A FORMAÇÃO DO
ANTIGO TESTAMENTO


por Rolf Rendtorff

Trad.: Bertholdo Weber
Título original em alemão: Das Werden des Alten Testaments
Edição eletrônica:
http://www.oocities.org/projetoperiferia5/fat.htm


PREFÁCIO

O objetivo desta série de «Estudos Bíblicos» é introduzir leitores, além do círculo de teólogos profissionais, na pesquisa científica do Antigo e Novo Testamentos e animá-los a continuar o próprio estudo da Bíblia. A série é constituída principalmente de interpretações cuidadosas de textos escolhidos. A par destas publicamos a presente breve exposição da história de formação do Antigo Testamento conforme é vista pela disciplina vetero-testamentária atual. Procura mostrar que o Antigo Testamento cresceu através de uma longa história e que, no decurso desta formação, se reflete a história de Israel a qual foi entendida por ele mesmo como a história do agir de Deus com seu povo.

A base desta exposição forma uma série de artigos publicados, durante o ano de 1955 no semanário «Sonntagsblatt», editado por Hanns Lilje, bispo luterano de Hannover. Foi conservada a forma de parágrafos com temas acabados, enquanto que o texto foi apenas ligeiramente modificado em algumas passagens; no fim acrescentou-se um epílogo e um índice literário.

Berlim, abril de 1959.

Rolf Rendtorff


I


FORMA E PECULIARIDADE

DA LITERATURA DE ISRAEL


1


O Antigo Testamento é parte integrante de nossa Bíblia cristã. Justamente nos últimos anos ressurgiu mais e mais do esquecimento e tornou a assumir seu lugar incontestado na pregação.

É, todavia, sempre um segmento reduzido do grande todo do Antigo Testamento que se nos apresenta. E quem procura penetrar mais profundamente neste livro e lê, inclusive, trechos maiores do Antigo Testamento, este encontrará sempre novas dificuldades no caminho. Essas são, muitas vêzes, de caráter externo. Simplesmente não compreendemos muitas coisas, esbarramos diante de contradições, ou sejam, fatos que nós cristãos achamos estranhos.

Temos, p. ex., logo no início, dois relatos diferentes sôbre a criação. O leitor ingênuo imediatamente nota que êles não se completam, mas contêm duas exposições diferentes do processo da criação do mundo. O primeiro relato é bem sistemático na seqüência das obras dos sete dias. (Compreende o trecho do cap. 1 até a primeira frase do cap. 2, vers. 4, que forma a infrassinatura final). De acordo com este, tudo se originou aos poucos do nada caótico mediante a vontade criativa e ordenadora de Deus Criador, a começar dos elementos inânimes, ascendendo pelo reino vegetal e animal até o homem. A obra do Criador, nesse processo, é representada, exclusivamente, por sua palavra eficaz e vivificante.

Bem diferente é o outro relato. (Começa no cap. 2, vers. 4, com as palavras: «Quando o Senhor Deus criou céu e terra...»). Aqui o estado caótico primitivo não é a água, mas a sêca. No princípio da criação está o homem. Em seu redor é criado, somente então, o reino vegetal e o reino animal que o cerca. Contudo, esse relato é muito mais ingênuo e plástico, representando, p. ex., a atividade criadora de Deus como a do oleiro que forma um vaso de barro. E em todo este conjunto é visado, exclusivamente, o espaço vital imediato do homem.

5

Aqui foram, evidentemente, coordenados dois relatos diferentes sôbre a criação, originalmente separados. Originaram-se de tempos e autores diferentes que com respeito à criação foram movidos por interesses bem diferentes.

Já este exemplo nos pode mostrar que no caso do Antigo Testamento temos diante de nós um livro que cresceu paulatinamente. Em sua forma atual constitui o resultado de uma longa história. Foi chamado, certa vez, de «O livro que cresceu durante mil anos». Nêle encontramos reunidos os testemunhos de fé do povo de Israel procedentes de muitos séculos.

Em cada geração se levantaram de forma nova as perguntas que resultaram da fé de Israel em um só Deus e seu agir na história com seu povo. Tudo isso se documentou, nas mais diversas formas, nos textos que agora estão reunidos no Antigo Testamento.

O início dêste processo de crescimento forma a palavra falada e transmitida oralmente. As histórias vivas e coloridas dos patriarcas, p. ex., foram, com certeza, contadas e recontadas através de muitas gerações antes de serem fixadas por escrito. Neste transcurso, naturalmente, também alteraram, amiúde, suas formas, acederam-se novos traços característicos e outros perderam sua importância para uma geração nova. Ou ainda, vejamos as palavras dos profetas: Foram pronunciadas em uma determinada situação histórica e depois transmitidas, também, oralmente antes de terem alcançado sua forma literária final.

Bem semelhante foi também o que sucedeu com os textos restantes do Antigo Testamento. E somente aos poucos formaram-se mais tarde coleções menores ou maiores de textos congêneres, relacionados entre si por sua espécie ou sua origem. O resultado final desta história movimentada são os diversos «livros» do Antigo Testamento na forma como atualmente os encontramos na Bíblia.

2

A história do Antigo Testamento se estende pelo tempo desde a imigração dos israelitas na Palestina, desde o século 13 a. C., portanto, até os últimos séculos antes da era cristã.

6

As partes mais antigas são, freqüentemente, cânticos ou ditos que facilmente se gravavam na memória e, por isso, se conservavam vivos por muito tempo. Um exemplo é a «canção da vitória» de Miriam, em Êx 15, 21, que canta a destruição dos egípcios no mar; outra é a canção de Lameque, em Gn 4, 23-24, uma «fanfarronada» que fala de cruel vingança de morte; ou a «canção do poceiro» em Nm 21, 17-18, que se deve imaginar cantada durante o trabalho de cavar um poço. Mas também canções mais extensas, como p. ex. a magnífica canção de Débora em Jz 5, pertencem a um tempo muito remoto.

Material de tradição muito antigo conservou-se, outrossim, na forma do provérbio folclórico como vive em toda parte do mundo. Citam-se tais provérbios diversas vêzes (p. ex. I Sa 24, 14; Ez 16, 44), e ainda em muitas outras passagens podem ser descobertos, facilmente, durante a leitura. O falar em breves ditos foi especialmente cultivado no Antigo Israel, talvez na hora do lazer quando se reuniram depois da faina diária no lugar junto ao portão. Foi evoluído até a altura de uma verdadeira arte, cultivada na corte real, conforme relatam notícias do tempo de Salomão (I Rs 5, 11-12).

Já em tempos antigos passou-se a colecionar estes ditos e cânticos. Prova disso são algumas passagens em que se citam tais coleções, das quais, porém, nada a mais sabemos. Assim é mencionado em Js 10, 13 e II Sm 1, 18 o «livro do valente», e em Nr 2, 14 o «livro das guerras de Javé».

Mas também circulavam contos desde os tempos mais antigos. Exatamente como em outros povos, trata-se, sobretudo, de «sagas» (lendas) que falam dos acontecimentos e vultos da história primitiva de Israel. O têrmo «saga» expressa que esta não é motivada por interesse histórico, querendo fixar exatamente a seqüência dos eventos, mas, sim, apresenta em côres vivas o que é o característico daquele tempo e dos respectivos personagens, conforme se conservou vivo na consciência do povo. Por isso, essas sagas são mais do que simples contos do que passou. Nelas tudo isso está presente como parte integrante da própria história daqueles que as narram e ouvem. Reconhecem, naquilo que Abraão, Jacó e Moisés passaram, uma representação de suas próprias experiências que tiveram e ainda têm. Porque Israel entende sua história sempre como his-

7

tória com Deus. E assim como Êle agiu com os patriarcas, livrou a geração posterior do Egito e a levou para a terra prometida, assim está agindo em todos os tempos com seu povo. Dêste modo, estas sagas alcançam, com toda sua vivacidade narrativa, muitas vezes, uma profundidade transcendental da profissão de fé.

Uma historiografia regular existiu em Israel desde o tempo de Davi, aproximadamente. Ocupa-se, principalmente, com acontecimentos políticos. Assim acham-se descritos, em Samuel, a origem do reinado e a ascendência de Davi; no II livro de Samuel trata-se da consolidação e da expansão de seu reino e dos enredos resultantes do problema de sucessão no trono. Os livros dos Reis apresentam, a seguir, o govêrno de Salomão como o último período glorioso do Reino Unido, bem como a divisão em um Reino do Norte e um Reino do Sul e a queda paulatina até o fim total da existência política independente do povo de Israel.

3

As sagas do Antigo Testamento têm muitas vêzes uma intenção explicativa específica. Fala-se, nesse caso, de sagas etiológicas (do grego aitia, causa). Assim, p. ex.: a narração da queda dos primeiros homens quer explicar a origem das perturbações na vida humana. A sinistra inimizade mortal entre o homem e a serpente, os incômodos de maternidade da mulher, aliás em tensão misteriosa com sua inclinação para o marido, e, enfim, a fadiga do trabalho do homem são as consequencias da primeira desobediência do homem para com Deus (Gn 3, 14-19). A narrativa da construção da torre de Babel (Gn 11) responde à pergunta como explicar a divisão da humanidade em uma pluralidade de povos com línguas tão diferentes. Outras sagas etiológicas explicam a peculiaridade de tribos e povos, conhecidos a Israel por serem seus vizinhos. A posição subalterna do resto dos aborígenes canaanitas é explicada como conseqüência de uma falta grave do pai de Canaã (Gn 9, 25). A natureza selvagem e agressiva do povo beduíno, dos ismaelitas, na saga é explicada com o comportamento revoltoso de sua mãe, Hagar (Gn 16, 12), etc.

8

Freqüentemente essas sagas etiológicas também querem explicar determinados nomes. Para este fim, servem trocadilhos de palavras hebraicas, dificilmente traduzíveis para o vernáculo. O nome Isaque, em hebraico, tem uma afinidade com a palavra «rir» (Gn 21, 6); o nome de Jacó, com as palavras «calcanhar» (Gn 25, 26) e «enganar» (Gn 27, 36); o nome de Israel é interpretado por «lutador com Deus» (Gn 32, 28). Tais etiologias encontram-se a cada passo e mostram a intençao destas sagas em interpretar e compreender seu passado particular.

Uma forma especial de sagas etiológicas constituem os textos que tencionam explicar a santidade de um lugar. Assim exclama Jacó, após o sonho da escada ao céu: «Quão temível é este lugar! Aqui é a casa de Deus (Bet-EI)!» e erigiu lá um santuário cultual (Gn 28, 17 ss.). Por esta aparição da divindade em sonho, portanto, o lugar é sagrado. Casos semelhantes são os lugares cultuais em Mamre, onde três homens aparecem a Abraão (Gn 18), e Peniel, onde Jacó teve que travar uma luta noturna (Gn 32, 25 ss).

