usa duas ilustrações para tornar claro o abismo entre o velho e o novo, e demonstrar que nossa obrigação anterior à Lei terminou. Isso significa que não

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nenhuma razão por se viciar no pecado que Lei proibe. O pecado é de certa forma uma escravidão: e a continuidade nessa escravidão do pecado significa perder não apenas nossa nova liberdade mas também renunciar nosso novo serviço a Deus, significa preferir morte à vida. É como nossa mudança de condição pelo matrimônio. Uma viúva pela morte do marido desliga sua relação com ele: não há agora nenhum adultério se ela se casar novamente. Da mesma forma para nós, que já nascemos casados com o pecado, a morte do pecado desliga nossa relação com ele: somos recém-casados com Deus em Cristo; e essa nova vida transforma toda nossa relação. Brincar com o mal é trair a Deus.

Tais exemplos, apesar de menos insatisfatórios que as cansativas analogias e ninharias acadêmicas da carta aos Gálatas, realmente não trazem nenhuma prova convincente de perspicácia. Paulo, embora menos rabínico e criativo do que da primeira vez que tratou do assunto, não propicia aquela espécie de compreensão empática típica dos quadros vívidos das situações que caracterizam as parábolas de Jesus. As metáforas de Paulo são marcadas pelo lugar comum e pela imprecisão; com um efeito pedante e inconvincente. Mas repentinamente, e com poder notável, ele dá vazão a uma genuína e impressionante auto-revelação; e todo o problema do conflito moral ganha vida diante de nós, uma lucidez tão brilhante quanto aqueles três flashes geniais apresentados em Gálatas. Imediatamente surge uma pessoa real e sensível diante de um assunto profundo e universal. A «guerra em nossos membros», a guerra civil que se trava dentro de nós, é uma passagem que penetra o âmago da vida.

É típico das exegeses paulinas os comentaristas atribuir uma importancia vital ao argumento de que o Apóstolo está naturalmente relembrando as agonias de seu estado inconverso, quando ele ainda estava lutando pelo comprimento da Lei e dando de cara não apenas com o fracasso, mas também com o fato de que a proibição era por si só um incentivo. Sua análise do conflito quando ele admite a óbvia retidão da Lei e seu valor em definir pecado para ele, ainda é incapaz de reprimir seu impulso por

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resisti-lo, e é tomado por um terrível desespero: «Quando quero fazer o bem, não faço; e quando procuro não errar, mesmo assim eu erro. Agora, se estou fazendo aquilo que não quero, é simples dizer onde a dificuldade está: o pecado ainda me retém entre suas garras malignas. Parece um fato da vida que, quando quero fazer o que é correto, faço inevitavelmente o que está errado. Quanto à minha nova natureza, eu gosto de fazer a vontade de Deus; contudo existe alguma coisa bem no meu íntimo, lá em minha natureza inferior, que está em guerra com a minha mente e ganha a luta, fazendo-me escravo do pecado que ainda está dentro de mim. Em minha mente desejo de bom grado ser um servo de Deus mas, em vez disso, vejo-me ainda escravizado ao pecado. Assim, vocês podem ver como isto é: minha nova vida manda-me fazer o que é correto, porém a velha natureza que ainda está dentro de mim gosta de pecar. Que situação terrível, esta em que eu estou!» (Rom. 7.19-25). Uma trágica expressão de aflição. Trata-se de uma questão de vida e morte para todos nós. Por nós mesmos não temos nenhum poder que nos ajude, a independência nos deixa cegos e aumenta nossa impotência.

Não precisamos discutir detalhadamente os argumentos usados que diz que isso se refere a reminicências do passado, não experiências do presente. Pode ser que nas vidas dos santos haja lugar para a doutrina do compromisso inabalável, daquela certeza da própria salvação que eles tem e que muito facilmente se torna um intolerável desaforo. Mas uma coisa é certa: pela inquebrantavel percepção de Deus e pela real descoberta, passada ou presente, de suas falhas, eles continuamente se libertam da inquietação. Talvez a maior lição do grito de desamparo no Calvário seja o fato de que quanto maior nosso amor e conhecimento de Deus, melhor é nosso nosso olfato para pressentir a eminência do mal. E no próprio caso de Paulo sua humildade certamente aumentava na medida em que ele crescia na graça. De qualquer forma a frase em 1 Tim. 1.15, «pecadores, dos quais eu sou o principal» reflete genuinamente a mente do Apóstolo, pelo menos está de acordo com a totalidade de suas Epístolas. Ele também está atento que precisa continuamente de perdão e ainda pode ser um náufrago.

