Preliminares Para uma Definição
da Unidade de um Programa Revolucionário

P. Canjuers, G. E. Debord

 

Este documento foi originalmente redigido em 1960 como plataforma para a ação comum da Internacional Situacionista e do grupo marxista «Socialismo ou Barbárie». Mesmo sem ter sido colocado em prática nem inaugurado uma ação comum entre esses dois grupos, explica o novo rumo adotado pela I.S. nos anos 60, e alerta para a necessidade de um novo espaço de ação revolucionária sobre a cultura. Essa tradução é baseada no texto em espanhol de Toni Malagrida publicado no nº 28 dos folhetos Etecétera.


Capitalismo, a sociedade sem cultura

1 - Pode-se definir a cultura como o conjunto de instrumentos mediante os quais uma sociedade pensa e manifesta a si mesma; inclusive levando em conta todos os aspectos do emprego de sua plusvalia disponível, ou seja, a organização de tudo o que ultrapassa às necessidades imediatas para sua reprodução.

Todas as formas de sociedade capitalista aparecem hoje fundadas em última instancia sobre a divisão estável e generalizada -- no plano das massas -- entre dirigentes e executantes. Transplantada ao plano da cultura, esta caracterização implica na separação entre o «compreender» e o «fazer», e na incapacidade de organizar (sobre a base de uma exploração permanente) para qualquer finalidade o movimento sempre acelerado da dominação da natureza.

Com efeito, dominar a produção para a classe capitalista significa obrigatoriamente monopolizar a compreensão da atividade produtiva do trabalho. Para lográ-lo, o trabalho é, por um lado, cada vez mais segmentado, ou seja, torna-se incompreensível para quem o leva a cabo; por outro lado, é reconstituído como uma unidade por um órgão especializado. Mas este órgão é subordinado à direção propriamente dita, que é a única que teoricamente possui a compreensão do conjunto e que impõe sentido à produção, sob a forma de objetivos gerais. Não obstante, esta compreensão e esses objetivos são por si mesmos permeados pelo arbitrário, separados da prática e de todos os conhecimentos realistas, que não tem interesse em transmitir.

A atividade social global é dessa forma dividida em três níveis: a oficina, o escritório, a administração.

A cultura, no sentido da compreensão ativa e prática da sociedade, é de igual maneira cortada nesses três momentos. De fato a unidade não mais se recompõe pela permanente ingerência de alguns homens que estão fora da esfera limitada pela organização social, ou seja, de uma maneira clandestina e parcial.

2 - O mecanismo de constituição da cultura se dirige assim a uma reificação das atividades humanas, que assegura a fixação do ativo e sua transmissão sobre o modelo da transmissão de bens; que se esforça por garantir uma dominação do passado sobre o futuro.

Uma dinâmica cultural como esta entra em contradição com o imperativo constante do capitalismo, que é o de obter a adesão dos homens e apelar o tempo todo para sua atividade criativa, dentro da estreita margem onde estão aprisionados. Em suma, a ordem capitalista vive sob a condição de projetar continuamente diante dele um passado novo. Isto pode ser comprovado particularmente no setor propriamente cultural, onde toda publicidade periódica é dedicada ao lançamento de novidades.

3 - O trabalho tende dessa forma a ser conduzido à pura execução, e convertido em absurdo. Na medida em que a técnica avança, sua evolução é diluída, o trabalho é simplificado, e seu absurdo se aprofunda.

Mas este absurdo se estende às resoluções e aos laboratórios: as determinações finais de sua atividade se encontram fora deles, na esfera política da direção do conjunto da sociedade.

Por outro lado, na medida em que a atividade dos despachos e dos laboratórios se integra ao funcionamento conjunto do capitalismo, o imperativo de uma recuperação desta atividade lhe obriga a introduzir a divisão capitalista do trabalho, ou seja, a segmentação e a hierarquização. O problema lógico da síntese científica é então amplificado com o problema social da centralização. O resultado destas transformações é, contra o que possa parecer, uma incultura generalizada em todos os níveis do conhecimento: a síntese científica já não mais se efetua, a ciência já não mais compreende a si mesma. A ciência já não proporciona para os homens um esclarecimento veraz no que diz respeito à sua relação com o mundo; destruiu as antigas representações, sem ser capaz de aportar outras novas. O mundo se torna ilegível enquanto unidade; apenas os especialistas possuem alguns fragmentos de racionalidade, mas se vêem incapazes de transmiti-los.