Já em tempos mais remotos, formaram-se de várias sagas individuais, que tratam das mesmas pessoas, «ciclos de sagas». Assim foram contadas as ocorrências que sucederam entre Abraão e Ló no seu contexto coerente (Gn 13, 18-19); igualmente existia um ciclo de sagas de Jacó-Esaú, (Gn 25, 19 ss; 27; 33), e outro de Jacó-Labão (Gn 29-31). Nestes dois últimos, pode-se ver, nitidamente, qual o processo que levou a estas coleções maiores. Os dois ciclos que tratam de Jacó, são estreitamente ligados entre si. Embora contivessem material muito heterogêneo, os narradores conseguiram plasmar uma imagem completa da figura de Jacó. Nisto se revela uma arte de contar mais desenvolvida. Sob aspectos literários, quase poderia se chamar este conjunto de «novela». Ainda mais evoluída é a forma artística nas histórias de José. Com todos os traços individuais é reproduzido o destino de José. Contudo, não se trata exclusivamente de José, mas as mais diversas figuras secundárias entram em cena. O resultado é uma contextura artística de vários fios magistralmente entrelaçados pelo narrador.

9


4


Além de ditos, cânticos e sagas foram transmitidas, desde os primórdios de Israel, também leis de espécie diversa. Quanto a seu conteúdo, elas são de grande variedade: desde a exigência de dar culto exclusivo a um só Deus, até o regulamento sôbre o dever de restituição em caso de danos causados por um animal; do mandamento de amar o próximo, até as prescrições exatas sôbre o vestuário para os sacerdotes.

Mediante critérios externos e internos podem ser distinguidas, claramente, diversas classes de leis. Em primeiro plano há disposições que começam com «se» e expõem um «caso» com precisão (p. ex. Êx 21, 18 ss.). Essas leis «casuísticas» tratam de casos litigiosos da vida diária e se destinam para o uso na comunidade judicial. Esta se reunia na praça junto ao portão sempre quando era preciso julgar um processo. Juízes profissionais não os havia, mas essa função era exercida pela totalidade dos cidadãos com direito a voto. Para este fim as sentenças de direito que eram transmitidas de geração a geração, formaram um meio importante. Um exemplo vivo na comunidade jurídica dá o cap. 4 de Rute.

De natureza bem diferente são as sentenças que simplesmente expressam um mandamento ou uma proibição sem quaisquer condições ou restrições: «tu farás» ou «não farás» (p. ex. Êx 20, 2 ss.). Este direito «apodítico» tem sua origem na esfera cultual. Foi recitado em forma solene no culto, provavelmente por ocasião de uma festa particular da renovação da Aliança, que se realizou todos os 7 anos na Festa dos Tabernáculos (Dt 31, 10 ss.). Foi renovada aí a Aliança entre Deus e o povo, estabelecida no monte Sinai. E nesta ocasião foram recitadas as sentenças de direito apodíticas, especialmente o «Decálogo» -- como a manifestação da vontade divina que regia sôbre esta Aliança.

O «direito casuístico» é congênere, segundo sua forma e seu conteúdo, ao direito usado em todo o Antigo Oriente; a paralela mais interessante, com correspondências parcialmente literais, oferece o Código babilônico Hamurabi (ca. 1700 a. C.).

O «direito apodítico», ao invés disso, é genuinamente israelita; e somente compreensível da peculiaridade de fé vetero-

10

testamentária e pertence a seus elementos mais antigos. Ambos os gêneros de direito se confundem intimamente.

Outra espécie de disposição de direito ocupa-se com questões de culto isoladas. Assim, p. ex., é descrito minuciosamente o ato de sacrifício em forma de rituais (Lv 1-5), são compilados detalhes para o uso pelo sarcedote sôbre questões técnicas do sacrifício (Lv 6-7), ou sôbre pureza ou impureza ritual (Lv 11-15). Dêstes textos hauriu a instrução sacerdotal dos leigos sôbre assuntos cultuais. Em geral, porém, são de tempos mais recentes do que as sentenças casuísticas e apodíticas.

As diversas leis são-nos conservadas e transmitidas em uma série de coleções. A mais antiga é o «Livro da Aliança» (Êx. 20, 22 - 23, 19). Reúne em si sentenças de direito apodíticas e casuísticas. O «Deuteronômio» contém, igualmente, muitas sentenças antigas de direito nos capp. 12-13; mas foram entremeadas e ampliadas por frases explicativas, e, exortativas: aqui a lei é pregada! Uma coleção de espécie semelhante, todavia, com determinações preponderantemente cultuais, representa também a «Lei de Santidade» (Lv 17-26). Sua exigência básica está resumida na sentença: «Santos sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (19, 2). Os capítulos 1-16 de Lv, enfim, reúnem diversas coleções menores de disposições rituais.

11




II

O PENTATEUCO

1


As grandes exposições sintéticas da história do povo de Israel, que encontramos no Antigo Testamento, juntaram-se aos poucos, por um crescimento orgânico, de partes menores e mínimas. O caminho que conduz até a forma atual ainda pode ser delineado distintamente em algumas passagens.

O primeiro complexo maior formam os «5 livros de Moisés» denominados «Pentateuco». Tratam, primeiramente, da história da origem da humanidade (Gn 1-11). Segue a história dos patriarcas (Gn 12-50), que forma a propedêutica da história do povo propriamente dita. Desta história é falado nos livros seguintes. Sua primeira parte decisiva abrange o tempo desde a saída do Egito até a introdução na terra prometida. (Com este último tema a exposição já passa para o livro de Josué. Por esta razão costuma-se resumir, frequentemente, os primeiros seis livros do Antigo Testamento, chamando-o, de «Hexateuco»).

Esses acontecimentos, a partir da saída do Egito até a conquista da terra prometida, formavam desde os tempos mais remotos o conteúdo capital da confissão que testifica os atos salvíficos de Deus com seu povo.

Isso se expressa em alguns textos que recitam esses acontecimentos em forma de uma Confissão de Fé, de um «Credo». Em Dt 26, 5-9 é mencionada tal Confissão, por ocasião da oferta dos primeiros frutos da terra prometida. Dt 6, 21-23 apresenta um resumo semelhante, também uma espécie de Credo de forma instrutiva, destinada a ser transmitida à geraçâo seguinte. Igualmente o grande discurso em Js 24 é uma tal Confissão, porém formulada com uma fala de Deus dirigida às tribos congregadas.

Este Credo é, por assim dizer, a célula-mater da grande obra que temos hoje em forma do Pentateuco ou Hexateuco. Formou o guia que fêz convergir aquêles textos tão diferentes num todo. Os grandes temas do êxodo do Egito, da direção divina do povo durante a migração no deserto e a introdução

12

na terra prometida, aqui já são pré-formados. Foram completados pelas numerosas tradições, vivas em Israel, de maneira tal que se formou uma grande exposição coerente.

A Aliança estabelecida entre Deus e o povo no monte Sinai formou, originalmente, o conteúdo de uma tradição especial. As partes do Credo acima citadas não a mencionam. Esta tradição teve seu lugar assegurado, na Festa da Renovação da Aliança, quando também era proclamado o direito divino apodítico. Daí chegou a ser inserida na exposição global da história desde o êxodo do Egito até a conquista da terra de Canaã, formando sua parte central (Êx 19 até Nr 10).

A história dos patriarcas já foi ligeiramente apontada no antigo Credo (Dt 26, 5), ou até exposta mais amplamente (Js. 24, 2-4). Também neste caso, formou-se das múltiplas tradições uma apresentação coesa que foi colocada no começo como o princípio básico da história de eleição que Deus realizou com o povo de Israel.

Esta história particular de Israel, porém, sobressai da história geral da humanidade. Por isso foi anteposta, a tudo mais, a história da origem. Esta disposição mostra que todo este grandioso esbôço aqui originado, não pode ser simplesmente o resultado casual de um processo anônimo de crescimento, mas sim, que é dirigido por pensamentos teológicos bem determinados. Sôbre este ponto é preciso falar mais detalhadamente.

 

2

A história do Princípio (Gn 1-11) é apresentada como história do pecado progressivo: após à queda do homem (cap. 3) segue o fratricídio de Caim (cap. 4); depois é dito que a maldade dos homens se havia multiplicado a tal ponto que o Senhor se arrependeu de ter feito o homem (cap. 6, 6); e, afinal, a torre de Babel é uma nova rebelião dos homens contra Deus (cap. 11). A resposta de Deus a esse pecado dos homens é castigo: a expulsão dos homens do Jardim Éden, a maldição de Caim, o dilúvio, a dispersão da humanidade. Mas com isso ainda não é mencionado o decisivo, porque sempre continua, a par da ação punitiva de Deus, sua ação preservadora: a expulsão do jardim Éden não significa o extermínio

13

completo dos homens -- pelo contrário, Deus até os veste (Gn 3, 21); no homicida Caim é feito um sinal de proteção, «para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse» (4, 15); Noé é salvo do dilúvio, e após o dilúvio Deus se compromete a conservar a ordem da natureza (8, 22) ; também após à edificação da tôrre de Babel, a dispersão da humanidade não é a última palavra; mas Deus escolhe para si dentre ela um único, Abraão, para realizar com êle seu plano. Dêste modo é estabelecida a conexão entre a história do princípio e a história dos patriarcas.

Se até esta altura, o pensamento condutor foi a graça de Deus, que apesar de pecado e castigo, continua com a última palavra, trata-se agora, na história de Abraão, da promissão divina (cap. 12-25). A Abraão é dada a promessa da descendência, da posse da terra e da bênção (12, 1 ss e em outra parte). Mas imediatamente depois põe em risco tudo isso pela entrega de Sarai, sua espôsa, ao Faraó (12, 10 ss). A seguir, cai no extremo oposto: quando a promissão parece não se cumprir, porque Sarai é estéril, tenta obter por outra via o herdeiro (cap. 16). Deus, porém, cumpre sua promessa conforme seu propósito: por Isaque, o filho de Sarai (21, 1 ss).

Nas histórias de Jacó (cap. 25-36) e de José (cap. 37-50) é falado, de modo diverso, do govêrno de Deus apesar da culpa e indignidade do próprio portador da promessa (Jacó) ou apesar dos planos mal-intencionados de outros homens (José). Em ambos os casos, isso é expresso de forma quase programática: em Gn 32, 10-13, na oração de Jacó, e (Gn 50, 20, nas palavras de José.


3


As idéias teológicas diretrizes que, tanto na história do princípio como na história dos patriarcas, em Gênesis, sobressaem claramente, permitem a conclusão de ter sido seu autor aquêle que ajuntou as diversas tradições de maneira bem planejada. Este autor é chamado o «Javista». Essa denominação é motivada pelo fato que êle usa permanentemente, em sua apresentação, o nome hebraico de Deus: «Javé» (na versão portuguêsa é traduzido por «o Senhor»). Representa êle o teólogo mais


14

antigo a nós conhecido no Israel Primitivo. Provavelmente vivia nos tempos do rei Salomão, quer dizer no século X a.C., aproximadamente.

