De
Modern Theology, 13 de julho de 1997, p 371-397
HOMOSSEXUALIDADE
E PRÁTICAS MATRIMONIAIS
Parte I
Título original da edição
inglesa:
Homosexuality and the Practices of Marriage:
http://www.jesusradicals.com/main/library/matzko/homosexuality.html
Edição
em português:
Tradução: Railton de Sousa Guedes
Coletivo Periferia
A homossexualidade é um assunto controverso
para a igreja. A presença de crentes gays e lésbicas induz uma boa
parcela de dissonância sobre as práticas tradicionais do matrimônio e sobre
como responder ao fato de um número cada vez maior de pessoas aderir
solidamente a tais uniões sexuais. Essa dissonância não alcançou um estágio
crítico por razões exclusivamente relacionadas à homossexualidade. A própria
prática do matrimônio está em crise, e para muitos, a questão da homossexualidade
provê bases para lançar ataques contra as práticas matrimoniais de nossa cultura
liberal. Quando estes defensores pressupõem uma simples conexão de causa-efeito
entre homossexualidade e tempos de abandono do matrimônio, eles se enganam.
Mas estão corretos em assumir que justificar uniões do mesmo sexo requer
repensar o significado do matrimônio heterossexual. Um reformulação parece
ser inevitável. Por exemplo, a maior parte daqueles que justificam uniões
entre pessoas do mesmo sexo fazem isso elevando a finalidade do casamento
a uma posição primária e relevando seu propósito criativo. O laço interpessoal
é compreendido como a essência do casamento, tanto em termos hetero como homosexuais. [1]
Esse conjunto de argumentos apóia o papel das uniões entre pessoas do mesmo
sexo dentro das práticas matrimoniais. Mas, estranhamente, silenciam se o
matrimônio atende às particularidades das uniões do mesmo sexo. Conceitualizar
matrimônio em termos de homossexualidade é, naturalmente, inevitável -- tanto
para detratores como para defensores da homossexualidade. Enquanto os defensores
enfatizam bens específicos para uniões do mesmo sexo, os detratores se esforçam
em impor inovações para realçar os aspectos particularmente heterossexuais
do matrimônio. Neste sentido, tanto a homossexualidade como a heterossexualidade
trazem algo novo. O casamento, como outras práticas da igreja, está ligado
às práticas tradicionais, e está mudando,
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os argumentos do presente ensaio
não toma partido de nenhum dos lados nesse debate em torno do matrimônio.
Esse ensaio mantém uma visão conservadora, na medida em que apoia as duas
finalidades, amor conjugal e procriação, como a melhor articulação dos benefícios
[1b] e das práticas matrimoniais. A composição, portanto, não está relacionada
a reestruturar uma teologia de matrimônio. Seu ponto de partida é mais prático.
O presente ensaio pressupõe o fato de certas uniões sexuais já estarem funcionando
dentro das comunidades enquanto matrimônios. Tais pares de gays e lésbicas
apoiam e são apoiados pelas práticas matrimoniais e familiares da comunidade
como um todo. Com tais uniões já estabelecidas, a tarefa não é reformular
o matrimônio de forma que gays e lésbicas possam aderir. Em vez disso,
a tarefa é entender como e por que essas uniões sexuais se ajustaram tão bem,
a despeito daqueles tantos bons argumentos lançados contra elas.
O presente ensaio tem quatro seções. A primeira aborda o assunto das uniões
homossexuais com um exemplo concreto, um par lésbico e sua filha, tal exemplo,
no desenvolver da seção, é tido como uma anomalia. Alguém pode compreender
o conceito de anomalia como uma insinuação de que este par lésbico representa
uma união distorcida, mas tal não é o propósito aqui. Pelo contrário, o conceito
provê alguns meios para indicar o inesperado (contudo natural) ajuste entre
este par e as práticas matrimoniais preponderantes na comunidade heterossexual
a que elas pertencem. Anomalia é um conceito útil porque além não comportar
categorias normativas, também não comporta concepções habituais de desvio.