IEm todo caso ele nos dá uma exposição minuciosa de nosso problema moral, que é a causa principal do erro. Em diferenciar ética legal de ética pessoal. Dos homens obviamente não se tornando virtuosos pelas Leis do Parlamento, homens que quanto mais débeis de vontade menos conhecem o mal que lhes afige. A tensão moral raramente foi tão vívida e honestamente descrita; e poucos foram entre os santos os que expuseram suas próprias lutas com tanta objetividade e intimidade. Aqui temos

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uma revelação daquilo que Paulo acreditava a respeito do significado de Jesus. E essa fé básica faz muita diferença pelo efeito e influência que exerce nos crentes. Temos aqui uma ética centrada em Deus, para um mundo de homens como nós. Embora ainda incompleta nesta fase de sua evolução, tem pelo menos o mérito de enfrentar o problema através da análise, um campo recentemente descoberto pela ciência.

No estudo da ética cristã a questão do propósito e do valor de lei é algo que demanda grande atenção. A necessidade de formular padrões de conduta capazes de ser mantidos e aplicados parece bastante evidente à maioria de nós. Um mundo sem tais padrões tem sido suficientemente manifestado durante os últimos vinte anos. Mas a máxima legal «povo duro, duras leis» que quase foi aceito universalmente cinqüenta anos atrás e que ainda é considerado por muitos como a saída inevitável da justiça legal, foi desafiado e subvertido pelos recentes descobrimentos em psicologia genética. O fato de «sermos aquilo que nossos gametas determinam», mesmo sem significar que «pais cleptomaniacos não podem ter uma criança honesta», é uma declaração que a justiça não podem ignorar. O tratamento penal da condição hereditária (isso é de toda a humanidade) tem que levar em conta estas condições. Semelhantemente, pela psicologia, sabemos que cada um de nós é um «caso difícil», ou, na linguagem teológica fora de moda «pecadores», que veio ao mundo através de uma ascendência infinitamente longa e originalmente animal exposta de nascença a influências e eventos que deixam profundas marcas em nossas vidas subconscientes. Se não somos completamente loucos, também não somos completamente sãos; e uma verdadeira justiça deve ser ajustada ao conhecimento de que por trás de cada ação localizam-se complexos padrões de conduta e um indivíduo que único. Adequar tais condições à administração tradicional da lei é um assunto que parece estar bem longe

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de qualquer solução clara. Enquanto isso, os juízes, diante dos efeitos gravemente injustos que a definição legal cria, se vêem diante de um volume tal de jurisprudencia que torna a tarefa deles quase impossível.

Além disso, para muitos de nós, atentos a essas questões, a lei, se não age como um asno é freqüente e cruelmente inadequada. É sobre isso que Paulo fala com clareza e honestidade. Suas palavras não estão apenas restritas às relações entre judeus e pagãos do primeiro século ou de Moisés com Jesus. Trata-se de um assunto de profunda importância e urgência para o indivíduo e para o bem geral, fundamental para qualquer consideração em torno da moralidade cristã.

No caso de Paulo a psicologia da exposição dele nos leva em direção ao ponto central do problema. Ainda não podemos afirmar com certeza mas podemos sentir que embora sua reação de gratidão e libertação sejam emocionalmente válidas e constrangedoras, não é em si mesma conclusiva. Como o homem poderia abdicar da direção e da detalhada disciplina da Lei? Como ele construiria um incentivo moral igualmente constrangedor? Poderia o amor de Deus e o desprendimento do ego substituir todos os códigos legais por uma aceitação inteligente de uma moral completamente cristã? Paulo responde que sim; mas apenas em sua última epístola ele mostra como o amor e a comunidade geram o «pleno conhecimento».