4 - Este estado produz, de fato, um certo número de conflitos. Existe, por um lado, um conflito entre a técnica, a lógica própria de desenvolvimento de métodos materiais (e também mais amplamente a lógica do desenvolvimento das ciências), e por outro lado, a tecnologia como uma aplicação rigorosamente selecionada para as necessidades da exploração dos trabalhadores e a frustração de sua resistência. Existe um conflito entre os imperativos capitalistas e as necessidades elementares dos homens. Dessa forma a contradição entre as práticas nucleares atuais e o gosto pela vida plena encontra eco em alguns aspectos até mesmo nos protestos moralizantes, mas as modificações que o homem pode exercer sobre sua própria natureza (que vai desde cirurgia estética às mutações genéticas dirigidas) exigem também uma sociedade controlada por ela mesma, a abolição de todos os dirigentes especializados em todas partes, a vastidão das novas possibilidades nos coloca ante esta alternativa estimulante: a solução revolucionaria ou a barbárie da ciência-ficção. O compromisso representado pela sociedade atual não pode viver mais na forma de um status quo que se lhe escapa por todas as partes, de forma incessante.

5 - O conjunto da cultura atual pode ser qualificado de alienado no sentido de que toda atividade, todo instante da vida, toda idéia, todo comportamento não encontra seu sentido senão fora de si, em um além longínquo que, embora não seja mais o céu, não deixa por isso de ser menos insensato -- a utopia, no sentido próprio da palavra, domina de fato a vida do mundo moderno.

6 - O capitalismo havendo esvaziado, da oficina ao laboratório, a atividade produtiva de toda significação própria, tem-se esforçado por situar o sentido da vida no ócio e de reorientar a partir dali a atividade produtiva. Para a moral que prevalece, ao ser a produção o inferno, o consumo seria agora a verdadeira vida; o uso dos bens.

Por isso os bens, em sua maioria, não tem outro uso que o de satisfazer algumas necessidades privadas, hipertrofiadas por ter que responder às necessidades do mercado. O consumo capitalista impõe um movimento de redução dos desejos pela regularidade da satisfação de necessidades artificiais, que permanecem como necessidades sem haver sido jamais desejos -- sendo os desejos autênticos obrigados a permanecer em um estado de não-realização (ou compensados em forma de espetáculos). Moral e psicologicamente, o consumidor é na realidade consumido pelo mercado. Ademais, esses bens carecem de um emprego social, porque o horizonte social está obstruído pela fábrica; fora da fábrica tudo está disposto como um deserto (a cidade-dormitório, a rodovia, o estacionamento...). o lugar do consumo é o deserto.

Não obstante, a sociedade constituída em fábrica domina zelosamente este deserto. O verdadeiro uso das mercadorias é simplesmente um adorno social, todos os sinais de prestígio e diferenciação adquiridos se tornam obrigatórios para todos, como tendência fatal da mercadoria industrial. A fábrica se reproduz nos momentos de ócio sob a forma de sinais, sempre com uma margem de transposição possível, suficiente para que permita compensar algumas frustrações. O mundo do consumo é na realidade a performance do espetáculo de todos para todos, ou seja, da divisão, do estranhamento e da não-participação de todos. A esfera diretiva é o severo diretor de cena deste espetáculo, composto automática e pobremente em função de imperativos exteriores à sociedade, traduzidos em valores absurdos (e os diretores também, embora homens vivos, podem ser considerados também como vítimas desse diretor de cena autômato).