Fica no meio termo. O aparecimento anômalo requer uma decisão sobre quais
categorias usar para chegar à melhor avaliação de suas características. A
idéia de uma anomalia, então, oferece alguns meios para acentuar a norma do
matrimônio heterossexual, ao mesmo tempo em que abre a questão sobre o estado
de nossas duas mulheres e de sua filha. Se as vidas delas estão situadas entre
claras categorias de norma e desvio, de qual lado da divisão se situam? Se
a união delas é constituída dentro e pela prática matrimonial de uma comunidade,
permanecerão ainda de pé os argumentos típicos contra uniões de homossexuais?
As três seções subseqüentes desse nosso ensaio aborda tais questões, cada
uma delas lidando com uma diferente objeção à homossexualidade. As objeções
são feitas enquanto defesa do bem público (seção 2), em termos da imoralidade
do ato homossexual em si mesmo (seção 3), e por meio de textos bíblicos particulares
(seção 4). Eu considero os argumentos mais fortes de cada objeção e contra-argumento
que em seus próprios termos eles são incapazes de excluir o caso que tomamos
como teste. Eu sustento que o matrimônio provê uma categoria apropriada não
para uma compreensão total mas para a compreensão de determinadas uniões
do mesmo sexo.
Imagine duas mulheres e uma criança sentadas juntas em meio a uma congregação
durante a missa de domingo. Elas compartilham a paz de Cristo com as pessoas
ao redor, recitam o Sanctus, anunciando que Cristo morreu, ressussitou, e
que voltará novamente, e
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elas, com o resto das pessoas se
dirigem para o altar para repartir o pão. A cena é comum, duas mulheres e
uma jovem menina. Elas podem ser mãe, filha e uma amiga, ou cunhada, mãe e
filha. As possibilidades são muitas, sem nada de extraordinário em suas relações.
Agora, imagine que as três voltem juntas para casa; comam, cochilem um pouco,
e passem a tarde brincando e executando tarefas domésticas que deixaram para
fazer durante os fins de semana. Quando a noite chega, a criança vai para
o quarto dela para dormir, e as duas mulheres vão para o quarto delas, deitam-se
na mesma cama, após leituras, conversas, abraços, beijos, carícias,
ficam com sono e dormem. Pela manhã, as três se entregam a seus afazeres,
vão para a escola e trabalham, ao anoitecer voltam para casa como todo
mundo faz, no que diz respeito à criança, é bem cuidada, e sustentada
por uma relação de intimidade, confiança, e cuidado mútuo.
Por intuição ou arrazoamento, alguns
afirmarão que certos «bons costumes» são sustentatos por esta
família composta por mulher, mulher e menina, enquanto que outros afirmarão
que os costumes [1b] essenciais à convenção do matrimônio são negados pela
própria natureza dos atos sexuais delas. Se por um lado, tal relação sustenta
fidelidade, cria uma firme convenção, totalmente reforçada com papéis
de parentesco, e complementada com o amor, o cuidado, e a educação da criança.
Por outro lado, a relação delas não é de forma alguma procriativa e não reflete
a reciprocidade natural homem e mulher na ordenação procriativa. É provável
que ambos os lados do debate ordenem temas e passagens bíblicas, reivindiquem
bases fundadas em uma antropologia teológica, e evidências anedóticas. Minha
intenção é ser responsável pelos argumentos básicos de ambos os lados. Apesar
de práticas cristãs e teologias morais tradicionais de longa data colocarem-se
frontalmente contra este par lésbico; estas duas mulheres, junto com outros
pares, aderiram à fé, estão firmes e estabelecidas, e criam uma criança. Mesmo
a união delas sendo informal, e faltando-lhes o consentimento explícito da
comunidade de fé que freqüentam, o par vive bem na graça de Deus, um sinal
do pacto divino com o mundo. O que fazer? Nós que estamos firmados na tradição
cristã? Como lidar com este fenômeno?
Nosso par lésbico e a filha delas
constituem uma anomalia diante da comunidade que freqüentam. Uma anomalia
implica em categorização, e chamar determinada união
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homosexual de anomalia dá
margem à procura de que tipo de categoria é mais apropriada
para situar aquele relacionamento em particular. Sua base é o mero prazer?