Na terceira seção, começando com a afirmação triunfante: «não há nenhuma condenação aguardando aqueles que pertencem a Cristo Jesus» (Rom. 8. 1), ele esboça sua própria solução, primeiro discutindo uma seção prévia e depois desenvolvendo sua filosofia da história. Em ambos os casos seu pensamento alcança um altíssimo nível de discernimento e expressão. No primeiro caso desenvolve sua idéia anterior, no segundo caso ele alcança um dos momentos mais singulares, originais e iluminados das Escrituras.

Acima da lei do pecado e da morte, coisas

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das quais os homens foram libertados, ele fixa aquilo que chama a lei do espírito da vida em Cristo Jesus que é o padrão expresso por Cristo e dado por ele àqueles que se entregam a ele e assim incorporam seu Espírito. A Lei, pela nossa natureza física, é débil e não pôde efetuar o alívio necessário: Deus pela missão do seu Filho, encarnou em nossa carne pecadora e preocupado com nosso pecado, condenou o pecado na carne revelando sua prevaricação e realizando a exigência da Lei que foi cumprida em nós que não estamos na carne mas no espírito. «Se o Espírito de Deus mora em você, você não está na carne mas no espírito. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não é dele. Se Cristo está em alguém, o corpo dele está morto com respeito a pecado, o espírito dele está vivo com respeito à retidão. Se o Espírito de Deus mora em vocês ele que elevou Cristo Jesus elevará seus corpos mortais pelo Espírito que mora em vocês». (Rom. 8.9-11). Mais que isto, todos aqueles que são conduzidos assim pelo Espírito são a família de Deus, os herdeiros dele, para em conjunto compartilhar tanto os sofrimentos como a glória de Cristo. O Espírito dele e os nossos unem em testemunho disto. Assim a unidade essencial da Divindade é estabelecida tanto quanto a Divindade; e a Igreja é definida não em termos de instituições e cerimoniais mas de relações espirituais e pessoais.

E as coisas não terminam por aí: o princípio assim estabelecido da unidade de toda real vida pode ser aplicado em um campo maior. Se sofrer por Cristo e por nós é o prelúdio da glória, por que não seria também assim para a criação como um todo? «Toda a criação espera com paciencia e esperança por aquele dia futuro quando Deus ressuscitará os seus filhos. Sabemos que até mesmo as coisas da natureza, como os animais e as plantas, sofrem na doença e na morte enquanto esperam esse tão grande acontecimento» (Rom. 8.19-21). Liberdade, glória, comunidade. Nós sabemos que toda a criação está gemendo e trabalhando juntamente até agora; e não apenas a criação mas

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nós, que temos os primeiras frutos do Espírito, gememos em nós mesmos na medida em que esperamos pela adoção que envolve a redenção de nossa vida corporal. É pela esperança que seremos salvos, é na esperança das coisas que estão por vir que está nossa fortaleza. Além disso nós não estamos sós: em nossa fraqueza o Espírito de Deus se envolve conosco, intervindo ao nosso lado e guiando nossas aspirações; e Deus, que procura nossos corações, conhece a mente do Espírito, que intercede a Deus pelos santos. «E nós sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus de acordo com seu propósito» (1), Deus os escolheu e os formou à imagem do Filho dele, o primogênito de muitos irmãos, e esses a quem escolheu ele também chamou, justificou, e glorificou. Todos são de Deus; e ninguém pode desafiar ou se opor a eles. Se Deus nos deu o Filho dele, Ele seguramente nos dará tudo o mais. Quem nos separará de tal amor? Seguramente nenhuma aflição, nem morte, nem vida, nem anjos, nem governantes, nem presente, nem futuro, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra coisa criada: O amor de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor prevalece.

É desnecessário e errado associar esta notavel passagem à cosmologia de Tellhard Chardin ou a uma moderna doutrina da evolução. Indubitavelmente, Paulo tem em mente a história da maldição na terra e de seus habitantes humanos de Gênese 3, talvez tivesse recebido influencias da doutrina Estóica do progresso que estava sendo proclamada por Sêneca, seu contemporâneo. Mas, mesmo assim, a originalidade, a verdade e a relevância de sua interpretação para nós situa-se no melhor sentido profético. Ele firmou-se em quatro pontos de permanente e inigualável importância para nossos dias.

