AS PALAVRAS
CATIVAS
(Prefacio para um dicionário situacionista)
Mustapha
Khayati
Artigo publicado no # 10 de Internationale Situationniste, março de 1966. Tradução para o espanhol de Juan Pedro García del Campo publicada em Discurso sobre la vida posible: textos situacionistas sobre la vida cotidiana, publicado en Sediciones 11, Hiru, Hondarribia, 1999, edición de César de Vicente Hernando. Contacto: apdo. 184; 20280 Hondarribia (Guipúzcoa). Traduzido para o português pelos editores desta página *.
É impossível libertar-se de um mundo sem libertar-se da linguagem que o oculta e o garante, sem por a nu sua verdade. Como o poder é a mentira permanente, a «verdade social», a linguagem é sua garantia permanente, e o dicionário, sua referência universal. Toda a praxis revolucionária sente a necessidade de um novo campo semântico, de afirmar uma nova verdade; desde os Enciclopedistas até a «crítica da linguagem de pau» estalinista (pelos intelectuais polacos de 1956), esta exigência não deixa de ser afirmada. A linguagem é a morada do poder, o refugio de sua violência policial. Todo o diálogo com o poder é violência, suportada ou provocada. Quando o poder economiza o uso de suas armas, é à linguagem que confia o cuidado de guardar a ordem opressora. Mais ainda, a conjugação de ambos é a expressão mais natural de todo poder.
Passar das palavras para as idéias é só um passo, sempre permitido pelo poder e seus pensadores. Todas as teorias da linguagem, desde o misticismo débil do ser até a suprema racionalidade (opressiva) da máquina cibernética, pertencem a um só e mesmo mundo, o do discurso do poder, considerado como único modo de referência possível, como a mediação universal. Como o Deus cristão é a mediação necessária entre duas consciências e entre a consciência e si mesma, o discurso do poder se instala no coração de toda comunicação e se converte na mediação necessária entre si e si mesmo. Deste modo consegue capturar a contestação, situando-a de antemão em seu terreno, controlando-a, diluindo-a, desde o interior. A crítica da linguagem dominante, seu desvio (détournement), será a prática permanente da teoria revolucionária.
Posto que todo sentido novo é chamado contra-sentido pelas autoridades, os situacionistas instaurarão a legitimidade do contra-sentido, e denunciarão a impostura do sentido garantido e dado pelo poder. Posto que o dicionário é o guardião do sentido existente, nos propomos destruí-lo sistematicamente. A substituição do dicionário, do senhor do falar (e do pensar) de toda linguagem herdada e domesticada, encontrará sua expressão adequada na dissolução revolucionária da linguagem, no desvio (détournement) amplamente praticado por Marx, sistematizado por Lautréamont, e que a Internacional Situacionista põe a disposição de todo o mundo.
O desvio (détournement), que Lautréamont chamava plágio, confirma a tese, afirmada desde faz muito tempo pela arte moderna, da insubmissão das palavras, da impossibilidade para o poder de recuperar totalmente os sentidos criados, de fixar de uma vez por todas o sentido existente, isto é, a impossibilidade objetiva de uma «novlingua». A nova teoria revolucionária não pode avançar sem uma redefinição dos principais conceitos que a sustém. «As idéias melhoram», disse Lautréamont , «o sentido das palavras participam disso. O plágio é necessário: o progresso o implica. Achega-se da frase de um autor, se serve de suas expressões, elimina uma idéia falsa, a substitui por uma idéia justa.» Para salvar o pensamento de Marx, deve-se sempre que necessário, corrigi-lo, reformulá-lo à luz de cem anos de fortalecimento da alienação e das possibilidades de sua negação. Marx precisa ser desviado (détourné) pelos que continuam esta linha histórica, e não ser citado de maneira imbecil pelas mil variedades de recuperadores. Por outro lado, o mesmo pensamento do poder se converte em nossas mãos em uma arma para si mesmo. Desde seu advento, a burguesia triunfante sonhou com uma língua universal que os cibernéticos intentam hoje realizar eletronicamente. Descartes sonhava com uma língua (ancestral da novlingua) na qual os pensamentos se seguiriam como os números, com um rigor matemático: a «mathesis universalis» ou a perenidade das categorias burguesas. Os Enciclopedistas que sonhavam (sob o poder feudal) com «definições tão rigorosas que a tirania não poderia acomodar-se a elas», preparavam a eternidade do futuro poder, como último momento do mundo, da história.
