De Modern Theology 13 July 1997, p 371-397

 

HOMOSSEXUALIDADE E PRÁTICAS MATRIMONIAIS
Parte IV

DAVID McCARTHY MATZKO


A teologia de Hays da ordem criada cai por terra no momento em que a orientação sexual é compreendida como característica intrínseca da identidade de uma pessoa, ou seja, algo que não vem nem por escolha nem por coerção. A orientação é simplesmente uma condição. As pessoas se descobrem orientadas para parceiros do mesmo sexo ou do sexo oposto. Neste ponto, tanto Hays como Boswell têm razão. Paulo assume o relacionamento macho-fêmea como natural (Hays), mas ele não considera a situação onde pessoas se acham definitivamente orientadas pelo mesmo sexo (Boswell). Não passa por sua cabeça a possibilidade de dois iguais (em termos sociais, etários, ou de gênero) juntos em uma união sexualmente íntima (Scroggs). Se existisse essa relação sexual igualitária no mundo antigo ninguém iria perder tempo falando da pederastia ou do relacionamento macho-femea. Embora a orientação sexual seja um anacronismo, ela é assumida por Scroggs, Boswell e Hays. Qualquer consideração que aborde homossexualidade não pode evitar a «orientação» porque é aí que está a homossexualidade: na orientação constitutiva.

Uma vez pressuposta a «orientação», o texto de Romanos fica ambíguo. Talvez se abra uma brecha para uma consideração sobre nosso caso anômalo. A noção de uma orientação homossexual requer que aqueles que condenam a homossexualidade façam uma distinção entre disposição homossexual inocente e atos e escolhas censuráveis. É a orientação que determina se o ato é censurável ou não. O ato homossexual pode ser inocente naqueles que tem uma orientação homossexual e é censurável naqueles que tem uma orientação heterossexual. Há inocência no primeiro caso e culpa no segundo. Aqui, estamos diante de uma distinção que não é estranha para Paulo em Romanos 1. A orientação sexual não é uma escolha, mas Paulo indica que os gentios estão condenados precisamente por causa das escolhas deles. Os gentios deram meia volta, saíram do caminho natural. Por esta razão, pela orientação sexual homossexual não ser algo permutável ela não se enquadra entre os atos condenados por Paulo. A condenação de Paulo aos atos homossexuais entre os gentios como imagens claras da desobediência pagã, não significa uma condenação à orientação homossexual entre crentes e não-crentes.
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outras palavras, a mera orientação não provê a imagem de uma pessoas que resolveu se afastar de Deus.

Qual orientação gera desobediência, a homo ou a heterossexual? Em termos de orientação tal questão é um total contra-senso. Quem fez a opção correta, os judeus ou os gregos? Em termos de atos e escolhas ambos falharam completamente. O fato notável sobre a orientação homossexual é que não possui limites. A orientação sexual não pode ser afiançada nem prevenida pela criação ou por uma linhagem hetero ou homossexual. Pais heterossexuais tem crianças homossexuais; pais homossexuais criam crianças heterossexuais. Estas verdades são tão empiricamente fundamentadas para nós como os atos homossexuais entre os gentios foram para Paulo. O simples uso ilustrativo que Paulo faz desses mesmos atos sexuais não traduz a orientação homossexual. O que é fundamental para Paulo é a teimosia de um povo, os gentios.

A natureza involuntária da orientação sexual requer uma troca de categoria, não apenas em termos de Romanos mas também em termos das formas tradicionais de entender disposições e atos. Considere a ganância como um exemplo representativo. Atos de ganância são imorais, a disposição censurável, e todas as pessoas são suscetíveis a ambos. Diante da consistência da culpa, oportunidade, e universalidade, a ganância não é uma analogia apropriada à homossexualidade. Todavia, enquanto quase que todo mundo é inclinado à ganância a orientação deles não constitui nenhuma falta. Ao passo que gays e lésbicas, enquanto pequena minoria, tem seus atos tipicamente considerados censuráveis. Diferentemente do pecado da ganância, a orientação homossexual apresenta uma inconsistência entre a disposição e o ato. A disposição para a ganância será ampliada, será diminuída, ou será eliminada em relação aos atos da pessoa no que diz respeito ao vício ou à virtude. Mas não há nenhuma evidência de que atos heterossexuais inverterão uma orientação homossexual, ou vice-versa. Em termos de orientação sexual, a disposição conduz a atos, mas tais atos não amoldam a disposição. A orientação sexual, em si mesma, não é uma virtude a ser cultivada ou um vício a ser negado. É o que é. A analogia tradicional de pecado não segura.[37]

