De Modern Theology, 13 de julho de 1997, p 371-397

 

HOMOSSEXUALIDADE
E PRÁTICAS MATRIMONIAIS


Parte I
DAVID McCARTHY MATZKO





Título original da edição inglesa:
Homosexuality and the Practices of Marriage:
http://www.jesusradicals.com/main/library/matzko/homosexuality.html

Edição em português:
http://www.oocities.org/projetoperiferia5/homossexualidade1.htm

Tradução: Railton de Sousa Guedes
Coletivo Periferia



A homossexualidade é um assunto controverso para a igreja. A presença de crentes gays e lésbicas induz uma boa parcela de dissonância sobre as práticas tradicionais do matrimônio e sobre como responder ao fato de um número cada vez maior de pessoas aderir solidamente a tais uniões sexuais. Essa dissonância não alcançou um estágio crítico por razões exclusivamente relacionadas à homossexualidade. A própria prática do matrimônio está em crise, e para muitos, a questão da homossexualidade provê bases para lançar ataques contra as práticas matrimoniais de nossa cultura liberal. Quando estes defensores pressupõem uma simples conexão de causa-efeito entre homossexualidade e tempos de abandono do matrimônio, eles se enganam. Mas estão corretos em assumir que justificar uniões do mesmo sexo requer repensar o significado do matrimônio heterossexual. Um reformulação parece ser inevitável. Por exemplo, a maior parte daqueles que justificam uniões entre pessoas do mesmo sexo fazem isso elevando a finalidade do casamento a uma posição primária e relevando seu propósito criativo. O laço interpessoal é compreendido como a essência do casamento, tanto em termos hetero como homosexuais. [1]

Esse conjunto de argumentos apóia o papel das uniões entre pessoas do mesmo sexo dentro das práticas matrimoniais. Mas, estranhamente, silenciam se o matrimônio atende às particularidades das uniões do mesmo sexo. Conceitualizar matrimônio em termos de homossexualidade é, naturalmente, inevitável -- tanto para detratores como para defensores da homossexualidade. Enquanto os defensores enfatizam bens específicos para uniões do mesmo sexo, os detratores se esforçam em impor inovações para realçar os aspectos particularmente heterossexuais do matrimônio. Neste sentido, tanto a homossexualidade como a heterossexualidade trazem algo novo. O casamento, como outras práticas da igreja, está ligado às práticas tradicionais, e está mudando,
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os argumentos do presente ensaio não toma partido de nenhum dos lados nesse debate em torno do matrimônio. Esse ensaio mantém uma visão conservadora, na medida em que apoia as duas finalidades, amor conjugal e procriação, como a melhor articulação dos benefícios [1b] e das práticas matrimoniais. A composição, portanto, não está relacionada a reestruturar uma teologia de matrimônio. Seu ponto de partida é mais prático. O presente ensaio pressupõe o fato de certas uniões sexuais já estarem funcionando dentro das comunidades enquanto matrimônios. Tais pares de gays e lésbicas apoiam e são apoiados pelas práticas matrimoniais e familiares da comunidade como um todo. Com tais uniões já estabelecidas, a tarefa não é reformular o matrimônio de forma que gays e lésbicas possam aderir. Em vez disso, a tarefa é entender como e por que essas uniões sexuais se ajustaram tão bem, a despeito daqueles tantos bons argumentos lançados contra elas.

O presente ensaio tem quatro seções. A primeira aborda o assunto das uniões homossexuais com um exemplo concreto, um par lésbico e sua filha, tal exemplo, no desenvolver da seção, é tido como uma anomalia. Alguém pode compreender o conceito de anomalia como uma insinuação de que este par lésbico representa uma união distorcida, mas tal não é o propósito aqui. Pelo contrário, o conceito provê alguns meios para indicar o inesperado (contudo natural) ajuste entre este par e as práticas matrimoniais preponderantes na comunidade heterossexual a que elas pertencem. Anomalia é um conceito útil porque além não comportar categorias normativas, também não comporta concepções habituais de desvio. Fica no meio termo. O aparecimento anômalo requer uma decisão sobre quais categorias usar para chegar à melhor avaliação de suas características. A idéia de uma anomalia, então, oferece alguns meios para acentuar a norma do matrimônio heterossexual, ao mesmo tempo em que abre a questão sobre o estado de nossas duas mulheres e de sua filha. Se as vidas delas estão situadas entre claras categorias de norma e desvio, de qual lado da divisão se situam? Se a união delas é constituída dentro e pela prática matrimonial de uma comunidade, permanecerão ainda de pé os argumentos típicos contra uniões de homossexuais? As três seções subseqüentes desse nosso ensaio aborda tais questões, cada uma delas lidando com uma diferente objeção à homossexualidade. As objeções são feitas enquanto defesa do bem público (seção 2), em termos da imoralidade do ato homossexual em si mesmo (seção 3), e por meio de textos bíblicos particulares (seção 4). Eu considero os argumentos mais fortes de cada objeção e contra-argumento que em seus próprios termos eles são incapazes de excluir o caso que tomamos como teste. Eu sustento que o matrimônio provê uma categoria apropriada não para uma compreensão total mas para a compreensão de determinadas uniões do mesmo sexo.