Primeiro ele não vê a criação como um ato realizado de uma só vez no princípio, mas como um processo originalmente condicionado

1 Rom. 8.28. A variação das palavras não afeta seriamente o significado.

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ao desenvolvimento de variáveis. É e sempre esteve incompleta, carente de suas plenas possibilidades, frustrada e defeituosa.(1) Conseqüentemente é um cenário de agonia e de esforço que se desdobra em dor aspirando pela conquista de seu verdadeiro fim.

Segundo, esta frustração traz consigo a qualidade da agonia da gravidez, um árduo trabalho de gestação: a criação labuta para fazer nascer uma comunidade que ainda está dentro do útero. Esta, quando nascida, será livre, não será escrava de suas próprias paixões, nem deteriorará por seus erros passados, livre para a plenitude da vida e com o brilho de uma glória refletida. Será a família, a família mundial, de Deus. Agora, ainda na metade do caminho, ela vive e vive pela esperança; e já recebeu em Jesus o primeiro cumprimento de sua meta. Esta esperança, assim aumentada, é nosso conforto e meio de prosseguir.

Terceiro, em nossa aventura nós não estamos sós. Deus não é um espectador distante assistindo o conflito e elogiando ou condenando seus participantes. Ele envolveu a si mesmo. O Espírito dele está engajado ao lado e dentro do esforço, compartilhando em sua agonia e inspirando sua direção. Conosco e em nós está o divino, manifestado em Cristo e morando em seu povo.

Então, finalmente após feroz e prolongada luta -- e nossa liberdade é um elemento essencial que deve ser preservado e seu progresso pode ser retardado ou antecipado -- o fim está seguro. Deus está envolvido, e o testamento dele está sendo terminado. Tal testamento é o amor; assim, sua operação é condicionada por nosso estado como pessoas: nós não somos escravos nem máquinas e Deus não pode negar a própria natureza dele nos tratando como se fôssemos tais. A agonia continua até que nós achemos nossa liberdade perfeita no fazer sua vontade e no serviço de sua comunidade. Mas mesmo agora duas coisas já estão claras. O mundo está condicionado de tal forma que, como Jesus disse, se nós buscarmos em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, tudo o mais que precisamos estará disponível para nós --

1 Cf. Sanday and Headiam, Romans, p. 208.

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as coisas espirituais e materiais cooperam para bem se nós amarmos a Deus. Além disso aqui e agora nada que possa acontecer pode nos separar desse amor, exceto nossa rejeição ou descrença disto. A menos que digamos não haver tais coisas como progresso, ou haver condições nas quais o amor de Deus não possa ser cumprido -- a menos que percamos a esperança -- não há, a despeito e em meio a todo mal e frustração, nenhuma ruptura do amor com o qual Deus nos liga a ele.

Dificilmente é necessário fazer mais que lembrar-nos que a maior parte de nossa angústia e heresia presente deve-se à negligência quase completa deste entendimento paulino acerca do mundo natural. Desde os conflitos entre Gênesis e geologia, darwinismo e evolução, ou mesmo como ocorre no momento presente entre liberalismo e neo-ortodoxia, podemos ver intensa luz é lançada sobre ambos os lados nessa seção onde Paulo conclui os capítulos teológicos da maior de suas epístolas.

O interlúdio que ilustra o padrão da vida brotando da morte como uma leitura da história é um cri du coeur de alguém que chamou a si mesmo de nada menos que um hebreu de hebreus. Se aspiração e agonia é nosso destino e se Deus faz juntamente todo trabalho para o bem, como é que as pessoas escolhidas, tão privilegiadas e tão pacientes, no momento em que a esperança deles foi cumprida, o rejeitam? A tragédia dessa recusa é evidente a todo cristão: para Paulo foi apenas sublinhado pela sua conversão e subseqüente experiência. O que pode dizer ele sobre isto?

Que Israel sempre foi teimoso, que o Testamento Velho está cheio de advertências, e que em tempos de crise apenas um remanescente faria a escolha correta, é um consolo pouco satisfatório: o tema era demasiado catastrófico para ter uma fácil aceitação. Mas o fato ainda permanece; e Deus tem que ter algum propósito nisso tudo. Seguramente o significado de todas essas coisas, embora nenhum homem possa conhecer a mente de Deus, pode ser visto no fato de que foi a recusa de Jesus por parte dos judeus que o conduziu aos gentios. Poder-se-ia reivindicar que a

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auto-exclusão que fizeram de Cristo abriu caminho para a missão para o resto do mundo? Nesse caso, em algum aspecto isso teve um valor sacrificatório: a perda deles foi o ganho dos gentios. A desgastada comparação da oliveira cujos galhos foram arrancados para dar lugar a um enxerto de uma oliveira selvagem faz sentido, a despeito de seu absurto horticultural.