Além do Javista, ainda outros autores contribuíram para a composição atual das narrações do Pentateuco. Pouco mais novo é o «Eloísta», Êle usa para denominação de Deus a palavra «Eloim», que significa simplesmente «Deus», enquanto que «Javé» é nome próprio que o distingue de outros deuses. Do Eloísta não se conservou uma obra completa, sem omissões; antes, pelo contrário, sua contribuição consiste em forma de suplementos acrescentados à obra javista. Especialmente típicos são para tal fato os cap. (Gn 20-22), que são, quase exclusivamente de procedência eloísta. No cap. 20, o Eloísta
relata da traição de Sara por Abraão -- igual ao Javista em 12, 10 ss, mas com a diferença que aqui é o rei Abimeleque de Gerar, em cujas mãos Sarai é entregue, enquanto no cap. 12 foi o Faraó do Egito, Semelhante narração paralela da expulsão de Hagar acha-se, novamente em forma diversa, no cap. 21, 9 ss. A narração de Isaque, que seria ofertado a Deus em holocausto, cap. 22, entretanto, é uma passagem exclusiva do Eloísta.

Ambos os escritos ainda deixam entrever várias diferenças nítidas em sua maneira de apresentar as histórias. Uma divergência que logo cai na vista é, p. ex., esta: que no Javista, freqüentemente, Deus ou seu «anjo» falam diretamente com os homens (p. ex. 12, 1; 16, 8), enquanto que no Eloísta êle fala «em sonhos» ou chama «do céu» (p. ex. 20, 3; 21, 17).

Ainda uma terceira «fonte» contribui para a obra campleta: «o Escrito Sacerdotal». Recebeu esse nome porque manifesta um interesse acentuado em assuntos sacerdotais e objetos cultuais. Assim, p. ex., provieram desta fonte as instruções sôbre a circuncisão (Gn 17, 9 ss), os dados, por extenso, sôbre a construção do tabernáculo (Êx 25-30 e 35-40) e muitas outras disposições cultuais e rituais. É também o escrito sacerdotal que traz numerosos dados cronológicos a respeito da idade das respectivas pessoas (p. ex. Gn 12, 4 e 25, 7), sôbre o ano do êxodo do Egito (Êx 12, 40) e outros semelhantes. Em tudo isso se mostra uma erudição tal qual foi cultivada nos círculos sacerdotais do antigo Israel. Nestes círculos sacerdotais nasceu também o primeiro relato sôbre a criação em

15

Gn 1, o qual ainda dá a conhecer distintamente o autor como sendo um pensador sistemático e ordenador, enquanto o segundo, em Gn
2, forma uma unidade com a história da queda no cap. 3 e pertence à obra do Javista. O escrito sacerdotal é a mais recente das três obras narrativas e data, muito provàvelmente, do tempo do exílio, ou seja do século VI a. C.

Estes três escritos J+E+S, enfim foram, pouco mais tarde, compilados para uma única obra expositiva. Podemos imaginar este processo à semelhança de como se os diversos relatos dos quatro Evangelhos do Novo Testamento fossem combinados para uma unidade literária. Nesta compilação, o Escrito Sacerdotal, com sua estrutura cronológica, é tomado como uma espécie de «moldura» preenchida a seguir com o material transmitido pelas outras fontes literárias. Por fim, foi acrescentado o «Deuteronômio», que representa uma quarta obra independente e data do século VII a. C.


 


III

O DEUTERONÔMIO

e a obra de historiografia deuteronomistica

(Dt até II Rs)


1


O quinto livro do Pentateuco, o Deuteronômio, contém, inicialmente, introduções (cap. 1-4 e 5-11), a seguir uma coleção de leis (cap. 12-26) e, enfim, um trecho final sôbre as últimas palavras e instruções de Moisés e sôbre sua morte (cap. 27-34). A coleção de leis, portanto, forma a parte principal da obra. De fato, porém, é mais do que uma disposição planejada de preceitos e prescrições. Os textos «legais» foram em geral ampliados por paráfrases explicativas e exortativas, de forma que se pode falar, no caso, de «lei kerigmatizada» (pregada) (cf. parágr. 1, 4).

A pregação da lei do Deuteronômio, mostra claramente uma determinada idéia diretriz qual seja: a adoração exclusiva de um só Deus. Esta exigência básica é expressa na introdução, cap. 6, em forma de uma exortação de Moisés. No início da coleção de leis ela se manifesta no mandamento de celebrar culto de oblação em um só lugar central (cap. 12). Simultâneamente com isso, é relacionada a ordem de destruir todos os lugares cultuais pagãos no país e eliminar o culto de outros deuses. De fato, esta exigência determina também muitos dos mandamentos e proibições seguintes.

Em II Reis 22 é relatado que, por ocasião de trabalhos de concertos no templo, durante o tempo do rei Josias (639-609), foi encontrado um código de leis. A reforma do culto, realizada em seguida (cap. 23), mostra claramente, que por ela foi realizada a idéia fundamental do Deuteronômio, que só permitia um único lugar de culto. Pode-se supor, seguramente, que o Deuteronômio foi exatamente este mesmo código de leis. Contém muito material antigo, mas em sua forma atual foi redigido, provavelmente, apenas no século em que foi achado e quando começou a vigorar.

17

As idéias do Deuteronômio tiveram efeito contínuo e durável. Prova disso é, antes de mais nada, o domínio que exercem sôbre toda a historiografia seguinte, a começar pelo livro de Josué até o fim do II livro dos Reis. Isso já se evidencia claramente na introdução do livro de Josué. Em Js 1,7 e 8, Josué é admoestado de proceder segundo a lei que Moisés lhe ordenara, e de ocupar-se continuamente com este «livro de leis». Terminada a ocupação da terra, Josué por sua vez exorta o povo reunido, de não se apartar dêste livro da lei de Moisés (v.6); isso, porém, quer dizer: não dar culto aos deuses estranhos, mas servir somente «ao Senhor» (v. 7 e 8).

No livro dos Juizes, cap. 2,10 ss, é feita uma exposição resumida do decurso da história após à morte de Josué. É considerada sob o ponto de vista de que os israelitas sempre de novo se afastaram do culto ao único Deus e passaram a servir outros deuses. O castigo por esta apostasia foi que toda vez o Senhor os dava na mão de «espoliadores», isto é, de povos vizinhos, hostis. Somente quando, no apêrto, clamavam a Deus, êle os salvava por um «juiz». Aqui, portanto, a exigência de dar culto exclusivo ao único Deus, tornou-se o princípio diretivo da concepção da história.

Fato bem semelhante encontramos nos livros dos Reis. Os reis são apreciados, um por um, segundo o critério, se esta exigencia foi cumprida durante seu govêrno e se o culto de sacrifício foi severamente restrito ao santuário central de Jerusalém. O fim político dos estados de Israel e de Judá é interpretado em II Reis 17 como conseqüência da «apostasia».

Por causa desta idéia-mestre, homogênea e sua nítida relação com o Deuteronômio, denomina-se toda esta historiografia, de Josué até II Reis, de «obra historiográfica deuteronomista».


2

Esta obra historiográfica foi concebida segundo um plano coerente e determinada por uma idéia homogênea, a saber, o mandamento fundamental do Deuteronômio: dar culto a um só Deus em um santuário central. O último evento, do qual relata -- a libertação do cárcere, do rei Joaquim (II Reis 25, 27 ss.),

18

que foi conduzido preso para o exílio -- nos permite fixar o tempo em que o Deuteronômio foi escrito. Este evento ocorreu no 37o. ano após o exílio de Joaquim, quer dizer depois de 598. De meados do século VI a. C., portanto, data a origem desta obra.

Exatamente assim como no caso das composições coerentes do Pentateuco, p. ex., as do Javista (cf. II, 3), também esta vez deve ser feita uma distinção entre o material da tradição, que lhe serve de base, e a redação sintetizante à qual aquêle foi submetido. O autor da obra historiográfica deuteronomística, o «deuteronomista», é um colecionador, que compilou e redigiu as tradições que encontrou, sob determinados pontos de vista.

Essas tradições eram de natureza diversa. As narrações na primeira parte do livro de Josué relatam acontecimentos dentro do contexto da ocupação da terra. O cenário dêstes acontecimentos é o santuário de Gilgal, próximo a Jericó e sua circunvizinhança. Portanto, a atenção é somente voltada para uma área limitada da terra que os israelitas ocuparam. Estando Jericó situada na região da tribo de Benjamim, é provável tratar-se de tradições cultivadas no âmbito desta tribo. Segundo seu caráter literário, todas estas narrações são, preponderantemente, de natureza «etiológica» (cf. parte 1, 3). Têm por objetivo explicar os mais diversos fatos: 12 pedras no leito do rio Jordão (Josué 4,9O «até ao dia de hoje»); outras 12 pedras no santuário Gilgal (4,21 ss); o nome «Gilgal» (5,9); os muros destruidos de Jericó, que aí jazem (6,26); o fato de morar o clã de Raabe no meio dos israelitas (6,25); um montão de pedras no vale de Acor e o nome dêste vale (7,26); as ruínas de Ai (8,28); o emprêgo dos gibeonitas para servirem no santuário de Gilgal (9, 27) etc. Estas narrativas etiológicas agora estão unidas, formando um quadro uniforme da fase de ocupação das terras na Cisjordânia por Josué. É uma história da maravilhosa direção divina, sob a qual não a força militar do povo, mas o próprio Deus conquista a vitória sôbre seus inimigos.

Para o transcurso restante da ocupação da terra, o deuteronomista dispôs de diversos documentos em forma de listas, que transmitiu nos capítulos 13-21. No discurso de despedida de Josué, cap. 23, é declarado mais uma vez, em retrospecto, que a história da tomada da terra foi uma história da liderança de

19

Deus pela qual realizou suas promissões dadas (v. 14). Manifesta-se, portanto, neste pensamento, o interesse do deuteronomista que subordinou todo este período da história da ocupação da terra a essa idéia fundamental.

O cap. 24 do livro de Josué contém uma tradição particular. Relata de uma aliança feita em Siquém (v. 25). Os parceiros desta aliança são Deus e as tribos reunidas de Israel; Josué tem posição de mediador. O teor do compromisso assumido com a Aliança é o culto tributado ao Uno Deus, Javé, pelas 12 tribos de Israel (Vv. 22-24). Nesta associação cultual das tribos (anfictionia), temos a mais antiga forma de comunhão que se denominou a si mesma de «Israel». Somente no transcurso da história seguinte, desenvolveu-se, da comunhão cultual, uma comunidade política e, da associação inconsistente de tribos, um povo com uma e mesma formação.

3

Após a história da ocupação da terra pelos israelitas, segue a apresentação da «era dos juizes». Para esta, o deuteronomista teve à sua disposição uma série de narrações sôbre personagens individuais de destaque, os quais prestaram ao povo, em tempos de calamidade política, serviços decisivos. Estes assim chamados «juizes maiores» são carismáticos, quer dizer, varões subitamente chamados pelo «Espírito de Javé» e destinados a assumir o comando do exército israelita; mas não eram detendores de um determinado cargo definitivo.