 

A Anomalia


Imagine duas mulheres e uma criança sentadas juntas em meio a uma congregação durante a missa de domingo. Elas compartilham a paz de Cristo com as pessoas ao redor, recitam o Sanctus, anunciando que Cristo morreu, ressussitou, e que voltará novamente, e


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elas, com o resto das pessoas se dirigem para o altar para repartir o pão. A cena é comum, duas mulheres e uma jovem menina. Elas podem ser mãe, filha e uma amiga, ou cunhada, mãe e filha. As possibilidades são muitas, sem nada de extraordinário em suas relações. Agora, imagine que as três voltem juntas para casa; comam, cochilem um pouco, e passem a tarde brincando e executando tarefas domésticas que deixaram para fazer durante os fins de semana. Quando a noite chega, a criança vai para o quarto dela para dormir, e as duas mulheres vão para o quarto delas, deitam-se na mesma cama, após leituras, conversas, abraços, beijos, carícias, ficam com sono e dormem. Pela manhã, as três se entregam a seus afazeres, vão para a escola e trabalham, ao anoitecer voltam para casa como todo mundo faz, no que diz respeito à criança, é bem cuidada, e sustentada por uma relação de intimidade, confiança, e cuidado mútuo.

Os elementos desta pequena história são incongruentes? Talvez a imaginação dos leitores foram unificadas no começo ordinário mas divididas no fim. A cena na igreja se coaduna com os movimentos no quarto e a intimidade sexual das duas mulheres? Alguns leitores podem estar inclinados a responder que a transição não é estranha porque eles imaginaram as duas mulheres e uma criança enquanto uma família, na medida em que apóiam suas vidas de uma forma semelhante ao vigamento familiar mais comum com três pessoas, homem, mulher, e criança. Outros argumentarão contra esta atitude amigável nas relações lésbicas. A aparência de família é clara. Mas os adúlteros e molestadores de crianças também dão uma aparência de família, ao passo que seguramente não podem ser tidos como tal. Mas qualificar o trio de nossa história de família constitui um uso acrítico da palavra.

 

Por intuição ou arrazoamento, alguns afirmarão que certos «bons costumes» são sustentatos por esta família composta por mulher, mulher e menina, enquanto que outros afirmarão que os costumes [1b] essenciais à convenção do matrimônio são negados pela própria natureza dos atos sexuais delas. Se por um lado, tal relação sustenta fidelidade, cria uma firme convenção, totalmente reforçada com papéis de parentesco, e complementada com o amor, o cuidado, e a educação da criança. Por outro lado, a relação delas não é de forma alguma procriativa e não reflete a reciprocidade natural homem e mulher na ordenação procriativa. É provável que ambos os lados do debate ordenem temas e passagens bíblicas, reivindiquem bases fundadas em uma antropologia teológica, e evidências anedóticas. Minha intenção é ser responsável pelos argumentos básicos de ambos os lados. Apesar de práticas cristãs e teologias morais tradicionais de longa data colocarem-se frontalmente contra este par lésbico; estas duas mulheres, junto com outros pares, aderiram à fé, estão firmes e estabelecidas, e criam uma criança. Mesmo a união delas sendo informal, e faltando-lhes o consentimento explícito da comunidade de fé que freqüentam, o par vive bem na graça de Deus, um sinal do pacto divino com o mundo. O que fazer? Nós que estamos firmados na tradição cristã? Como lidar com este fenômeno?