Além disso essa exclusão não é definitiva: A clemência de Deus prevalecerá sobre eles e eles serão restabelecidos quando os gentios ganharem seu pleno lugar em Cristo. E se a alienação deles funcionou tão bem para os outros, quão grande será o cumprimento quando eles retornarem. De Deus, por Deus e para Deus são todas as coisas. A seção termina com uma declaração, a mais clara possível, do universalismo para onde o conceito paulino de Deus em Cristo é magistralmente conduzido, o mesmo conceito que ele desenvolve em Colossenses e Efésios, mas que é tão difícil para os seus comentaristas tradicionalistas aceitarem.

TAs conseqüências práticas e éticas das boas notícias é o assunto que preenche o restante da carta. Sua primeira preocupação está na qualidade fundamental dos membros da comunidade santificada cujas vidas corporais são um sacrifício vivo a Deus, e que não imitem a conduta e os costumes deste mundo. «Seja, cada um, uma pessoa nova e diferente, mostrando uma sadia renovação em tudo quanto faz e pensa. E assim vocês aprenderão, de experiência própria, como os caminhos de Deus realmente satisfazem a vocês. Como mensageiro de Deus, faço a cada um de vocês uma advertência dEle: sejam honestos na avaliação de si mesmos, medindo seu próprio valor pela quantidade de fé que Deus lhes deu. Pois tal como existem muitas partes em nossos corpos, assim também é com o corpo de Cristo. Todos nós somos parte dele, e cada um de nós é necessário para fazê-lo completo, porque cada um de nós tem um trabalho diferente a executar. Assim, pertencemos uns aos outros e cada um precisa de todos os demais» (Rom. 12.2-5).

Essas três sentenças vão à raiz do assunto. Jesus tinha dito: «mude sua perspectiva». O discípulo dele diz: «você deve evitar de se acomodar a idéias e

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padrões mundanos: tudo o que você faz e pensa deve ser afinado na consciência da presença e da vontade de Deus. Isto envolve libertação do egoísmo e conhecimento da si mesmo com relação a Deus e a comunidade». Nesta comunidade nós podemos achar nosso espaço de lazer, e nossa própria atividade. Se nós comparamos isto com o slogan familiar dos psicólogos «conheça a si mesmo, aceite a si mesmo, seja você mesmo», perceberemos a grande e vital diferença entre eles.

Ele segue nestes princípios gerais através duas listas que explicam primeiro as variadas funções que os membros no serviço de Deus realizam e depois as qualidades que eles exercitarão nos procedimentos mútuos. Estas listas correspondem a serviços internos e externos dos membros, tanto no sentido radial como tangencial, em suas atividades: mas inevitavelmente os dois convivem lado a lado. Então ele delineia um conjunto de breves preceitos que envolvem tanto atitudes como comportamentos para com as pessoas de fora, que resume na frase: «Não deixem que o mal prevaleça, mas triunfem sobre o mal, praticando o bem» (Rom. 12.21). O conselho dele retrata uma vida gentil, simpática, harmoniosa e pacífica -- que ele previamente descreve como ministério da reconciliação.

O próximo parágrafo (Rom. 13.1-7) sai das recomendações gerais e entra em um específico e sempre urgente e difícil problema: qual deve ser a atitude dos cristãos diante da autoridade secular, e aqui o Apóstolo se refere particularmente ao império pagão de Roma. Paulo segue sua linha prévia e advoga a sujeição com o pano de fundo de que não há nenhuma autoridade exceto pela sanção de Deus e que aqueles que estão no cargo são estabelecidos por Deus: assim aquele que resiste à autoridade coloca-se a si mesmo contra o decreto de Deus, e trará julgamento sobre si próprio. Aqueles governantes não amedrontam quem faz o bem mas aqueles que fazem o mal. O governo é o ministério de Deus para a bondade; aqueles que praticam o mal sempre terão medo dele; e para os serviços públicos poderem existir são necessários os impostos.