As tradições relativas aos «juizes maiores» diferem muito quanto à sua espécie e sua extenção. Sôbre Otniel são fornecidas apenas algumas breves notícias (Jz 3,7-11), ainda menos sôbre Sangar (3,31). Mais detalhadas são as narrativas sôbre Eúde (3, 12-30), Débora e Baraque (cap. 4), Gideão (cap. 6-8) ) e Jefté (10,612,7), que por sua intervenção lograram afastar dos israelitas a ameaça de guerra ou domínio de estrangeiros. O deuteronomista apresenta todo este período como conseqüência alternante da apostasia dos israelitas, castigo divino
e salvação final, conforme é expresso no seu «programa» introdutório (2,6-3,6, cf. parágrafo III,1) e nas observações

20

preliminares, quase verbalmente idênticas, sôbre as histórias dos respectivos juizes. (3,7-9; 3,12-1-15; 4,1-3; 6,1-6; 10,6-10).

Ao lado das tradições dos «juizes maiores», o deuteronomista inclui em sua obra uma lista de «juízes menores», (cap. 10, 1-5; 12, 8-15). Estes obviamente, são detentores de um cargo permanente de «juiz de Israel», a respeito do qual nada de exato sabemos. Além disso, para poder compilar os acontecimentos em torno de Débora e Baraque, relatados no cap. 4, teve à sua disposição, como tradição paralela, o cântico antigo de Débora (cap. 5) e ainda um relato sôbre a intentona de Abimeleque de estabelecer seu reinado em Siquém (cap. 9), as histórias de Sansão (capp. 13-16) e várias tradições individuais da era dos juizes (capp. 17-21).

O livro de Rute, que em nossa Bíblia segue ao dos juizes, tem no texto hebraico um lugar diferente, assim que os livros de Samuel seguem imediatamente o livro dos Juízes. Dentro do contexto da obra historiográfica deuteronomistica, a conexão é muito estreita. Somente com o grande discurso de Samuel em I Sm 12, a era dos juizes alcança, propriamente, seu fim. Samuel é o último «juiz»: salva Israel das mãos dos filisteus (I Sm 7).

Ainda durante os últimos anos de Samuel começa a era dos reis. Sôbre seus primórdios temos dois relatos diferentes. De acordo com a primeira versão, Saul, ocasionalmente, se encontra com Samuel, é por este ungido rei, secretamente, assume pouco depois, em situação política de emergência, como carismático, o comando do exército e, conquistada a vitória, é aclamado rei pelo povo (I Sm 9,1-10,16 e cap. 21). Na outra versão, ao inverso, é o povo que exige de Samuel a instituição de um rei. Para Samuel, isso significa apostasia de Deus, o qual é o verdadeiro e único Rei de Israel; mas Deus lhe ordena de ceder à vontade do povo. Em seguida, Saul é indicado, pela sorte, para ser rei (cap. 8 e 10,17-27).

Esta segunda versão é evidentemente a mais nova. Por uma posição negativa para com o reinado, pretende completar e corrigir a mais antiga. Representa a concepção própria do deuteronomista, que, por razões de experiências colhidas da história, considera a instituição de um rei um fator de princípio oposto à soberania absoluta que Deus reclama para si. Com isto o deuteronomista adere, também neste ponto, ao Deutero-

21

nômio, cuja lei sôbre o rei (Dt 17,14-20) reflete a mesma avaliação negativa.

4

A história da era dos reis subdivide-se em vários capítulos maiores. O govêrno de Saul é somente de pouca duração. Por causa de sua desobedência, êle é «rejeitado» por Deus (I Sm 1 5 ). Com isto, agora, surge a pergunta pela sucessão. Ela é respondida no cap. 16: Davi é ungido rei por Samuel conforme a ordem de Deus. Mas ainda Saul ocupa o trono, e, conseqüentemente, começa uma longa e variada história de rivalidade entre Saul e Davi. Davi é obrigado a fugir e manter-se escondido (capp. 19-26); por fim, até tem que abandonar o país (cap. 27) ; somente após a morte de Saul na peleja contra os filisteus (cap. 31) está livre o acesso ao trono para Davi.

Primeiramente, é aclamado rei por sua própria tribo Judá (II Sm 2) e passa a residir em Hebron. Após lutas prolongadas com os decendentes de Saul, alcança, enfim, o domínio sôbre as demais tribos (cap. 5). Sua primeira ação previdente é a conquista da cidade de Jerusalém, que até então ainda se achava em posse dos aborígenes cananeus, os jebuseus (5,6 ss). Assim criou para si uma residência de localização central, a qual não pertencia a nenhuma das tribos, mas era sua propriedade pessoal. Nesta altura termina a história da ascendência de Davi (I Sm 16,14 - 11 Sm 5).

Com o próximo capítulo começa um novo tema: a questão da sucessão de Davi no trono. Davi manda trasladar para sua nova residência o antigo santuário central da anfictionia cultual «Israel» (cf. Js 24 e parágrafo III,2, no fim), a «arca de aliança» (cap. 6), e assim fêz de sua cidade também o centro cultual. Afinal, recebe da boca do profeta Natã a promissão divina que sua dinastia subsistirá para sempre (cap. 7). Assim o domínio de Davi parece assegurado, tanto mais que ainda consegue ampliar, consideravelmente, seu território, subjugando uma série de povos circunvizinhos. Breve, porém, já começam as lutas pela sucessão no seu trono. Sucedem-se diversas revoltas (capp. 15 e 20) e a tentativa de proclamar, arbitrariamente, um sucessor (I Rs 1, 5 ss). Afinal, sai vencedor destas lutas Salomão (I Rs 1, 28 ss), que já antes foi declarado «o

22

amado de Javé» (II Sm 12,25). Nesta história da sucessão de Davi, temos novamente um fragmento de boa tradição antiga. Pode-se considerá-la uma obra da historiografia cultivada na corte, que iniciou com a instituição de um reino estabelecido e, por conseguinte, de uma vida própria da corte.

Também dos anais de historiógrafos na corte real, o deuteronomista fêz uso para exposição da história de Salomão. Chama esta, expressamente, de «atos de Salomão», I Rs 11,41. Entretanto, não teve diante de si um complexo tão coeso como no caso da tradição sôbre Davi. Assim formou seu próprio esbôço da história de Salomão: No começo, pos a revelação de Deus em Gibeon, com a prece de Salomão por um coração compreensivo (3,4 ss.) e relata então, num primeiro parágrafo, da sabedoria de Salomão (3,16 ss e 5,9ss), de sua corte (cap. 4), de suas relações comerciais (5,15ss) e, sobretudo, da construçâo e da inauguração do templo bem como do palácio real (capp. 6-8). A segunda parte da história de Salomão começa novamente com uma revelação divina (cap. 9). Mas aqui se fala, ao lado da promissão, da ameaça, caso se desviar de Deus (vers. 6 ss). E nessa segunda parte, acha-se ao lado de relatos positivos (capp. 9 e 10), antes de tudo a notícia que Salomão foi seduzido para a idolatria por suas mulheres estrangeiras (11, 1 ss) . A reação da ira de Deus jà implica na queda do governo de Salomão (11,11) e ainda durante sua vida seu poder começa a desintegrar-se em todos os setores (11,14ss). Dêste modo, os acontecimentos, após à morte de Salomão, aparecem como a conseqüência necessária de seu procedimento repreensível.

5

O «tempo dos reis», propriamente dito, começa na obra historiográfica deuteronomistica com a divisão do reino: após à morte de Salomão o reino criado por Davi se desintegra em duas partes independentes, «Israel» no norte e «Judá» no sul. Enquanto em Judá o filho mais velho de Salomão, Roboão, consegue garantir a continuação da dinastia de Davi (I Rs 12, 17), em Israel é intronizado Jeroboão, ao qual foi prometido, anteriormente, este reino por uma palavra profética (11,29 ss; 12,20).

23

Essa divisão se expressa, a seguir, em toda a disposição da obra. As ocorrências nos reinos norte e sul são tratadas separadamente. Contudo, é conservada a estreita conexão entre ambos pelo fato que não se formam dois relatos contínuos, mas, sim, são relatados os acontecimentos concornitantes em ambas as partes, sempre em ordem consecutiva, imediatamente um após o outro. Desta maneira seguem, após a notícia sôbre a morte de Roboão, rei de Judá (14,31), primeiramente, os dados sôbre seu sucessor Abías (15,1-8 ) e Asa (15,9-24), que, ambos, começaram a reinar ainda durante a vida de Jeroboão, do rei de Israel; mas somente então seguem os dados correspondentes sôbre o reino do norte: O comêço do reinado de Nadabe, o sucessor de Jeroboão, dá-se no tempo do rei Asa de Judá (15,25-28), bem como o de Baasa, que o mata e assim conquista o trono (15,28-16,6). Nesta apresentação alternante sempre são usados, para datar as ocorrências, os anos do govêrno do rei respectivo no estado vizinho; portanto, usa-se o método de sincronização.

Quanto aos dados sôbre a origem, a idade e a duração do govêrno de cada rei, as quais são registradas no comêço do parágrafo sôbre o tempo de sua gestão, o deuteronomista pôde tirá-los novamente de fontes fidedignas: da «Crônica dos Reis de Israel» (14,19; 16,5 etc.), respectivamente da «Crônica dos Reis de Judá» (14,29; 15,7-23 etc.). Afora disso, transparece nitidamente sua própria tomada de posição: em seguimento imediato a estes dados objetivos, acha-se, regularmente, uma sentença sôbre a atitude do rei respectivo para com os mandamentos divinos (14,22; 15,3-11.26 etc.). Desta maneira, revela-se que o critério básico da avaliação é a questão, se os reis limitarem o culto exclusivamente ao santuário central em Jerusalém ou não (cf. parágr. III,1). O autor os avalia, portanto, segundo a exigência do Deuteronômio, que reconhece somente um único lugar de culto.

Vê-se, pois, que o deuteronomista de maneira alguma tencionava escrever a história política do tempo dos reis, mas se importou em apresentar a relação dêste tempo com as exigências de Deus, como êle as entendeu. Sua visão global é, inequivocamente negativa. Em II Rs 17, êle a resumiu: Foi uma história de apostasia progressiva. Dêste modo, o fim de ambos os

24

reinos nos anos 721 e 587, respectivamente, é a conseqüência inevitável.

Na história do tempo dos reis o deuteronomista ainda inseriu uma série de trechos sôbre profetas. Especialmente, devem ser mencionadas as narrações extensas de Elias (I Rs 17-19,21; II Rs 1-2) e Eliseu (II Rs 2,1-13,21), de Isaías (II Rs 18,13 20,19 = Js 36-39), e ainda as de Aías, o silonita (I Rs 11,29-12,20) e de Micaías, filho de Inlá (I Rs 22).

A obra historiográfica deuteronomistica expõe, portanto, nos livros de Josué até Il Reis, com base em material de tradição mais antiga a história desde a ocupação da terra até o fim do reino de Judá, sujeitando-a, ao mesmo tempo, a uma avaliação teológica. Não contém historiografia no sentido moderno, mas sim, quer interpretar a história desde um determinado ponto de partida teológico. Para tal, segundo o autor, ela é determinada inteiramente pelo mandamento de Deus e pela atitude dos homens

25



IV

OS PROFETAS


No cânone hebraico do Antigo Testamento, os «livros históricos», isto é, os livros Josué até Reis, inclusive, pertencem aos «profetas» que seguem após a «lei» (o pentateuco). Na tradição judaica, foram tidos por autores, homens, que se consideravam profetas: Josué, Samuel (o do livro dos Juizes e dos livros de Samuel) e Jeremias (o dos livros dos Reis). Estes livros formam a primeira parte do cânone profético: os profetas «anteriores». Seguem, então, os livros proféticos própriamente ditos, que são denominados os profetas «posteriores». Uma execeçâo é o livro de Daniel, que não consta entre os profetas, mas somente no fim entre as «Escrituras», porque foi escrito quando o cânone profético já estêve concluído.