 

Nosso par lésbico e a filha delas constituem uma anomalia diante da comunidade que freqüentam. Uma anomalia implica em categorização, e chamar determinada união


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homosexual de anomalia dá margem à procura de que tipo de categoria é mais apropriada para situar aquele relacionamento em particular. Sua base é o mero prazer? É fornicação? É antinatural? Representa uma forma imatura ou mal-ajustada de expressão sexual? É um matrimônio? Cada uma destas cinco opções também poderiam ser usadas para descrever relações heterossexuais. Esse é precisamente o ponto. Nem todas as atividades heterossexuais são classificadas da mesma forma, e algumas relações lésbicas e gays nos exigem que façamos determinações difíceis sobre qual de nossas categorias típicas elas se encaixam. No moderno mundo Ocidental, acredita-se que o desejo para a intimidade sexual emerge da orientação sexual que a pessoa teve. A noção da orientação não só salienta o mesmo uso sexual dos órgão genitais como também considera um profundo desvio caso ocorra o contrário (na pessoa, não no ato), mas também criou a possibilidade de pessoas afirmarem sua identidade como homossexuais. Além dessa idéia de orientação, determinadas intimidades sexuais, são vistas como um ato, ou expressão de desejo excessivo ou mesmo uma forma de sexo não-procriativo, entre outros.[2]  Categorias são essenciais à compreensão. Se certas relações são chamadas de anomalias, então há algo nelas que gera categorias não muito definidas.

Dizer que certo relacionamento gay ou lésbico é anômalo garante não apenas seu desencaixe do paradigma normativo, como também livra-o de ser avaliado como corrupção e abuso da norma. A anomalia, então, induz uma confusão de categoria. Se nossas categorias estabelecidas são círculos e quadrados, como podemos colocar um triângulo ao lado de um quadrado e um círculo? Alguém pode responder que a resposta óbvia seria criar uma terceira categoria, mas esta resposta confunde a perplexidade de uma anomalia real com a claridade do círculo e o exemplo do quadrado. Se os quadrados são normativos, o triângulo equivaleria ao odioso círculo? São os triângulos suficientemente semelhantes a um quadrado para que se tornem aceitaveis, embora não paradigmais? Considere outro exemplo. Sem contar as cartas de um jogo de baralho, é possível decidir se um dois vermelho de paus deveria ser considerado paus, copas, ou ouro? Não. Nós contamos as cartas e determinamos um lugar para o paus vermelho realçando seu desenho de paus (lida como carta preta) ou realçando sua vermelhidão (lida como copas ou ouro).

Estes exemplos não estão muito distantes do tratamento da igreja ao matrimônio. Se assumimos que determinado matrimônio é marcado por fidelidade e procriação, então teremos que tomar decisões sobre relações que não incluem estes dois fins básicos. Sobre matrimônio sem filhos, o Catecismo católico diz isto. "Os Evangelhos mostram que esterilidade física não é um mal absoluto." "Absoluto" é um qualificador significante, indicando que a esterilidade impõe um sofrimento que pode ser suportado. Na medida em que o sofrimento está em algum lugar entre o mal e o absolutamente mal, muitos matrimônios sem filhos são sustentados como uniões e mantém o caráter procriativo do casamento. Como? "Eles deveriam se unir com a Cruz do Senhor, a fonte de toda a fecundidade espiritual. Eles podem dar expressão à sua generosidade adotando

 

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crianças abandonadas ou prestando serviços para outros."[3]  É o dois de paus vermelho suficiente diante do resto das cartas de paus de forma que sua vermelhidão é negligenciada contanto que possa funcionar como um dois preto? Parece assim. Por adoção ou serviço generoso para a comunidade, o matrimônio sem filhos, por analogia, sustenta o caráter procriativo do matrimônio em geral. Não cumpre o paradigma básico mas apóia o caso normativo realçando suas semelhanças a uma plena expressão dos fins do matrimônio.