A insubmissão das palavras, desde Rimbaud até os surrealistas, revelou, em uma fase experimental, que a crítica teórica do mundo do poder é inseparável de uma prática que lhe destrua; a recuperação pelo poder de toda arte moderna e sua transformação em categorias opressivas de seu espetáculo reinante constitui a triste confirmação. «O que não destrói o poder é destruído pelo poder». Os dadaistas foram os primeiros a colocar nas palavras sua desconfiança, inseparável de uma vontade de «mudar a vida». Com Sade afirmou o direito a dizer tudo, a libertar as palavras e «substituir a alquimia do verbo por uma verdadeira química» (Breton). A inocência das palavras, no entanto, é conscientemente denunciada, a linguagem é denunciada e a linguagem é assinalada como «a pior das convenções» que se tem que destruir, desmistificar, liberar. Os contemporâneos de dadá não deixaram de sublinhar sua vontade de destruir tudo («tarefa de demolição», se inquietava Gide), perigo que representava para o sentido dominante. Com o dadaismo, chegou a ser um absurdo crer que uma palavra está encadeada sempre a uma idéia: dadá realizou todas as possibilidades do dizer e fechou para sempre as portas da arte como especialidade. Estabeleceu definitivamente o problema da realização da arte. O surrealismo só tem valor enquanto prolongamento desta exigência; é uma reação em suas realizações literárias. Mas a realização da arte, a poesia (no sentido situacionista) significa que não é possível realizar-se em uma «obra» senão, ao contrário, realizar-se sem mais. O «dizer tudo» inaugurado por Sade implicava já a abolição do âmbito da literatura superada (no qual só o que é literário pode ser dito). Só esta abolição, conscientemente afirmada pelos dadaistas, depois de Rimbaud e Lautréamont, não era uma superação. Não há superação sem realização e não se pode superar a arte sem realizá-la. Na prática nem sequer houve abolição, porque depois de Joyce, Duchamp e Dadá, continua pululando uma nova literatura espetacular. O dizer tudo não pode existir sem a liberdade de fazer tudo. Dadá tinha uma possibilidade de realização em Spartakus, na prática revolucionária do proletariado alemão. O fracasso deste fazia o seu inevitável. Nas escolas artísticas ulteriores (sem excluir a quase totalidade de seus protagonistas) se converteu na expressão literária do nada da liberdade quotidiana. A última expressão desta arte de «dizer tudo» privado do fazer é a página em branco... A poesia moderna (experimental, permutacional, espacialista, surrealista ou neodadaista) é o contrário da poesia, o projeto artístico recuperado pelo poder. Abole a poesia sem realizá-la; vive de sua autodestruição permanente. «Para que salvar uma língua», reconhece miseravelmente Mac Bense, «quando já não há nada a dizer?» (confissão de especialista!) Psitacismo ou mutismo, é a única alternativa dos especialistas da permutação. O pensamento e a arte modernos garantidos pelo poder e garantindo-o, se movem nisso que Hegel chamava de «linguagem da adulação». Todos contribuem para o elogio do poder e de seus produtos, aperfeiçoam a reificação e a trivializam. Afirmando que «a realidade consiste na linguagem» ou que a linguagem «só pode ser considerada em si mesma e por si mesma», os especialistas da linguagem se pronunciam pela «linguagem-objeto», pelas «palavras-coisas» e se deleitam com o elogio de sua própria reificação. O modelo das coisas se faz dominante e a mercadoria mais uma vez encontra sua realização, seus poetas. A teoria do estado, da economia, do direito, da filosofia, da arte, tudo tem agora esse caráter de precaução apologética.