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O pagamento de impostos foi algo muito natural àqueles que viram e avaliaram a pax Romana e a segurança que ela proporcionava (essa carta foi escrita durante o famoso quinquennium Neronis -- DC 54-59, quando Sêneca e Burrus deram ao Império seu melhor período de governo) àqueles que viviam na Judéia ocupada por um país inimigo, sabedores da futilidade que uma rebelião poderia representar, e da amargura que aquela ocupação representava. Além disso os escravos e os pequenos negociantes que constituíram os pequenos grupos locais de cristãos não tinham nenhum tipo de responsabilidade ou influência nos negócios públicos. Seria surpreendente se o Apóstolo usasse essa mesma linguagem referindo-se a qualquer Cesar posterior, até mesmo se os proconsules e procuradores deles fossem em geral os homens de integridade. Mas considerar hoje esse aconselhamento de Paulo como uma regra divina fixa para todo tipo de governo, certamente incide no erro de assumir que em um meio radicalmente mutavel seja possível estabelecer regras infalíveis onde detalhes de conduta possam ser definitivamente fixados. Isto seria, naturalmente, estabelecer exatamente o tipo de sistema legalista contra o qual todo esforço de Paulo estava dirigido; e nós vimos como os cristãos usaram esse erro para justificar obediência a qualquer tipo de despotismo desde a teocracia de Calvino em Genebra até o nazismo de Hitler em Berlim. É um fato irônico que não haja nenhuma passagem em todas as epístolas que tenha sido tão freqüentemente citada tanto na literatura como nas pregações cristãs; e igual e certamente nenhuma que tenha produzido tantas conseqüências monstruosas.

É altamente significante a descoberta do Apóstolo de que, logicamente mantendo a ética das relações pessoais, temos que viver como Jesus fez «no Reino» -- o que envolve também viver entre pessoas e eventos de caráter extensamente diferente, e que traduzir a espontaneidade e a inteireza da resposta pessoal em um código definido e estereotipado é

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destruir seu caráter e, realmente, tentar o impossível. Não estamos mais debaixo da lei mas sob a graça, não mais escravos mas livres.

Na próxima seção Paulo insiste nesta mesma transformação. Ele conclui o parágrafo sobre os poderes civis dizendo «honrem e respeitem a todos aqueles a quem isso for devido». Ele começa o próximo com as palavras «Paguem todas as suas dívidas, exceto a dívida do amor aos outros; nunca terminem de pagá-la! Se vocês amarem aos outros, estarão obedecendo a todas as leis de Deus, e satisfazendo todas as suas exigências» (Rom. 13.8). As ordens detalhadas do decálogo estão todas resumidas na injunção de amar ao próximo como a si mesmo: tal amor não provoca nenhum mal e é o cumprimento da lei. Agora você tem que acordar para um novo amanhecer; parar com as obras das trevas e seguir em frente equipado para o dia. Vista-se com o Senhor Jesus Cristo e não pague nenhum tributo à carne e às suas paixões.

Finalmente vem uma última exortação de tolerância àqueles que são fracos e facilmente transtornados. Se eles têm dúvidas em cima de observâncias relacionadas a festivais ou comida, não seja contencioso. Cristo morreu por todos nós. Você pode facilmente chocar e escandalizar com sua crítica. Não julgue um ao outro; e deixe o Deus da paciência e do conforto guiar você no caminho de Cristo Jesus para que vocês possam unidos glorificá-lo a uma só voz!

Os capítulos finais contam algumas coisas que espera deles e o que planeja para o futuro. Fala sobre o dinheiro coletado na Macedônia e em Achaia para os pobres de Jerusalém, sobre visitá-los e sobre sua viagem para a Espanha. Ele escreve uma advertência afetuosa, e esboça uma longa lista de saudações e mensagens que alguns acham ter sido originalmente endereçadas a Éfeso e posteriormente anexadas a esta carta. É certamente uma saudação por demais extensa e pessoal para constar em um documento tão formal e cuidadosamente ordenado como este. Mas dá ênfase ao seu cuidado pastoral para com os indivíduos, tanto quanto para a fé, a ordem e a unidade da igreja.

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