Quando uma união sem filhos, é mantida dentro do contexto do matrimônio, os desafios à fidelidade apresentam um caso mais ambíguo. A infidelidade é mais ambígua porque a união real do matrimônio está em jogo. A finalidade da união não tão elástica quanto a finalidade procriativa. Em Humanae Vitae, por exemplo, a união conjugal, sem parto, é considerada em perigo mais sério do que quando são usados métodos de controle de natalidade artificial.[4]  Muito se escreveu sobre a relação entre os fins unitivos e procriativos do casamento, especialmente em termos da Humanae Vitae.[5]  Para nossos propósitos, a diferença de importância entre os dois é que a procriação pode ser expressa por práticas análogas de serviço e criação de crianças, enquanto que fidelidade não tem nenhuma expressão apropriada. A infidelidade contradiz o caráter teológico do matrimônio como uma firme convenção de íntima auto-doação. Um exemplo de infidelidade começa a ser remediado quando a convenção é reconhecida e é restabelecida. Mas hábitos consistentes de relacionamento extra-matrimonial alcançarão um ponto onde a deslealdade move a relação do par além dos limites do matrimônio. Há um ponto onde a perpétua infidelidade já não pode mais ser mantida dentro do matrimônio e a relação torna-se semelhante à poligamia ou a uma união completamente descompromissada. Um matrimônio que é permanentemente sem filhos ou que suporta um episódio de infidelidade é imaginável, mas um matrimônio marcado por hábitos persistentes de adultério introduz um caso que oscila entre matrimônio e algum outro tipo de relação. Infidelidade persistente descaracteriza o matrimônio.

O propósito de comparar adultério e matrimônios sem filhos vai no sentido de indicar como eles são compreendidos em termos dos seus opostos, os fins de unidade e procriação em matrimônio. Embora ambos contradizem um fim, de certo modo eles podem ser entendidos como não transgredindo os limites providos pela expressão básica de matrimônio. Os sem filhos são capazes de sustentar as finalidades do matrimônio de parentela por outros meios, e o infiel pode ser restabelecido. Mas há limites. A questão para este presente ensaio é se todas as relações gays e lésbicas estão ou não além dos limites dos paradigmas básicos. Todas as uniões do mesmo sexo são uma violação da convenção matrimonial? Algumas são aceitáveis, ou obviamente análogas a ela? A falta relações sexuais em um casamento pode ser suprida por outras práticas análogas? Estas perguntas permanecem abertas, contudo não assumimos aqui que todas as relações do mesmo sexo sejam idênticas.

Algumas uniões gays e lésbicas apresentarão uma anomalia em um grau que não se encaixa em qualquer vigamento tradicional para o matrimônio ou padrões


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típicos de desvio comportamental. O conceito de anomalia em si pode criar confusão. A idéia de anomalia não está sendo usada aqui para argumentar que uniões homossexuais sejam uma abominação, mas para reconhecer que algumas uniões gays e lésbicas são bem apropriadas a uma prática cristã do matrimônio. A expectativa que todas as uniões homossexuais são estranhas ao matrimônio é que soa como uma anomalia. Em outras palavras, os argumentos deste presente ensaio pressupõem que as relações gays e lésbicas não são paradigmais, mas que algumas causarão dissonância conceitual para aqueles que assumem uma diferença irredimível entre homossexualidade e matrimônio. Esperançosamente, a dissonância foi criada pela história introdutória das duas mulheres e a jovem menina. As próximas três seções considerarão vigamentos para avaliar as relações delas e as práticas de família.

 

Objeção Um: O Bem Público


Em 1994, o Ramsey Colloquium, um grupo patrocinado pelo Institute on Religion and Public Life, publicou uma breve mas matizada declaração relativa à revolução cultural que o movimento gay e lésbico parece estar desenvolvendo na sociedade americana.[6]  A declaração do Colloquium não detalha as metas dessa revolução. A descoberta significante do grupo de Ramsey é que essa tal revolução reforma as normas sexuais, não só de forma que o "estilo de vida" homossexual seja tolerado mas também visando livrar todas as pessoas dos padrões opressivos da monogamia e da fidelidade heterossexual. A questão, então, é que o movimento gay fixa-se contra normas as tradicionais do matrimônio e da família. Em resposta, o Colloquium não descreve a revolução como liberação mas como o falecimento das práticas que sustentam o tecido moral do bem-estar público. Nesta linha, sua declaração é dirigida contra o que chama de "políticas gays e lésbicas" em lugar da moralidade de indivíduos particulares. A moralidade individual, naturalmente, entrará na discussão, mas após a defesa de certas normas sociais. Mas a declaração do Colloquium separa o movimento social dos casos individuais de forma que seus argumentos sejam engajados em termos do bem público.