Ali de onde o poder separado substitui a ação autônoma das massas, ali portanto de onde a burocracia se apodera da direção de todos os aspectos da vida social, assedia a linguagem e reduz sua poesia a vulgar prosa da informação. Se apropria privadamente da linguagem, como todo o resto e a impõe as massas. A linguagem então comunica suas mensagens e contém seus pensamentos; é o suporte material de sua ideologia. Que a linguagem seja antes de tudo um meio de comunicação entre os homens, a burocracia o ignora. Posto que toda comunicação passa por ela, os homens não tem já nem sequer necessidade de falar-se: devem antes de tudo assumir um papel receptor, na rede de comunicação informacionista a qual é reduzida toda a sociedade, receptores de ordens.
O modo de existência dessa linguagem é a burocracia, seu devir é a burocratização. A ordem bolchevique isolada do fracasso da revolução soviética impôs uma série de expressões mais ou menos mágicas, impessoais, a imagem da burocracia no poder. «Politiburo», «komintern», «cavarmee», «agitprop» são outros tantos nomes misteriosos de organizações especializadas, realmente misteriosas, que se movem na nebulosa esfera do estado (ou na direção do partido) sem relação com as massas, se não é para instituir e reforçar a dominação. A linguagem colonizada pela burocracia se reduz a uma série de fórmulas sem matizes nem inflexões no qual os mesmos nomes são sempre acompanhados pelos mesmos adjetivos e particípios; o nome os governa e, cada vez que aparece, vão automaticamente para a continuação no lugar oportuno. Este «marcar o passo» das palavras traduz uma militarização mais profunda de toda a sociedade, sua divisão em duas categorias principais: a classe dos dirigentes e a grande massa dos executantes. Mas essas mesmas estão chamadas a interpretar outros papéis; estão penetradas do poder mágico de sustentar a realidade opressiva e de encobri-la, de representá-la como a verdade, a única verdade possível. Assim, já não se é «trotskista», senão «hitlero-trotskista», já não há marxismo, senão o «marxismo-leninismo», e a oposição é automaticamente «reacionária» no «regime soviético». A rigidez com a qual se sacralizam as fórmulas rituais tem por objetivo preservar a pureza desta «substância» frente aos fatos que aparentemente a contradizem. A linguagem dos senhores é então tudo, e a realidade nada ou, no máximo, a carcaça dessa linguagem. As pessoas devem, em seus atos, em seus pensamentos e em seus sentimentos, fazer como se seu estado fosse esta razão, esta justiça, esta liberdade proclamadas pela ideologia; o ritual (e a polícia) estão aí para fazer observar esse comportamento (cf. Marcuse, O marxismo soviético).
A decadência do pensamento radical acrescenta consideravelmente o poder das palavras, as palavras do poder. «O poder não cria nada, recupera» (cf. I.S., 8). As palavras forjadas pela crítica revolucionária são como as armas dos partidários abandonadas no campo de batalha: passam para a contra-revolução; e como os prisioneiros de guerra, são submetidas a trabalhos forçados. Nossos inimigos imediatos são os portadores dessa falsa crítica, seus funcionários oficiais. O divórcio entre a teoria e a prática proporciona a base central da recuperação, da petrificação da teoria revolucionária em forma de ideologia, que transforma as exigência práticas reais (cujos indícios de realização existem já na sociedade atual) em sistemas de idéias, em exigências da razão. As ideologias de todo tipo, cães guardiães do espetáculo dominante, são as executoras desta tarefa; e os conceitos mais corrosivos são então esvaziados de seu conteúdo, reenviados à circulação, ao serviço da alienação conservada: o dadaismo ao revés. Se convertem em slogans publicitários (cf. O recipiente prospecto do «Club Mediterráneo»). Os conceitos desta crítica radical correm a mesma sorte que o proletariado; se lhes priva de sua história, se lhes separa de suas raízes: são bons para as máquinas pensantes do poder.