Comparando homossexualidade com disposição para virtudes ou vícios, será que o alcoolismo seria uma boa analogia? Há quem peça para pessoas com orientação homossexual se abster de praticar atos sexuais com o mesmo sexo, da mesma maneira que se pede aos alcoólicos se abster de consumir bebida alcoólica. Mas esta analogia é inteiramente falha já que o ato em si, de consumir bebida alcoólica, não é considerado um problema para os não-alcoólicos. O que está em jogo aqui é a disposição, não o ato -- enquanto que no caso da homossexualidade assume-se o inverso. Se essa analogia fosse válida, então as únicas pessoas que não deveriam praticar atos homossexuais seriam as pessoas com orientação homossexual. Heterossexualis seriam livres para praticar atos homossexuais -- o que não constitui uma solução satisfatória para nenhum dos lados em questão.[38]  Therefore, analogies with dispositions like alcoholism also fail.

Outra analogia, usada pelos defensores da homossexualidade, compara orientação sexual com preferências políticas, como pertencer à direita ou à esquerda.[39]  A analogia é apropriada na medida em que gays e lésbicas, da mesma forma que esquerdistas, constituem uma minoria que não escolhe suas inclinações. A analogia também


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se ajusta na medida em que vivemos em um mundo de direita, usando o poder e o privilégio como usamos tesouras ou abridores de lata. Mas a analogia é inadequada porque trivializa nossas lutas morais com homossexualidade, como se a questãi fosse moralmente indiferente. Uma pessoa de esquerda pode ser treinada a usar a direita sem efeitos doentios ou tensões contínuas com tendências da esquerda. O mesmo não pode ser dito da orientação sexual da pessoa. Além desta assimetria, a analogia da esquerda demanda assuntos difíceis. Um esforço em dizer que a sexualidade é tão moralmente neutra quanto o uso da esquerda ou da direita por alguém diminui os vigamentos da fidelidade e do serviço da comunidade que dão forma à força moral da expressão sexual.

Realmente, a homossexualidade se nos apresenta como uma anomalia. Tudo aquilo que é dito sobre a noção de orientação homossexual mas que sustenta todos os atos homossexuais como imorais resulta em incongruência. Primeiro, compreende-se a orientação como um determinado aspecto da identidade de uma pessoa, constitutivo, e não escolhido. A seguir, considera-se tal orientação como desordenada, inclinada para atos imorais. Finalmente, exige-se de tais pessoas desordenadas resistir às inclinações naturais delas. Com efeito, lhes é exigido na verdade é mostrar esforços e virtudes heróicas para obedecer uma orientação heterossexual que não é a sua. Paulo considerou a vida pura como um dom particular, dado apenas a alguns. É estranho que esses que consideram a homossexualidade como algo desordenado também acreditem que a este mesmo grupo de pessoas tenha sido dado a graça especial da castidade, ao mesmo tempo em que aqueles que fazem parte da população heterossexual, tidos como ordenados, não podem, na maioria das vezes, se controlar.