O grupo de Ramsey deixa claro que há dois vigamentos de moralidade sexual opostos entre si. De um lado estão as normas matrimoniais e familiares sustentadas dentro do judaísmo e cristianismo, e do outro está o movimento homossexual que promove um estilo de vida gay e uma ideologia do libertarismo sexual. A declaração do Colloquium é obscura sobre os elementos particulares do significado desse "estilo gay de vida" e obscura sobre se tal estilo ipso facto influi ou não nos desejos homossexuais da pessoa que adota este estilo de vida. Este segundo ponto torna-se de vital importancia, na medida em que a declaração parece insinuar que abordar a homossexualidade de alguém eqüivale promover uma "política gay". Esta correlação não é sustentável, nem lógica nem empiricamente. Embora a declaração abra caminho para esta conclusão, abstém-se de fazer a conexão necessária


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entre expressar desejo sexual para uma pessoa do mesmo sexo e a ideologia do "estilo gay de vida". Sua preocupação é desafiar as convicções do movimento homossexual, ou seja, não o isola como uma particularidade ideológica homossexual, mas como um conjunto de idéias desejáveis do libertarismo heterossexual. Esta ideologia geral da revolução sexual vai tão longe ao ponto de defender que nenhum desejo sexual deve ser contido ao mesmo tempo em que assume uma atitude desdenhosa para com o significado da intimidade sexual. Também encoraja uma busca egoísta do desejo e um abuso do corpo em conquistas heróicas de prazer. Esta ideologia no final das contas acaba sendo destrutiva de acordo com o Ramsey Colloquium, ou seja, uma falsa doutrina que "não desenvolve a individualidade nem conduz ao bem-estar social".[7]

Do lado oposto à revolução sexual estão as normas matrimoniais e de família. O Colloquium é consistente em seu foco quando sustenta as práticas e convicções tradicionais na promoção do bem público. A declaração deles na norma heterossexual afirma que "matrimônio e família -- marido, esposa, e crianças, unidos por reconhecimento público e laços legais -- são as instituições mais efetivas para a criação das crianças, para a boa direção das paixões sexuais, e para o desenvolvimento humano na comunidade”.[8]  A união macho e fêmea, expressa paradigmaticamente no matrimônio, é procriativa, provendo um contexto estável para criar as crianças e sustentar a continuidade da comunidade humana através do tempo. A complementaridade dos sexos, possível só dentro de uma união heterossexual, expressa a unidade na diferença da comunidade humana, e a instituição de matrimônio cultiva e guia o desejo sexual saudável. Em resumo, o matrimônio é o contexto normativo para a expressão sexual e para a preservação de todos os bens que emergem dele.

A partir dessa afirmação de que o matrimônio heterossexual é normativo, o Coloquium passa a definir os atos homossexuais como uma forma de desvio extra-matrimonial. Para essas pessoas que não se enquadram no matrimônio, sejam homo ou heterossexuais, só haveria um caminho, segundo o Coloquium, a castidade. A declaração reconhece que a homossexualidade é uma orientação em vez de um ato ocasional. Mas resiste em reconhecer que há uma orientação homossexual equivalente para heterossexualidade, como os defensores gays e lésbicas com razão reivindicam. Indiretamente, a declaração tropeça em uma analogia entre orientação homossexual e predisposição para alcoolismo ou violência.[9]  Ambos podem ser inatos, mas nenhum deles pode ser justificado como alguma coisa tida originalmente como natural. Estas analogias são insuficientes, como será discutido ao término deste ensaio. Para agora, é importante destacar que do ponto de vista do Colloquium esta maneira de depreciar a orientação de homossexual é consistente apenas como uma tomada de posição do matrimônio heterossexual como norma. Nas condições do Colloquium, a homossexualidade não pode ser aceita como uma opção de estilo de vida. Para sublinhar este ponto, a declaração desloca-se de sua preocupação inicial com a ideologia da revolução sexual para a moralidade dos atos individuais. Enquanto, inicialmente, a declaração relaciona-se à ideologia do estilo de vida gay, na conclusão, assume que todos os atos homossexuais e as relações de mesmo sexo são consideradas como desafio à norma. Todas as relações gays ou lésbicas parecem cair sob a bandeira do estilo de vida gay.