Os livros proféticos abrangem um espaço de tempo de diversos séculos. O mais antigo entre os profetas históricos é Amós. Sua aparição em público data da metade do século VIII a. C., cêrca de 760 ou 750. Pouco mais recente é Oséias, que exerceu sua atividade profética nos anos entre 750 e 725 a. C., igual a Amós, no reino do norte, «Israel». No mesmo tempo, viveu no reino do sul, «Judá», o profeta Isaías; foi profeta desde o ano 735 (ano da morte do rei Uzias, cf. Js. 6, 1) até 700, e, simultaneamente com êle, também Miquéias.

Após estes profetas do VIII século, encontramos, no fim do século VII, novamente, diversos profetas: Jeremias foi chamado para ser profeta em 620 (cf. Jr 1, 2) e ainda chegou a presenciar a queda de Jerusalém no ano 587. Igualmente os profetas Naum, Habacuque e Sofonias viviam nestes últimos decênios antes do fim do Reino de Judá.

Também no tempo após à ruína política continuou a atividade profética: Ezequiel aparece entre os habitantes de Judá que foram levados com a primeira deportação, no ano de 598, para a Babilônia. No tempo do exílio babilônico também está em atividade o profeta anônimo que pronunciou as palavras colecionadas nos capp. 40-55 do livro de Isaías. Chama-

26

mo-lo de «Dêutero-lsaías», isto é, o segundo Isaías. (O livro de Isaías é, semelhante ao livro dos 12 «Profetas Menores», uma coleção de diversos escritos proféticos: capp. 1-39 de Isaías; capp. 40-5 5 de Dêutero-Isaías; capp. 5 6-66 de um ou mais profetas pós-exílicos, denominado «Trito-lsaías»). No tempo pouco depois da destruição de Jerusalém deverá ser fixada também a origem do livrinho Obadias.

Afinal, existiam profetas também ainda após o exílio, dos quais a tradição nos conservou documentos literários. Ageu conseguiu no ano de 520 a. C., por sua atividade profética, que fosse levado avante a reconstrução do templo, e em continuidade imediata a este, Zacarias começou sua pregação. Também os livros de Malaquias e, mais tarde ainda, Joel e Jonas datam do tempo pós-exílico, bem como o «Trito-lsaías» (Is cap. 56-66).

Esse grande lapso de tempo acarreta várias diferenças entre os diversos livros proféticos. Isso não apenas por ser cada um dêles, necessàriamente, um filho de seu tempo, mas, sobretudo, por não ser sua missão transmitir uma «doutrina» independente do tempo, mas, sim, porque tinham que proclamar a vontade bem concreta de Deus, endereçada sempre à sua época presente.

Porque o traço de união entre todos é que estiveram conscios de serem chamados e enviados diretamente por Deus, a fim de dizer a seu povo -- e amiúde também a outros povos -- o que precisava ser dito justamente no tempo em que viviam.

Por essa razão, também ficaram, na maioria dos casos, isolados, solitários e, freqüentemente, entraram em oposição ao profetismo oficial e «profissional» (cf. p. ex. Jr 23,9 ss).

2

Existem várias diferenças na forma e no conteúdo da mensagem dos profetas individuais. A linguagem profética, porém, mostra tantos traços comuns, que é possível expor, coerentemente, suas características mais importantes.

A tarefa básica do profeta consiste em anunciar o agir de Deus através do qual realiza sua vontade contra toda e qualquer resistência. Esse agir de Deus pode significar salvação ou

27

desgraça. Por isso a anunciação profética consiste em promissão ou ameaça. Corresponde à natureza e à missão dos profetas literários que a anunciação de desgraça predomina entre a maioria dêles. A forma principal da profecia, portanto, é a «palavra de ameaça». Em muitos casos tem a forma abreviada de oráculo e assinala apenas a desgraça que há de vir: «Um inimigo cercará a tua terra, derribará a tua fortaleza, e os teus castelos serão saqueados» (Amós 3, 11). Muitas vêzes, manifesta-se nestas palavras o próprio Deus, diretamente na forma da primeira pessoa do singular, em cujo nome o profeta pronuncia a palavra de ameaça: «Meterei fogo à casa de Hazael ... quebrarei o ferrôlho, de Damasco» (Am 1, 4 e 5) e, freqüentemente, ainda vem acompanhada do enfático «Eis» no inicio da sentença (Am 2, 13). Que essas palavras de ameaça querem ser entendidas em sentido direto, como palavras do próprio Deus, prova-o, além do emprêgo da 1a. pessoa do singular, a freqüente fórmula de introdução: «Assim diz o Senhor» (Am 1, 3. 6. 9. 11. e 13 etc.), a mesma fórmula com a qual o mensageiro transmite seu recado (cf. Gn 32, 5: «Assim diz o teu servo Jacó»; 1 Rs 2, 30: «Assim diz o rei»).

O profeta, porém, não permanece inteiramente passivo ao transmitir essas palavras. Não é apenas porta-voz. Em Jeremias, isso se externa, certa vez, assim que o profeta, qual acrisolador, deve examinar a vida do povo (Jr 6, 27). E daí também é de sua tarefa endereçar a palavra de ameaça, recebida por Deus, ao destinatário certo. A este destinatário se dirigem suas próprias palavras introdutórias, a «palavra de repreensão». Muitas vêzes esta começa com um cortante «ai!» (Am 5, 18; 6, 1) e o enderêço, às vêzes, é de uma precisão insuperável, quando, p. ex., Amós chama as mulheres dos nobres na Samaria de «vacas de Basã» (4, 1) ou, quando Isaías dirige o seu ai! aos que são «heróis para beber vinho» (5, 22) e que ao mesmo tempo são mestres em perverter a justiça em seu contrário. Ao lado destas formas específicas do pronunciamento profético, os profetas usam, amiúde, outras formas estilísticas para introduzir e engastar sua mensagem. Assim, Amós entoa urna lamentação fúnebre sôbre a «virgem de Israel», antes de anunciar à «casa de Israel» a palavra de ameaça, com a qual foi incumbido (5, 1 e 2). Isaías até recita um cântico de amor, contando de seu amigo e sua vinha, isto é,

28

de sua amada, para dizer somente bem no fim aos ouvintes assustados que êles mesmos, os israelitas, são a vinha malograda, sôbre a qual virá o castigo merecido (Is 5, 1-7). Outra forma é a seguinte: Os profetas falam em breves sentenças exortativas da instrução sacerdotal na lei: «Cada manhã trazei os vossos sacrifícios, e de três em três dias os vossos dízimos!» (Am 4, 4); «Lavai-vos, purificai-vos!» (Is 1, 16), empregando-as, de repente, no sentido contrário: «Não busqueis a Betel, nem venhais a Gilgal!» (Am 5, 5); «Não continueis a trazer ofertas vãs; vosso incenso é para mim abominação!» (Is 1, 13).

Outrossim, que a pregação dos profetas processou-se, muitas vêzes, mediante disputas com a opinião comum do povo, mostra a forma da «palavra de disputa»: Primeiramente o profeta apresenta aos ouvintes perguntas, às quais a resposta se infere por si mesma: «Andarão dois juntos, se não houver entre êles acordo? Rugirá o leão no bosque, sem que tenha prêsa?» etc. (Am 3, 3 ss). Isso demonstra: a causa e o efeito são forçosamente relacionados entre si. Daí resulta a conclusão lógica: Não sucede mal algum à cidade, sem que o Senhor o tenha feito (v. 6 b).



3


O emprêgo de formas de estilo que têm seu «Sitz im
Leben» (lugar vivencial) em outras esferas, pode-se observar com clareza especial em «Deutero-Isaías» (Is 40-55). Nestes textos, a «palavra de disputa» (cf. Nr IV, 2) exerce uma função importante: «Quem na concha de sua mão mediu as águas e tomou a medida dos céus a palmos? ... Quem guiou o Espírito do Senhor? ou, como seu conselheiro, o ensinou?» (40, 12-14). Todas estas perguntas, o antagonista de discussão é obrigado a responder, necessàriamente, com a negação: «Ninguém». Então também não pode evadir-se da conclusão final: que diante desse grande Deus, de superioridade absoluta, os povos são como um nada: «como um pingo que cai dum balde, e como um grão de pó na balança'' (Vs. 15-17). Aqui também transparece o objetivo desta forma estilística: os ouvintes da pregação profética devem com-

29

preender que Deus é mais forte do que as nações pelas quais foram vencidos e levados para o exílio. Êle também tem o poder de reconduzir os seus para a terra que lhes deu. -- Muitas vêzes, em Deutero-Isaías, a simples discussão se transforma em uma autêntica cena de tribunal, na qual são intimados o céu e a terra como testemunhas para demonstrar o poder de Deus (p. ex. 41, 1-5; 21-29; 43, 8-13). Ao objetivo de arrancar os ouvintes de seu profundo abatimento e de fortalecer sua fé no poder de Deus e na possibilidade de uma repatriação por êle, serve em Deutero-Isaías, também o referimento à linguagem e à substância de fé dos salmos. Repetidas vêzes lembra: «Acaso não sabeis? porventura não ouvis?» (40, 21) «Não sabes, não ouviste ... ?» (40, 28) -- e então seguem palavras que cada ouvinte conhece dos salmos, e que falam de Deus, o Criador e Senhor do mundo. Em outras passagens o profeta começa com o imperativo: «Não temas», palavra que assegura àquele a quem se dirige, auxílio e salvação (41, 10.-14; 43, 1 e outros). Também essa tem sua origem no uso cultual dos salmos: é a palavra, mediante a qual o sarcedote assegura ao salmista, que apresenta sua lamentação, a certeza de ser atendida sua súplica e de obter ajuda. Corresponde ao caráter do ministério profético o fato que a pessoa do profeta cede inteiramente para o segundo plano. Mas, de vez em quando, aparece em cena. Às vêzes, encontramos um breve indício sôbre o processo através do qual o profeta recebeu a revelação, p. ex. Is 5, 9: «Aos meus ouvidos disse o Senhor dos Exércitos» (cf. 22, 14; 40, 3 e 6). Jeremias relata de seu diálogo com Deus quando era chamado para ser profeta (Jr 1). Mais freqüentes são os relatos sôbre visões que o profeta teve: Isaías e Ezequiel foram chamados para seu munus profético através de teofanias (Is 6; Ez 1-3). Segundo outras passagens, é anunciado ao profeta, por intermédio de uma imagem visionária, o que Deus fará em um futuro iminente (p. ex. Am 7-9; Jr 1, 11 ss, Zc 1-6).