É fornicação? É antinatural? Representa uma forma imatura ou mal-ajustada
de expressão sexual? É um matrimônio? Cada uma destas cinco opções também
poderiam ser usadas para descrever relações heterossexuais. Esse é precisamente
o ponto. Nem todas as atividades heterossexuais são classificadas da mesma
forma, e algumas relações lésbicas e gays nos exigem que façamos determinações
difíceis sobre qual de nossas categorias típicas elas se encaixam. No moderno
mundo Ocidental, acredita-se que o desejo para a intimidade sexual emerge
da orientação sexual que a pessoa teve. A noção da orientação não só salienta
o mesmo uso sexual dos órgão genitais como também considera um profundo desvio
caso ocorra o contrário (na pessoa, não no ato), mas também criou a
possibilidade de pessoas afirmarem sua identidade como homossexuais. Além
dessa idéia de orientação, determinadas intimidades sexuais, são vistas
como um ato, ou expressão de desejo excessivo ou mesmo uma forma de sexo não-procriativo,
entre outros.[2]
Estes exemplos não estão muito distantes do tratamento da igreja ao matrimônio.
Se assumimos que determinado matrimônio é marcado por fidelidade e procriação,
então teremos que tomar decisões sobre relações que não incluem estes dois
fins básicos. Sobre matrimônio sem filhos, o Catecismo católico diz isto.
"Os Evangelhos mostram que esterilidade física não é um mal absoluto." "Absoluto"
é um qualificador significante, indicando que a esterilidade impõe um sofrimento
que pode ser suportado. Na medida em que o sofrimento está em algum lugar
entre o mal e o absolutamente mal, muitos matrimônios sem filhos são sustentados
como uniões e mantém o caráter procriativo do casamento. Como? "Eles deveriam
se unir com a Cruz do Senhor, a fonte de toda a fecundidade espiritual. Eles
podem dar expressão à sua generosidade adotando
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crianças abandonadas
ou prestando serviços para outros."[3]
Algumas uniões gays e lésbicas apresentarão
uma anomalia em um grau que não se encaixa em qualquer vigamento tradicional
para o matrimônio ou padrões
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típicos de desvio comportamental.
O conceito de anomalia em si pode criar confusão. A idéia de anomalia não
está sendo usada aqui para argumentar que uniões homossexuais sejam uma abominação,
mas para reconhecer que algumas uniões gays e lésbicas são bem apropriadas
a uma prática cristã do matrimônio. A expectativa que todas as uniões homossexuais
são estranhas ao matrimônio é que soa como uma anomalia. Em outras palavras,
os argumentos deste presente ensaio pressupõem que as relações gays e lésbicas
não são paradigmais, mas que algumas causarão dissonância conceitual para
aqueles que assumem uma diferença irredimível entre homossexualidade e matrimônio.
Esperançosamente, a dissonância foi criada pela história introdutória das
duas mulheres e a jovem menina. As próximas três seções considerarão vigamentos
para avaliar as relações delas e as práticas de família
Objeção
Um: O Bem Público
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entre expressar desejo sexual para
uma pessoa do mesmo sexo e a ideologia do "estilo gay de vida". Sua preocupação
é desafiar as convicções do movimento homossexual, ou seja, não o isola como
uma particularidade ideológica homossexual, mas como um conjunto de idéias
desejáveis do libertarismo heterossexual. Esta ideologia geral da revolução
sexual vai tão longe ao ponto de defender que nenhum desejo sexual deve ser
contido ao mesmo tempo em que assume uma atitude desdenhosa para com o significado
da intimidade sexual. Também encoraja uma busca egoísta do desejo e um abuso
do corpo em conquistas heróicas de prazer. Esta ideologia no final das contas
acaba sendo destrutiva de acordo com o Ramsey Colloquium, ou seja,
uma falsa doutrina que "não desenvolve a individualidade nem conduz
ao bem-estar social".[7]
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No que diz respeito ao documento
do Ramsey Colloquium tenho que reconhecer, pelo menos como hipótese,
que seu raciocínio sobre o bem público é confiável. O Colloquium tem
razão em reivindicar que a cultura predominante no Ocidente é infalivelmente
ligada às práticas e normas ideológicas do matrimônio heterossexual. Contudo,
algumas de suas outras reivindicações são menos evidentes, como a reivindicação
de que nós aprendemos a avaliar as diferenças dentro de comunidade por meio
da complementaridade macho-fêmea do matrimônio. "Avaliar as diferenças" é
uma frase escorregadia, dado que a valorização das mulheres continua freqüentemente
sendo determinada através do status econômico. Embora esta reivindicação sobre
complementaridade macho-fêmea e outras reivindicações (por exemplo a analogia
de alcoolismo) sejam questionáveis, eu concederia que elas são basicamente
verdades, que o matrimônio heterossexual e a forma familiar compõem um tecido
insubstituível de nossa comunidade humana. Mas mesmo reconhecendo a tese básica,
eu coloco uma exceção, quando apresento a anomalia das duas mulheres com uma
criança.