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No que diz respeito ao documento do Ramsey Colloquium tenho que reconhecer, pelo menos como hipótese, que seu raciocínio sobre o bem público é confiável. O Colloquium tem razão em reivindicar que a cultura predominante no Ocidente é infalivelmente ligada às práticas e normas ideológicas do matrimônio heterossexual. Contudo, algumas de suas outras reivindicações são menos evidentes, como a reivindicação de que nós aprendemos a avaliar as diferenças dentro de comunidade por meio da complementaridade macho-fêmea do matrimônio. "Avaliar as diferenças" é uma frase escorregadia, dado que a valorização das mulheres continua freqüentemente sendo determinada através do status econômico. Embora esta reivindicação sobre complementaridade macho-fêmea e outras reivindicações (por exemplo a analogia de alcoolismo) sejam questionáveis, eu concederia que elas são basicamente verdades, que o matrimônio heterossexual e a forma familiar compõem um tecido insubstituível de nossa comunidade humana. Mas mesmo reconhecendo a tese básica, eu coloco uma exceção, quando apresento a anomalia das duas mulheres com uma criança.

Imagine que nossas duas mulheres concordem com o Ramsey Colloquium no que tange a seu desafio às políticas do "estilo gay de vida". Como o Colloquium, elas acreditam que a revolução sexual corroe os valores familiares. Elas abominam a prevalência da pornografia e o gradual afrouxamento que a pornografia representa. Elas estão indignadas pela promiscuidade na televisão em horário nobre, e elas são cautelosas sobre o que o que convem à sua pequena menina assistir. Eles acreditam que noções abstratas de liberdade de expressão distorceram a forma pública, e geralmente, pelo menos em termos de questões morais, elas se acham no lado conservador do típico conservador-liberal modo de vida. Nossas duas mulheres vivem fielmente na união delas; elas se comprometeram a um pacto permanente; e elas dão o melhor que tem para criar a criança e apoiar sua comunidade na educação e na criação da criança. Elas acreditam fortemente na dignidade da orientação sexual que adotaram, mas, para tornar a questão ainda mais difícil para o Colloquium, destaco que elas se encantam assistindo os óbvias paqueras da filha delas com os meninos. Elas não são homossexuais que supostamente consideram a orientação delas uma causa para converter outros. A menina faz normalmente sua lição de casa de matemática, joga futebol, estuda piano, e compartilha passeios com os vizinhos, tudo isso faz parte integrante da vida delas. A vida que elas sustentam e as práticas que elas endossam publicamente quase não tem nada a ver com aquilo a que o Ramsey Colloquium se refere no que diz respeito ao estilo de vida gay. Elas vivem um vida plena fazendo aquilo que é expresso pelo paradigma do matrimônio, e elas fazem o seu melhor para fortalecer tais práticas na comuniade onde vivem. Eles contribuem para aquilo que o Ramsey Colloquium poderia chamar de tecido social do matrimônio e da família, mas quando chega a noite, elas fazem juntas na mesma cama.

Eu chamo esta relação uma anomalia porque não se ajusta nos contornos precisos da relação macho-fêmea, mas não representa um desafio ela. Na realidade, estas duas mulheres se esforçam no sustento da prática da fidelidade e da criança que cuidam, o que está associado às práticas do matrimônio. Nesse caso, então, a vida que compatilham está devidamente ajustada do lado do matrimônio na divisão que o Colloquium


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faz entre casamento heterossexual e «política gay». Esta colocação é certamente anômala em termos das reivindicações do Ramsey Colloquium. O Colloquium é consistente na conexão que faz entre a afirmação pública do matrimônio heterossexual e sua categorização de todas as relações homossexuais como anticonvencionais. Mas a união entre as mulheres em nosso exemplo afirma o paradigma básico e parece transgredir em desvio. À união delas falta obviamente elementos como a complementaridade macho-fêmea e a possibilidade procriativa natural, mas sua firme fidelidade, seu cuidado com a criança, e suas contribuições para com as práticas de preservação da família da comunidade se coadunam com a expectativa da rede pública do matrimônio. O Ramsey Colloquium não teria nenhuma outra opção a não ser dar boas-vindas a este par lésbico em sua posse comum dos bens comuns, mantendo uma dissonância conceitual o tempo todo sobre o jeito próprio delas. Esta troca de categoria também caracteriza as relações do par na comunidade delas. Do grupo daqueles que sustentam uma posição de princípio contra as relações gays e lésbicas, alguns acharão a relação entre nossas duas mulheres intolerável. Mas um bom número de vizinhos, os colegas de trabalho, e amigos, dirão que são em princípio contra a homossexualidade, mas que estas duas lésbicas, a Sally e a Janice, são de alguma maneira diferentes. Outros, naturalmente, não hesitarão em viver uma vida de comunhão com elas. Por que? Teorias sobre tolerância são desnecessárias. Na prática cotidiana da vida que levam em comum (por exemplo, passeando no parque, jogando peteca, e levantando fundos para os projetos), as duas mulheres e sua filha vivem entre os vizinhos e amigos como uma família que vive entre famílias. Elas compartilham modos comuns de vida, bens comuns, e metas comuns para com seus filhos.