Uma forma especial deste envolvimento da pessoa do profeta em sua pregação, são os «atos simbólicos». Nestes, o próprio profeta se torna um «sinal» (Is 8, 18; Ez 12, 6, 24, 24). Representa com uma determinada ação simbólica o que Deus quer anunciar a seu povo (p. ex. Is 20, 1-6; Jr 13, 1-11; Ez 4 e outros textos). Às vêzes, o profeta está entre-

30

metido com toda sua vida pessoal em tais atos simbólicos: Oséias tem que casar-se com uma prostituta (Os 1 e 3), Jeremias, pelo contrário, deve renunciar, inteiramente, ao matrimônio e não lhe é lícito participar na vida social (Jr 16, 1-9).

Quão imenso pôde tornar-se, com tudo isso, o ônus que pesava na alma do profeta, patenteia-se com clareza especial em Jeremias, no qual, aliás, sobressai, em geral o elemento pessoal com maior vigor do que nos outros profetas: Em suas «Confissões» descreve suas querelas com Deus por causa do peso de seu ministério que quase o esmaga (Jr 11, 18 - 12, 6; 15, 10 - 21, 17, 14-18; 18, 18-23; 20, 7-8); e as narrações sôbre o destino de Jeremias, que seu amigo e discípulo Baruque registrou, podem chamar-se realmente de «história de Paixão» (esp. Jr 36-45).

A coleção das palavras dos profetas e os relatos sôbre êles em «livros», devemos a seus alunos ou discípulos (cf. Is 8, 16; Jr 36); coligiram essas tradições e, em muitos casos, também acrescentaram pensamentos próprios, assim que os livros proféticos atuais constituem o resultado de uma história de formação que durou mais tempo.

31

 



V

OS SALMOS


1


Os salmos que o Antigo Testamento nos transmitiu, na verdade representam apenas uma pequena parte de todos os salmos existentes no Antigo Israel. Sua grande importância já se evidencia pelo fato que se encontram numerosos salmos também fora do «Saltério», p. ex. Ex 15; 1 Sm 2; II Sm 22, bem como nos livros proféticos: Is 38, 10-20; Jr 2; Hc 3 etc.

O Saltério divide-se em 5 «livros». Destacam-se, claramente, um do outro pela doxologia, uma glorificação de Deus, acrescentada no fim do último salmo de cada livro: Salmos 1-41; 42-72; 73-89; 90-106; 107-150 (no fim falta a doxologia especial, porque o próprio salmo 150 é uma tal doxologia final). Essa subdivisão, evidentemente, foi feita num tempo em que a coleção de salmos já existia na forma atual.

No entanto, ainda, se pode reconhecer que, já antes, existiam coleções independentes menores. Assim temos, p. ex. no fim do SI 72, a seguinte notícia: «Findam as orações de Davi, filho de Jessé». Essa observação, evidentemente, formava outrora o fêcho de uma coleção especial de «Salmos de Davi». Além dos salmos 51-72, porém, no fim dos quais acha-se essa anotação, também os salmos 3-41 levam, em geral, o título: «de Davi», de modo que se obtém a impressão que existiam duas de tais coleções. A par dessas, sobressaem ainda outros grupos por um título comum: Os salmos de Coré 42-49, os salmos de Asafe 73-83, e mais um grupo cujo título em nossa Bíblia é: «Cântico de romagem»: Salmos 120-134. O significado da respectiva palavra hebraica é um tanto incerto; provavelmente, trata-se de «Cânticos de romaria» ou talvez «graduais». Afinal, ainda é interessante que em um grupo inteiro de salmos, o nome de Deus «Javé» (trad. «o Senhor») foi substituído por «Elohim» (»Deus»), SI 42-83. Isso pode ser verificado facilmente pela comparação entre os SI 14 e 53, que, aliás, são quase literalmente idênticos.

32

Portanto, podemos supor que os salmos de Coré 42-49, o segundo grupo de salmos de Davi 51-72 e os salmos de Asafe formavam uma coleção independente, na qual foi efetuada essa mudança do nome de Deus.

Tudo isso torna patente que o saltério, em sua forma atual, é o resultado de um crescimento paulatino. Nisso é comparável com nossos hinários, que também são o produto final de uma longa história do hino eclesiástico e sempre se baseiam em hinários e coleções de cânticos mais antigos. E, assim como um hinário moderno contém hinos do tempo desde antes da Reforma até nossos dias, também os salmos datam dos mais diversos tempos da história de Israel. Entretanto, é, na maioria dos casos, muito difícil fixar-se o tempo exato de sua origem. Só raras vêzes acham-se indícios seguros a este respeito, assim p. ex. no SI 137, que nasceu «às margens dos rios de Babilônia», portanto, durante o exílio no século VI a. C.

A comparação com o hinário ainda tem sua boa razão num outro particular: Os salmos revelam, todos êles, uma relação mais ou menos clara com o Culto. E neste ponto pode-se, muitas vêzes, reconhecer mais exatamente qual o ensejo cultual para o qual foram usados. Visto que forma e conteúdo estão em uma correlação determinada, os salmos podem ser classificados em diversos «gêneros» que apresentam, cada qual, caraterísticas formais e têm seu lugar vivencial («Sitz im Leben») em determinada situação cultual. A classificação segundo o gênero é, em muitos casos, ao mesmo tempo um importante meio para a interpretação de um salmo, porque dêste modo se torna patente seu verdadeiro intuito.

Disso falaremos a seguir mais detalhadamente.

2

Com especial nitidez destaca-se o gênero que se denomina «Hino». No início desses salmos acha-se o convite de louvar a Deus: «Cantai ao Senhor» (96, 1; 98, 1; 149, 1), «louvai» (113, 1; 117, 1) e «rendei graças» (105, 1; 106, 1; 118, 1; 136, 1) etc. Também a palavra «Aleluia!» é um tal imperativo: «Louvai a Javé». Freqüentemente, estes convites se acumulam, como, p. ex., no início dos Salmos 33 e 105.

33

Esses imperativos devem ser compreendidos, ao pé da letra, como convite dirigido aos demais participantes do Culto, de juntarem suas vozes em canção de louvor. Isso se torna peculiarmente claro em alguns salmos os quais ainda deixam transparecer que se destinavam para o canto alternado entre o cantor-solista e a comunidade, p. ex. Salmo 136, onde a congregação responde a cada versículo: «porque a sua misericórdia dura para sempre». Às vêzes, também citam-se os instrumentos, com os quais deve ser acompanhada uma canção, p. ex. SI 33, 2 e 3 e S 150, 3-5.

Após essa «introdução» do hino, começa a parte principal com um acentuado «porque», p. ex. 33, 4; 98, 1; 135, 4. Este «porque» também se expressa na frase muito freqüente: «porque a sua misericórdia dura para sempre». Introduz o conteúdo propriamente dito do hino, e menciona o motivo porque Deus deve ser louvado. É característico para o hino que não relata uma determinada ação de Deus, realizada no momento presente, mas que expõe descrevendo o procedimento e o agir de Deus para com o mundo e os homens. No hebraico, isso se processa, freqüentemente, por meio de particípios traduzidos, geralmente, por orações relativas, p. ex. Sl 113, 5-9 ou SI 136, 4 ss: «O que opera grandes maravilhas -- que com entendimento fêz os céus -- que estendeu a terra sôbre as águas» etc.

O conteúdo dêste «louvor expositivo» forma o agir de Deus como Criador e como Senhor da história. Na maioria dos casos, há entre ambos os predicados uma transição imediata. As declarações sôbre Deus, o Criador, conduzem para aquela sôbre seu agir na história, porque a história era para Israel o lugar, onde experimentara, de modo mais imediato e enérgico, a ação de Deus como sendo o Senhor.

O hino, porém, não apenas discorre sôbre o que toca o mundo inteiro ou todo o povo, mas fala também do agir de Deus com o indivíduo. Assim lemos, em SI 113, que o trono de Deus está nas alturas, mas que Ele se inclina para a profundidade, ergue do pó o desvalido e faz subir o humilde. Aqui a experiência de muitos fiéis individuais que provaram o auxílio e a salvação de Deus, é resumido no mencionado louvor expositivo.

34

Desta forma, o hino é orientado para a ação de Deus em sua totalidade; tem, portanto, seu lugar cultual nas reuniões festivas de toda a congregação.

De caráter bem diferente e muito mais pessoal é, ao invés disso, o louvor de Deus no «Salmo de ações de graça». Neste, o salmista relata sôbre como Deus o livrou de uma determinada necessidade premente. Primeiramente, êle expõe, mais uma vez, a situação angustiante em que se achava e, em seguida, conta de como clamou a Deus por socorro e como o Senhor ouviu sua súplica e o salvou (p. ex. SI 18; 30; 116). Nunca, porém, o salmo termina com a descrição do salvamento, mas sempre é mencionado, no fim, o firme propósito do salmista de louvar a Deus por estes seus feitos. Com isso não se refere a uma oração pessoal «privada», de um só, mas, sim, este «louvar» sempre sucede na presença da congregação: É transmitido a outros, e assim se transforma em Kerygma (pregação). Portanto, também o hino de graças tem seu lugar no Culto; talvez se deva pensar, no caso, em solenidades festivas especiais, por ocasião das quais a pessoa salva de necessidade oferecia o sacrifício de gratidão que antes havia prometido a Deus.

3

Ao lado dos salmos nos quais o crente do Antigo Testamento rendia louvores a Deus, temos um número considerável de «Lamentações». Por meio destas, o salmista apresenta seu sofrimento a Deus. A situação do lamentador é descrita, muitas vêzes, em têrmos «fortes», até fortes demais para nosso sentimento, p. ex.: faço nadar o meu leito, de minhas lágrimas o alago (6, 6), meus ossos se desconjuntaram ... (22, 14 s) etc. E a própria tribulação a que se vê expôsto é descrita como uma profunda perturbação da alma (6, 3 s), como ameaça por adversários (S 7) que aparecem em forma de perversos opressores (17, 9) ou de feras (touros e cães) que o espreitam com intenções malignas (22, 13 ss), e até sente-se entregue à morte (6, 5; 22, 15). Muitas vêzes a lamentação culmina numa pergunta quase desesperadora: «Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?» (22, 1).

35

Entretanto, é estranho: Se procurarmos ficar sabendo, de um dêstes salmos, algo mais concreto sôbre a situação verdadeira do salmista, ou pelo menos responder à pergunta se se trata de uma doença ou qualquer outra necessidade na qual se encontra, não chegamos, na maioria dos casos, a um resultado inequívoco. A razão disso é que as lamentações, apesar de toda rica pintura com que apresentam a situação angustiosa, não são, na verdade, orações «individuais», proferidas só uma vez em situação bem determinada, mas se destinavam para o uso «litúrgico», quer dizer, foram usadas, sempre de novo, quando alguém queria lamentar no templo suas necessidades a Deus. Para tal finalidade, porém, eram apropriadas, justamente por se valerem de expressões que, em última análise, permanecem vagas e indefinidas.

Os salmos de lamentação terminam, amiúde, com o voto do salmista de louvar a Deus, caso for salvo (7, 18; 13, 6). Originalmente, esse louvor, de certo, estava coligado com uma oferta, e nos «hinos de ações de graças» nos são transmitidos salmos que foram cantados por ocasião de tais ofertórios (v. V, 2).