Esta visão é uma combinação incongruente de desespero sobre a natureza homossexual misturada com expectativas heróicas relativas às inclinações de homossexuais. Com relação aos desordenados (homossexuais) assume-se que eles tem uma capacidade para a boa ordem (castidade), maior do que aqueles que são bem ordenados (heterossexuais). Esta visão não faz muito sentido. O que faz é confundir o conceito de desejo com o conceito de orientação. Quando os heterossexuais forem puros, nós assumimos que eles aprenderam limitar seus desejos, ou os conformaram a um modo particular de vida -- todos os compromissos e amores da vida celibatária. Nós não assumimos que todos os heterossexuais serão capazes de adotar esta maneira de viver. É uma chamada e um dom particular a algumas pessoas da comunidade. Em contraste com este dom, nós vemos o matrimônio como uma estrada larga, mas ainda, como um modo conformar nossos desejos com fidelidade a Deus e serviço à comunidade.

Quando pedimos que todos os homossexuais sejam puros, tratamos com aquilo que cremos ser uma orientação irreversível, um desejo não educado, adequado a um dom ou chamada particular. Assumimos que a mesma orientaçãosexual é equivalente aos desejos adequados à castidade. Como resultado, não damos aos gays e às lésbicas nenhum espaço para que seus desejos sejam ensinados em santidade. Uma posição consistente assegura que todos os atos homossexuais, como todos os atos heterossexuais, não são semelhantes. Alguns atos são ordenados de acordo com a vontade de Deus e para o bem


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da vida comum, enquanto que outros não são. A própria orientação não é desordenada, mas pode ser desencaminhada. A castidade e dirme fidelidade no matrimônio são nossos meios típicos de ordenar nossos desejos.

Esta discussão em termos de orientação e desejo, nos remete às Escrituras. E a questão da orientação e o debate entre Scroggs, Hays, e Boswell me deixam um pouco inseguro -- por duas razões. Primeiro, pode parecer que eu estou esboçando uma teoria de orientação sexual. Mas esta não é minha preocupação. Na verdade, eu espero mostrar que há espaço para pensar em termos de nosso caso anômalo das duas mulheres que estão criando uma criança. A discussão da «orientação» indicou que os poucos textos que abordam atos homossexuais não são suficientes para julgamentos sobre todas as uniões do mesmo sexo. Claramente, são excluídos pederastia, prostituição, e outras formas de dominação e licenciosidade. Mas o que dizer sobre nosso exemplo de um par que se ajusta bem às práticas matrimoniais de uma comunidade?

Segundo, eu posso ter dado a impressão de que a Bíblia não tem nada a dizer sobre homossexualidade -- porque a análise e a discussão que eu apresentei foram dados em termos negativos. Pode parecer quue eu determinei apenas o que Paulo não disse a respeito da orientação homossexual.

Deveríamos nos lembrar que os atos homossexuais são condenados, mas que eles recebem apenas consideração leves e indiretas, de forma que um tratamento substantivo desse tópico se torna difícil. Atos homossexuais não se enquadram no quadro das preocupações importantes. Em termos positivos, o peso do testemunho bíblico sobre matrimônio aponta para a auto doação graciosa de Deus em Jesus Cristo e para a comunidade que é estabelecida pelo poder do Espírito de Cristo. A discussão da orientação só é importante porque mostra que Paulo, em Romanos 1, enfatiza as escolhas dos gentios e a corrupção que tais escolhas implicam. Na medida em que não temos escolha no que diz respeito à orientação, nacionalidade ou raça, podemos começar a assegurar mútua responsabilidade, não para nossa orientação, mas para impulsos e atos de nossos desejos e a forma de nossas relações sexuais.

A homossexualidade, como o matrimônio, deveria ser julgada por uma compreensão inclusiva da Bíblia e das práticas da comunidade cristã. Se certas uniões do mesmo sexo são compreendidas em termos de matrimônio, os textos apropriados ao matrimônio (como I Coríntios 7 e 13) ajudarão contra as discriminações em torno de atos homossexuais. O matrimônio provê um conjunto de categorias onde não se enquadram nem a complementaridade macho-femea, nem o chamado estilo de vida gay, nem as políticas da comunidade gay. Defender a homossexualidade faz tanto sentido como condená-la. As condições de homossexualidadea ou heterossexualidade não nos ajudam identificar modos de vida e relações que conformam nossos desejos ao bom desfecho que Deus deseja à comunidade humana. O pacto divino, a dádiva de Cristo, e a vida do Espírito na comunidade estabelece o padrão para nossa imitação do relacionamento cortez de Deus para com o mundo e nossa representação dos dons da sexualidade.
Firme Fidelidade, reciprocidade, e amor em abundancxia não apenas marcas do Trindade de Deus mas também a forma da