Em suma, a meu ver, certas relações mesmo não cumprindo todos os elementos do matrimônio são, não obstante, matrimoniais. O caso mais óbvio é quando um homem e uma mulher optam por viver sem filhos. Eles continuam casados no sentido mais pleno, embora haja a expectativa de que, de uma ou de outra forma, eles contribuam com a comunidade e com as crianças da comunidade. Tais pares pouco ou em nada diferem dos demais, passando pelas mesmas dificuldades que todo mundo passa em suas relações interpessoais. Nenhum matrimônio está isento de disfunção; ainda, os matrimônios continuam sendo vitais porque o matrimônio é um conjunto de práticas que arraigam muito mais que a relação interpessoal entre cônjuges. Por práticas comuns, os pares são mutuamente sustentados dentro da rede pública do matrimônio, e esta rede também sustentará particularmente os relacionamentos gays e lésbicos. Tal ajuste entre práticas matrimoniais e homossexualidade pode eventualmente não se efetuar, dado o contraste entre práticas tradicionais matrimoniais heterossexuais e a identidade gay como foi amoldado com respeito à hegemonia da heterossexualidade e em termos das políticas de liberação.[10]  No que diz respeito às relações particularmente atípicas, como a coalizão entre nosso par lésbico e o Ramsey Colloquium, elas serão vistas como anomalias. Reconhecê-las como anomalias abre caminho para a aprovação local por não entrar em choque nem com as práticas comuns nem com a regra geral no plano local, as pessoas podem perfeitamente dizer sim ao Ramsey Colloquium e sim a Sally e Janice.


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[1] See Margaret A. Farley, "An Ethic for Same-Sex Relations," A Challenge to Love, ed. Robert Nugent (New York: Crossroad, 1983). pp. 93--106.
[1b]
goods [Nota do Tradutor]

[2] See David F. Greenberg, The Construction of Homosexuality (Chicago: University of Chicago Press, 1988).

[3] Catechism of the Catholic Church (Mahwah, NJ. Paulist Press, 1994), § 2379.

[4] Artificial methods open a "wide and easy road ... toward conjugal infidelity and the general lowering of morality." Humanae Vitae, in The Gospel of Peace and Justice ed. Joseph Gremillion (Maryknoll, NY: Orbis,1976), p. 435* § 17

[5] For instance, see Bernard Häring, "The Inseparability of the Unitive-Procreative Functions of the Marital Act," Contraception; Authority and Dissent, ed. Charles Curran (New York: Herder & Herder, 1969).

[6] Richard John Neuhaus, et, al., "The Homosexual Movement: A Response by the Ramsey Colliquium," First Things 41 (March 1994), pp. 15-20. The Colloquium is careful about not overcharacterizing the homosexual movement as unified.

[7] "When some scientific evidence suggests a genetic predisposition for homosexual orientation, the case is not significantly different from evidence of predispositions towards other traits---for example, alcoholism or violence," Ibid,, p. 18.

[8] Ibid.

[9] Ibid., p. 17.

[10] John D'Emilio, Sexual Politics, Sexual Communities (Chicago: University of Chicago Press, 1983).

*nota do editor: Mais sobre homossexualidade em http://www.amigoscomcristobr.kit.net/homossexualidade.html

fim da primeira parte de Homossexualidade e Práticas Matrimoniais

segunda parte

terceira parte
última parte



© DAVID McCARTHY MATZKO
Edição Eletrônica pelo Coletivo Periferia
Traduzido por Railton de Sousa Guedes
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