Agora, o que chama a atenção é que por raras vêzes, já na própria lamentação vibram sentimenos que por sua natureza fazem parte do hino de gratidão: «Apartai-vos de mim. . ., o Senhor ouviu a voz do meu lamento» (6, 8 ss; cf. em especial o fim do SI 22, a partir do v. 23!). Como devemos, então, entender esta mudança repentina, que passa do lamento para o agradecimento? Aqui novamente nos ajuda o conhecimento que os salmos têm seu lugar na situação cultual. Nesta altura, o sacerdote assegurava, em nome de Deus, ao fiel, o atendimento de suas preces, e à essa afirmativa respondia então o salmista com seu louvor e sua gratidão.

Ao lado dos salmos de lamentação do indivíduo, temos outros nos quais o povo apresenta a Deus suas necessidades (p. ex. SI 44 e 80). Sabemos de outras passagens do Velho Testamento que em tempos excepcionais de desgraças ou de calamidade que atingiam o povo inteiro, era programado um jejum (p. ex. 1 Rs 21, 9 ss; Is 20, 26; 1, Sm 7, 6). Por ocasião de tais dias de jejum, essas «lamentações coletivas» têm seu lugar vivencial («Sitz im Leben»).

36

Ainda várias outras ocasiões refletem-se nos salmos. Pelo ensejo da «intronização de um rei» foram cantados salmos, p. ex.: durante os atos cultuais, especialmente programados para esta festa, como se vê nos SI 2; 72; 110 etc. Outros salmos anunciam que Deus mesmo se tornou rei. Assim lemos no SI 47, 8: Deus se tornou rei (essa é a tradução correta!), semelhantemente em SI 93, 1: 96, 10; 97, 1; 99, 1. Podemos presumir que estes salmos fazem parte da solenidade da «intronização de Javé», ocasião na qual era celebrada, sempre de nôvo, sua posse de govêrno sôbre o mundo inteiro.

Assim sendo, os salmos nos proporcionam uma introspecção nos detalhes da vida cultual no antigo Israel, a respeito da qual não conhecemos outros pormenores.

37


 

 

VI

OS ESCRITOS RESTANTES

Em 1 Rs 4, 2 ss é exposta a sabedoria de Salomão. É comparada com a sabedoria dos «filhos do oriente» e dos egípcios. E então é dito que Salomão compôs grande número de provérbios e cânticos e discorre nestes sôbre as plantas e animais de toda espécie e tamanho. Tal «sabedoria,de natureza» encontramos de fato nos «Provérbios de Salomão», notadamente no cap. 30, nos versículos 18-19 e 24 ss estão coligadas coisas surpreendentes e notáveis da natureza que chamam a atenção da pessoa que observa e reflete. Essas, alias, são apenas algumas pequenas amostras da multiplicidade dos provérbios e cânticos atribuídos à autoria de Salomão. Entretanto, permitem fazer-nos uma idéia de que espécie possam ter sido. E de fato, nesse ponto a sabedoria de Salomão era «maior» do que a dos sábios babilônicos e egípcios, porque dêstes conhecemos tais coleções de observações da natureza apenas na forma de listas que, por assim dizer, apresentam um inventário do saber dos diversos ramos; Salomão, ao invés, achou uma forma nova em seus provérbios.

A par desta «sabedoria de natureza» os «provérbios» contêm, antes de tudo, sabedoria de vida. Há um sem número de breves sentenças que expressam qualquer experiência ou ensinamento para a vida, em parte têm simplesmente a forma de uma afirmação.

Se continuamos lendo, p. ex. do cap. 10, 1 ss em diante, encontramos por capítulos inteiros, exclusivamente, tais sentenças que simplesmente dizem como é: «O filho sábio alegra a seu pai, mas o filho insensato é a tristeza da sua mãe» etc. Formam o resultado de uma experiência vivencial trasmitida de geração à geração.

Tais experiências naturalmente foram coligidas e transmitidas com objetivo de servir de orientação às gerações seguintes e de proporcionar-lhes ensinamentos para sua própria vida. Assim é compreensível que, a par da simples afirmação, também se acha a forma de exortação. Nesta se evidencia a tradição de uma geração à outra com clareza especial quando é admoestado o «filho» de escutar a instrução de seu pai (1, 8,

38

10. 15; 2, 1 e outros). Essa instrução e admoestação está arraigada inteiramente na experiência e a ela recorre sempre novamente para motivá-las.

Quão alto foi o valor atribuído a essa sabedoria, patenteia-se no fato de se tornar a própria sabedoria, várias vêzes, objeto de reflexão. Freqüentemente, é personificada como exortador que clama (1, 20; 8, 1), como irmã (7, 4), como anfitriã (9, 1) etc., e no cap. 8 canta-se até um hino à sabedoria que já existia antes da criação (vers. 22 ss).

Trata-se, nesta «literatura sapiencial», do homem e de como deve viver para que possa ser chamado de «bom». (A palavra «bom», resp. «melhor do que» surge com extraordinária freqüência nos Provérbios). Esta pergunta pela vida «boa» é de modo algum sem relação com a fé em Deus, do qual no restante do Antigo Testamento é falado amiúde com tanta ênfase. Antes há -- especialmente nos capp. 1-9 -- numerosas exortações para o «temor de Deus». Também esse, porém, é visto, neste contexto, da parte do homem: Quem teme a Deus e o reconhece, a este o Senhor endireitará os caminhos (3, 6). Neste sentido o temor do Senhor é o princípio da sabedoria (1, 7; 9, 10).


2

Também alguns salmos fazem parte da «literatura sapiencial» no Antigo Testamento. Assim os Salmos 127 e 133 são breves coleções de provérbios de sabedoria; SI 49 é um poema de sabedoria mais extenso. Nos SI 1; 128 e outros é exposta a idéia sapiencial que o piedoso e temente a Deus irá bem na vida, idéia essa que também é predominante no SI 37.

Mas esta doutrina da sabedoria havia de, necessariamente, cair em tensão com a realidade da vida. Em SI 37, já está surgindo a pergunta: como explicar que o ímpio tantas vêzes vai bem, enquanto o piedoso, o «justo» tem que sofrer? O Salmo citado acentua que isso apenas aparentemente é a verdade, mas que a experiência sempre de novo comprova o contrário (vers. 25 e outros). Mas em outras partes este problema rompeu com toda a veemência (cf. SI 73!).

Primeiramente no livro do «pregador» (Eclesiastes). Lendo este livro em seu nexo integral, nota-se logo que o autor pro-

39

vêm inteiramente da tradição da sabedoria, na forma como essa se fixou nos provérbios. Mas essa tradição tornou-se problemática para êle. «Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho?» (Eclesiastes 1:3) é logo de saída sua pergunta cética. E então contrapõe sua experiência: é o mesmo destino que sucede aos sábios e aos estultos (2, 14 b). Para que, pois, tudo isso? E dêste modo seu lema: tudo é vaidade! passa por todo o livro. Não desespera -- mas fica aborrecido. Tudo é vaidade e correr atrás do vento; por isso não há melhor para o homem que contentar-se, em comer e beber -- eis sua sorte (5, 17). Mesmo o olhar para Deus não ajuda ao «pregador». «Deus está nos céus, e tu na terra!» (5, 1). O homem não pode descobrir o sentido das obras de Deus (3, 11). Mas também, com isto se conforma.

Bem diferente é Jó! Também no livro de Jó transparece em toda sentença a proveniência da tradição sapiencial. Não só os «amigos» de Jó defendem, em sempre novas arrancadas, as doutrinas tradicionais da sabedoria e tentam convencer a Jó que ainda continuam em vigor (4, 7; 8, 8 e 10). Também Jó mesmo provém desta tradição -- porém ela se-lhe ruiu, bem como ao «pregador». Jó, ainda o formula com maior severidade: Deus destrói ambos, o íntegro como o perverso (9, 22)! Mas Jó não resigna, pelo contrário, se revolta. Por paradoxal que pareça, êle mesmo luta, em última instância, pela validade do princípio estabelecido, pela doutrina da sabedoria, que o «justo» há de passar bem. Acusa a Deus que Êle lhe sonega seu direito e que o faz culpado à força e injustamente (9, 21. 29 ss). Entretanto, ainda continua esperando por sua justificação por parte de Deus -- mesmo se for após sua morte, assim que «destituído de sua carne» possa ver a Deus e alcançar desta maneira sua justificação quase póstuma (19---25 ss). Conseqüentemente, terminam também os discursos de Jó com uma última grande confissão de sua inocência (cap. 31).

A «solução» da pergunta de Jó sucede no encontro do próprio Deus com êle. No cap. 38 1-40,14, (o resto do discurso de Deus parece ser um acréscimo posterior), Êle se defronta com Jó. E neste encontro, Jó tem que reconhecer que a pergunta da sabedoria, da qual partiu, não é adequada à realidade de Deus. Se se fazem dessas regras de experiência da

40

vida uma lei à qual também Deus é sujeito, elas se tornam uma expressão de auto-suficiência soberba e arrogância do homem. Isso Jó confessa (42, 1-6), e, rendendo-se, dêste modo, totalmente a Deus, êle é «justificado» -- completamente diferente do que havia imaginado.

Na terceira parte do Antigo Testamento hebraico, chamada de «escrituras», segue depois dos três grandes livros: Salmos, Jó e Provérbios, uma coleção de cinco escritos menores: Rute, Cantares, Eclesiastes, Lamentações e Ester. Estão reunidos sob a denominação «Megilloth» = rolos, pois representam rolos de festas que eram lidos por ocasião da festa da semana (colheita); Cantares, por ocasião da Páscoa judaica; Eclesiastes, por ocasião da festa dos tabernáculos; Lamentações, por ocasião do jejum observado em memória à destruição de Jerusalém, e o livro de Ester, por ocasião da festa do Purim.

Quanto ao conteúdo, estes cinco livros menores são de espécie muito diferente. Já vimos que o livro do pregador (Eclesiastes) é um rebento tardio na árvore da literatura sapiencial, que está em contradição com a tradição, sem poder separar-se dela (parágr. VI, 2).

As Lamentações são uma coleção de cinco poemas independentes que, todos êles, lamentam o destino de Jerusalém em 598 resp. 587 a.C. O cap. 3 mostra, o estilo da «lamentação individual», como o conhecemos dos salmos (v. parágr. V, 3). O salmista se dedica inteiramente ao lamento, mas também sabe que a misericórdia e fidelidade de Deus ainda não tem fim; renovam-se a cada manhã (vs. 22 ss). Igualmente, a «lamentação coletiva», cap. 5, termina com súplica confiante ao Deus que reina eternamente (v. 19). Os capítulos restantes descrevem a catástrofe na forma de uma canção fúnebre, que aqui, como acontece ainda mais vêzes no Antigo Testamento, é transferida para o plano de acontecimentos políticos.