Nosso projeto de libertação das palavras é historicamente comparável à empresa dos enciclopedistas. A linguagem do «dilaceramento» do Aufklärung (para continuar a imagem hegeliana), lhe faltava a dimensão histórica consciente; ainda que pareça impossível, era a crítica do velho mundo feudal decrépito o que ia a sair dela: nenhum dos enciclopedistas era republicano. Seu projeto expressava mais que nada o próprio dilaceramento dos pensadores burgueses; o nosso aponta sobre toda a prática que dilacera o mundo, começando por dilacerar os velhos que o ocultam. Enquanto que os enciclopedistas buscavam a enumeração quantitativa, a descrição entusiasta de um mundo de objetos no qual se desdobra a vitória já presente da burguesia e da mercadoria, nosso dicionário traduz o quantitativo e a vitória possível ainda ausente, o reprimido da história moderna (o proletariado) e o retorno do reprimido. Propomos a libertação real da linguagem, posto que nos propomos situá-lo na prática livre de todo freio. Rechaçamos toda autoridade, lingüística ou de outro tipo; só a vida real autoriza um sentido, e só a praxis o verifica. A disputa sobre a realidade ou não realidade do sentido de uma palavra, isolada da prática, é uma questão puramente escolástica. Colocamos nosso dicionário nesta região libertária que escapa ainda ao poder, mas que é sua única herdeira universal possível.
A linguagem permanece sendo ainda a mediação necessária da tomada de consciência do mundo da alienação (Hegel diria; a alienação necessária), o instrumento da teoria radical que terminará por apoderar-se das massas, porque é a sua; e só então encontrará sua verdade. É primordial então que forjemos nossa própria linguagem, a linguagem da vida real, contra a linguagem ideológica do poder, lugar de justificação de todas as categorias do velho mundo. Devemos desde agora impedir a falsificação das teorias, sua falsificação possível. Utilizamos conceitos determinados, já utilizados pelos especialistas, mas dando-lhes um novo conteúdo, voltando-os contra as especializações que sustentam, e contra os futuros pensadores a soldo que (como Claudel com Rimbaud e Klosowski com Sade) estariam tentados a projetar sua própria podridão sobre a teoria situacionista. As futuras revoluções deverão inventar elas mesmas suas próprias linguagens. Para reencontrar sua verdade, os conceitos da crítica radical serão reexaminados um a um: a palavra alienação, por exemplo, um dos conceitos-chave para a compreensão da sociedade moderna, deve ser desinfetado depois de haver passado pela boca de um Axelos. Todas as palavras, servidoras como são do poder, estão com este na mesma relação que o proletariado e, como ele, são instrumentos e agentes da futura libertação. Pobre Revel! Não há palavras proibidas; na linguagem, como sucederá em tudo o mais, tudo está permitido. Proibir-se o emprego de uma palavra é renunciar ao emprego de uma arma utilizada por nossos adversários.
Nosso dicionário
será uma espécie de chave com a qual poder-se-á decifrar as informações, e dilacerar
o véu ideológico que recobre a realidade. Daremos as traduções possíveis que
permitem apreender os diferentes aspectos da sociedade do espetáculo e mostrar
como os menores indícios (os menores sinais) contribuem para mantê-la. Se trata
de alguma forma de um dicionário bilingüe, porque cada palavra possui um sentido
«ideológico» do poder e um sentido real, que cremos que corresponde
à vida real na atual fase histórica. Também poderemos determinar a cada passo
as distintas posições das palavras na guerra social. Se o problema da ideologia
é saber como descer do céu das idéias ao mundo real, nosso dicionário será uma
contribuição à elaboração da nova teoria revolucionária, na qual o problema
é saber como passar da linguagem para a vida. A apropriação real das palavras
que trabalham não pode se realizar a margem da apropriação do trabalho mesmo.
O estabelecimento da atividade criadora livre será, ao mesmo tempo, o estabelecimento
da verdadeira comunicação, finalmente livre, e a transparência das relações
humanas substituirá a pobreza das palavras sob o antigo regime da opacidade.
As palavras não deixarão de se produzirem enquanto os homens não deixarem de
fazê-las.
Mustapha Khayati, março de 1966