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faz entre casamento heterossexual
e «política gay». Esta colocação é certamente anômala em termos das reivindicações
do Ramsey Colloquium. O Colloquium é consistente na conexão que faz entre
a afirmação pública do matrimônio heterossexual e sua categorização de todas
as relações homossexuais como anticonvencionais. Mas a união entre as mulheres
em nosso exemplo afirma o paradigma básico e parece transgredir em desvio.
À união delas falta obviamente elementos como a complementaridade macho-fêmea
e a possibilidade procriativa natural, mas sua firme fidelidade, seu cuidado
com a criança, e suas contribuições para com as práticas de preservação da
família da comunidade se coadunam com a expectativa da rede pública do matrimônio.
O Ramsey Colloquium não teria nenhuma outra opção a não ser dar boas-vindas
a este par lésbico em sua posse comum dos bens comuns, mantendo uma dissonância
conceitual o tempo todo sobre o jeito próprio delas. Esta troca de categoria
também caracteriza as relações do par na comunidade delas. Do grupo daqueles
que sustentam uma posição de princípio contra as relações gays e lésbicas,
alguns acharão a relação entre nossas duas mulheres intolerável. Mas um bom
número de vizinhos, os colegas de trabalho, e amigos, dirão que são em princípio
contra a homossexualidade, mas que estas duas lésbicas, a Sally e a Janice,
são de alguma maneira diferentes. Outros, naturalmente, não hesitarão em viver
uma vida de comunhão com elas. Por que? Teorias sobre tolerância são desnecessárias.
Na prática cotidiana da vida que levam em comum (por exemplo, passeando no
parque, jogando peteca, e levantando fundos para os projetos), as duas mulheres
e sua filha vivem entre os vizinhos e amigos como uma família que vive entre
famílias. Elas compartilham modos comuns de vida, bens comuns, e metas comuns
para com seus filhos.
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[1] See Margaret A. Farley, "An
Ethic for Same-Sex Relations," A Challenge to Love, ed. Robert Nugent (New
York: Crossroad, 1983). pp. 93--106.
[1b] goods [Nota do Tradutor]
[2] See David F. Greenberg, The Construction of Homosexuality (Chicago: University of Chicago Press, 1988).
[3] Catechism of the Catholic Church (Mahwah, NJ. Paulist Press, 1994), § 2379.
[4] Artificial methods open a "wide and easy road ... toward conjugal infidelity and the general lowering of morality." Humanae Vitae, in The Gospel of Peace and Justice ed. Joseph Gremillion (Maryknoll, NY: Orbis,1976), p. 435* § 17
[5] For instance, see Bernard Häring, "The Inseparability of the Unitive-Procreative Functions of the Marital Act," Contraception; Authority and Dissent, ed. Charles Curran (New York: Herder & Herder, 1969).
[6] Richard John Neuhaus, et, al., "The Homosexual Movement: A Response by the Ramsey Colliquium," First Things 41 (March 1994), pp. 15-20. The Colloquium is careful about not overcharacterizing the homosexual movement as unified.
[7] "When some scientific evidence suggests a genetic predisposition for homosexual orientation, the case is not significantly different from evidence of predispositions towards other traits---for example, alcoholism or violence," Ibid,, p. 18.
[8] Ibid.
[9] Ibid., p. 17.
[10] John D'Emilio, Sexual Politics, Sexual Communities (Chicago: University of Chicago Press, 1983).
fim
da primeira
parte de Homossexualidade e Práticas Matrimoniais