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chamada cristã ao matrimônio. Estas são as normas bíblicas que oferecem uma consideração substantiva das relações gays e lésbicas.

Assim, a tarefa diante da comunidade cristã não é nada fácil. No exemplo chave desta composição, nosso par lésbico participa tanto das práticas de matrimônio da comunidade como para com as crianças. Elas sustentam as práticas do matrimônio e são sustentadas por elas, mas o lugar delas dentro do matrimônio não é mantido sem tensão. É por isso que eu usei a idéia da anomalia de forma a conceitualizar a situação delas dentro dos discursos morais da vida cristã. Na medida em que as práticas cristãs do matrimônio provêem meios para conformar o desejo sexual aos desejos que servem a comunidade humana e provêem uma imagem da graça e do amor dadivoso de Deus, categoria crítica (e bíblica) para julgamentos sobre homossexualidade não é nenhuma orientação em si mas o matrimônio.


Conclusão

O matrimônio é uma rede de práticas cuja esfera de influência ultrapassa o relacionamento entre duas pessoas. É um modo de vida pela qual as comunidades formam um conjunto coeso e empreendem em conjunto coisas boas para todos. Dentro desta rede, os pares gays e homossexuais em particular sustentam uma vida comum e usufruam de todas as coisas boas associadas ao matrimônio, salvo o bem procriativo do contraste simbólico entre macho e femea. Em um mundo onde o matrimônio encontra uma multidão de razões para o fracasso, faz pouco sentido impedir o sucesso e as contribuições destas uniões porque elas não cumprem todos os elementos do caso paradigmal. Aceitar uniões entre homossexuais e esperar que eles sejam mutuamente fiéis, firmes, e abertos a criar crianças não diminui a importância da norma procriativa nem depende de um ou dois argumentos nocivos. As práticas matrimoniais moldam a estrutura do ato sexual, e neste grau, nem todos os atos homossexuais são equivalentes. Reunir os mesmos pares sexuais é admitir apenas que nenhum de nossos casamentos é completo em si e que todos nós necessitamos uns dos outros (tanto casados como solteiros) de forma que teremos sucesso na medida em que conformamos nossos desejos aos caminhos de auto-entrega de Deus. Durante séculos os gays e as lésbicas vem servindo ao bem público pares sem filhos, como solteiros ou cuidando de crianças. Os atos homossexuais devem ser escorados nas mesmas bases da auto entrega amorosa e da fidelidade, como as relações heterossexuais, e da mesma vocação de amor e serviço encontrada em Bíblia. Esto não quer dizer que relações homo e heterossexuais são uma e a mesma coisa. Significa que nossas diferenças podem ser chamadas a uma vida comum.




 Blackwell Publishers Ltd. 1997. Published by Blackwell Publishers Ltd., 108 Cowley Road, Oxford OX4 1JF, UK and 350 Main Street, Malden MA 02148, USA



[37] Sullivan, pp. 40-1.

[38] Ibid., p. 43.

[39] Patncia Beattie Jung and Ralph F. Smith, Heterosexism (Albany: Suny Press, 1993), p. 30.


fim da última parte de Homossexualidade e Práticas Matrimoniais

primeira parte
segunda parte

terceira parte


© DAVID McCARTHY MATZKO
Edição Eletrônica pelo Coletivo Periferia
Traduzido por Railton de Sousa Guedes
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Projeto Periferia, Travessa do Anfiguri 47, CEP 08050-570, S. Miguel Pta., S.Paulo-SP, Brasil
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