O livro de Rute é uma pequena narração quase idílica, que se poderia chamar, segundo seu caráter literário, de «novela» (cf. parágr.l, 3). Retrata a fidelidade de uma jovem esposa que é, ela mesma, de descendência moabita, mas após a

41

morte de seu marido, fica junto com sua sogra israelita pelo «levirato», isto é, pelo casamento com um parente de seu marido, conforme é prescrito em Dt 25, 5 ss., afinal ainda chega a ser mãe. Seu filho, porém, é o avô em linha direta de Davi (4, 17). Este parentesco é certamente a razão por que a presente narração é transmitida no Antigo Testamento.

Sôbre os Cantares (o «cântico dos cânticos») foram conjecturadas as mais diversas e contraditórias interpretações. Acaso, é um cântico de amor, de caráter inteiramente secular, ou -- melhor dito -- uma coleção de canções de amor? Ou, porventura, devem ser explicadas alegoricamente as figuras que aparecem em cena, referindo-as à relação de Javé e Israel ou à de Cristo e a Igreja? Ou, acaso, ainda haverá atrás de tudo um sentido cultual secreto, assim que o cântico tivesse sua origem nos ritos pagãos de fertilidade, nos quais as «núpcias sacras» tiveram certa importância? Essas e ainda outras explicações foram tentadas; porém, até hoje não é possível uma decisão realmente segura. Entretanto, o fato que o livro foi incorporado ao cânone das Sagradas Escrituras, deve-se, em todo caso, a uma explicação alegórica que nêle mesmo não é expressamente mencionada.

O livro de Ester, enfim, é uma narração de caráter quase romântico, proveniente da diasporá judaica na Pérsia. É narrado como dois judeus ascendem a honras máximas na côrte persa. Os dois conseguem impedir uma perseguição planejada dos judeus e, em vez disso, eliminar os perseguidores. Em memória disso, é instituída a festa de Purim (9, 20 ss). Interessante, nesse conto, é seu caráter completamente profano. O nome de Deus não é mencionado em parte alguma, mesmo não lá, onde se poderia esperá-lo (4, 14). Conseqüentemente, também foi discutida por muito tempo, sua integração no Cânone

4

Entre as «Escrituras», a terceira parte do Antigo Testamento hebraico, acha-se também o livro de Daniel. Foi escrito semente quando a coleção dos livros proféticos já estava encerrada, razão por que não foi mais aceito nela. O livro se subdivide, nitidamente, em duas partes: Cap. 1-6 contêm

42

narrações, cap. 7-12, por sua vez, visões proféticas. As narrações relatam principalmente da constância e perseverança de homens judeus num ambiente pagão. Muitas vêzes, essa aprovação passa por sofrimentos a tal ponto que, em alguns casos, pode-se falar de narração martiriológica. Nelas se expressa uma piedade corajosa que não se deixa afastar por nada de sua fé, mas a qual também sabe que Deus pode salvar de todo perigo.

As visões nos capítulos 7-17, têm, todas elas, o objetivo de interpretar o futuro, são «apocalipses» (revelações). A história é, nesta parte do livro, encarada como um grandioso decurso predestinado por Deus, e cujo fim já é fixado. Não qualquer um, porém, é capaz de verificar essas conjunturas, mas só aquêle a quem Deus revelar seu plano, no caso, ao apocalíptico que fala nesses capítulos.

Os livros das Crônicas, de Esdras e de Neemias formam, nessa seqüência, uma obra historiográfica coerente, a «cronística», que encerra o cânone do Antigo Testamento. É, em grandes trechos, uma exposição paralela à «obra historiográfica deuteronomistica» (Josué até Reis), porém com uma orientação inteiramente própria. Foi chamada por alguém de «História eclesiástica de Jerusalém». Sob esse aspecto apresenta uma história de Judá e de Jerusalém desde a coroação de Davi até à instituição e consolidação da comunidade cultual pós-exílica de Jerusalém.

A obra foi escrita numa época em que a comunidade judaica achava-se em conflito com poderes que ameaçavam a pureza da fé e do Culto: com os samaritanos, que em fins do século IV a. C. instituíram um culto independente no monte Garizim. Para enfrentá-los era preciso guardar firmemente que Deus escolheu o templo de Jerusalém por lugar onde queria ser venerado e que o reinado de Davi e seus descendentes era ligado, indissoluvelmente, com esta escolha -- e isso significa que no tempo do cronista só a comunidade cultual em Jerusalém era a sucessora e portadora legítima dessa escolha.

A partir desse aspecto, escreve o cronista sua história. Se bem que usa como fonte a obra historiográfica deuteronomística, passa por alto tudo o que lhe é, dentro de seu contexto, de pouca importância, particularmente toda a história do reino do norte desde a divisão do reino até sua destruição. Em substituição, acrescenta vários traços peculiares que se

43

referem especialmente à posição dos reis para com o templo e o culto.

Para o tempo após o exílio, o cronista, igualmente, dispôs de fontes. Uma delas, que se distingue com claridade, especial, é uma crônica de Jerusalém escrita em língua aramaica (Esdras 4, 6-6, 15), e, além dessa, as «Memórias» do governador Neemias. O auge da exposição dêste último período forma a leitura da lei e o comprometimento do povo de guardá-la (Ne 8-10).

Nessa lei se fundamenta a comunidade dos tempos póstumos do Antigo Testamento. Proporcionou-lhe a base sólida na qual firmemente apoiado pôde afastar tôdas as heresias. Mas, ao mesmo tempo, tornou-se iminente o perigo de tomar o cumprimento da lei por caminho para a salvação -- um perigo do qual Cristo, sendo «o fim da lei», livrou sua comunidade.


 


Epílogo


A significação do Antigo Testamento

para a comunidade cristã


No presente livrinho tentamos formar uma idéia da longa e movimentada história do Antigo Testamento. Ela se estende desde os primórdios de Israel, antes de se estabelecer na Palestina, até além do tempo da comunidade judaica pós-exílica, nos últimos séculos antes do nascimento de Cristo.

Qual, porém, é a significação de tudo isso para a comunidade cristã? Pois ela vive do Nôvo Testamento, do Evangelho de Jesus Cristo. Será que ela ainda precisa do Antigo Testamento? Não é para ela, assunto encerrado?

Para obtermos uma resposta a esta pergunta, precisamos trazer à nossa memória a atitude assumida pela comunidade cristã nos seus primórdios para com o Antigo Testamento. Com a maior naturalidade ela fêz uso do Antigo Testamento e o considerou sua «Bíblia».

Para isso não havia apenas o motivo externo de terem sido os primeiros cristãos, todos êles, judeus. Exclusivamente à luz do Antigo Testamento, tornou-se compreensível que Jesus era o «Messias», o «Cristo». A prenunciação messiânica dos profetas e toda a história de Deus com seu povo foi cumprida em Jesus Cristo. Era impossível separá-lo desta história. Todo o Antigo Testamento foi lido com os olhos voltados para êle.

Precisamos, portanto, procurar entender o que significa a afirmação que o Antigo Testamento se cumpriu em Jesus Cristo. Temos, em primeiro lugar, as profecias que falam diretamente da vinda do Messias. Anunciam um rei da estirpe de Davi, que seria um rei inteiramente segundo a vontade de Deus e que estabeleceria o reino de Deus na terra. Essas profecias, porém, não são freqüentes, e de modo algum pode-se afirmar que elas formassem o conteúdo decisivo do Antigo Testamento. E, sobretudo, cumpriram-se de maneira bem diferente do que o Antigo Testamento esperava: Jesus não apareceu como um rei, não restabeleceu a independência e grandeza nacional de Israel; pelo contrário, morreu, injuriado, sôbre a cruz. Neste acontecimento, cumpriram-se muito antes

45

as palavras sôbre o Servo sofredor de Deus, em Is 5 3, mas estas são bem isoladas no Antigo Testamento.

As profecias do Antigo Testamento que parecem ser cumpridas na vida e na Paixão de Jesus, portanto, formam apenas uma ponte estreita para o Nôvo Testamento. Mas talvez haja ainda em outros trechos referências indiretas a Jesus Cristo? Esta idéia forma a base da interpretação «tipológica», praticada na comunidade cristã em todos os tempos, inclusive, ainda em nossos dias. Ela percebe no Antigo Testamento prefigurações da história de Cristo, retratos sombreados daquilo que o Novo Testamento relata e prega de Cristo. Mas, procedendo-se desta maneira, é introduzido ao Antigo Testamento, pelo Novo, um sentido secreto, e a pergunta se impõe se o Antigo Testamento, submetido a esta exegese, de alguma maneira ainda possui uma significação própria, independente, se é que apenas diz o mesmo como o Novo Testamento, somente na forma provisória, semelhante a uma sombra ou silhueta mal distinta.

Que é o peculiar, o próprio do Antigo Testamento? Se perguntarmos as próprias escrituras vetero-testamentárias, a resposta é bastante clara: o decisivo é o agir de Deus na história. Israel concebe sua história como história com Deus; é-lhe, propriamente, impossível falar de Deus de outra maneira do que falar do seu agir na história: Deus se revela para Israel na história. As mais antigas confissões de fé tratam dos feitos de Deus na condução do povo para fora do Egito e para dentro da terra prometida; as primeiras grandes obras da literatura israelense expõem a história de Deus com Israel no seu conjunto coerente; os profetas interpretam o agir, o presente e o futuro, de Deus na história, e a comunidade pós-exílica está empenhada em conhecer o plano de Deus na história e, partindo desse, dominar o presente e o futuro.

Se, pois, perguntamos pelo significado do Antigo Testamento para a comunidade cristã, levantamos com isso, a pergunta pelo significado desta história. Não só determinados trechos delimitados desta história ou palavras isoladas do Antigo Testamento têm importância para nós, mas, sim, toda a história de Deus com Israel; e este significado não reside num caráter «profético» ou prefigurativo desta história, mas no fato que Deus se revela nela.

46

E justamente neste ponto reside a conexão entre o Antigo e Novo Testamento: Deus se revela na história de Israel até à vinda de Jesus Cristo. Esta história de revelação é uma unidade. Jesus Cristo é seu fim, seu alvo -- mas não pode ser tirado dela e não é compreensível sem ela. O Antigo e o Novo Testamentos, como testemunho da revelação histórica de Deus, formam uma união indissolúvel.

A comunidade cristã está inserida nesta história da revelação. No acontecimento, referido pelo Novo Testamento, a revelação de Deus é extensiva a todos os homens.

Aquilo que de momento parecia valer só para o povo de Israel vale agora para todos os povos. O cumprimento do Antigo Testamento consiste nisto: a palavra de Deus dirigida a Abraão «em ti serão benditas todas as famílias da terra» (Gn 12,3) é agora cumprida. E ainda, que, hebreus e cristãos seguiram caminhos diversos, permanecem unidos pelo fato que o Antigo Testamento representa para ambos o fundamento da fé.

Fim do livro «A Formação do Antigo Testamento» por Rolf Rendtorff


Edição Eletrônica pelo Coletivo Periferia
http://www.oocities.org/projetoperiferia
Projeto Periferia, Travessa do Anfiguri 47, CEP 08050-570, S. Miguel Pta., S.Paulo-SP, Brasil
railtong@gmail.com



voltar
home