7 - Fora do trabalho, o espetáculo é a forma dominante de relacionar os homens entre si. É somente através do espetáculo que os homens adquirem um conhecimento -- falseado -- de alguns aspectos do conjunto da vida social, desde as proezas científicas ou técnicas até os modos de conduta reinantes, passando pelos cômputo dos Grandes. A relação entre autores e espectadores não é mais que uma transposição da relação fundamental entre dirigentes e executantes. Esta responde perfeitamente às necessidades de uma cultura reificada e alienada: a relação que se estabelece no momento do espetáculo é, por si mesma, portadora irredutível da ordem capitalista. A ambigüidade de toda «arte revolucionaria» é tal que o caráter revolucionário de um espetáculo é sempre solapado por aquilo que há de reacionário em todo espetáculo.

Essa é a razão pela qual o aperfeiçoamento da sociedade capitalista implica, em alto grau, na melhoria do mecanismo de exibição do espetáculo. Mecanismo complexo, evidentemente, pois se ele deve ser em primeiro lugar o difusor da ordem capitalista, não pode aparecer em público como o delírio do capitalismo: deve alcançar o público integrando elementos da representação que correspondam -- por fragmentos -- com a racionalidade social. Deve tergiversar os desejos cuja satisfação proíbe a ordem dominante. Por exemplo, o turismo moderno de massas mostra cidades ou paisagens não para satisfazer o desejo autêntico de viver em tais locais (humanos e geográficos) mas para oferece-los como um puro espetáculo veloz e superficial (e finalmente para permitir fazer coleções de lembranças de tais espetáculos, como uma forma de valor social). O strip-tease é a forma mais clara de erotismo degradado em mero espetáculo.

8 - A evolução, e a conservação da arte tem sido requeridas por estas linhas de força. De um lado, o arte é pura e simplesmente recuperada pelo capitalismo como meio de acondicionamento da população. Por outro lado, se tem beneficiado do outorgamento pelo capitalismo de uma concessão perpetua e privilegiada: a de ser uma atividade criativa pura, limitada pela alienação de todas as outras atividades (o que lhe converte de fato no mais caro de todos os adornos sociais). Mas ao mesmo tempo, a esfera reservada à «atividade criativa» é a única que delineia praticamente, em toda sua amplitude, a questão do emprego profundo da vida, a questão da comunicação. Aqui se fundam, na arte, os antagonismos entre partidários e adversários das razões para viver oficialmente ditadas. Ao sem sentido e à separação estabelecida corresponde a crise geral dos procedimentos artísticos tradicionais, crise que se une à experiência ou à reivindicação de experimentar outros usos da vida. Os artistas revolucionários são aqueles que chamam à intervenção, e que intervém eles mesmos no espetáculo para perturbá-lo e destruí-lo.

II. a política revolucionária e a cultura

1 - O movimento revolucionário não pode ser outra coisa a não ser a luta do proletariado pela dominação efetiva, e a transformação deliberada, de todos os aspectos da vida social; e em primeiro lugar pela gestão da produção e a direção do trabalho pelos trabalhadores que assumem diretamente a totalidade das decisões. Uma mudança tal implica, imediatamente, na transformação radical da natureza do trabalho, e a constituição de uma tecnologia nova que tenda a assegurar a dominação dos trabalhadores sobre as máquinas.

Se trata de uma autêntica inversão do significado do trabalho que entranhará numerosas conseqüências, dentre as quais a principal é sem duvida o deslocamento do centro de interesse da vida, desde o ócio passivo até a atividade produtiva de um novo tipo. Isto não significa que, de um dia para outro, todas as atividades produtivas se tornem apaixonantes. Mas trabalhar por torná-las apaixonantes, por uma reconversão geral e permanente dos fins assim como dos meios do trabalho industrial, será em todo caso a paixão mínima de uma sociedade livre.

Todas as atividades tenderão a fundir-se em um curso único, mas infinitamente diversificado, eliminando a separação entre ócio e trabalho. A produção e o consumo se anularão pelo uso criativo dos bens da sociedade.

2 - Um programa tal não propõe aos homens outra razão de viver além da construção por eles mesmos de sua própria vida. Isto supõe, não apenas que os homens sejam objetivamente fartos de necessidades reais (fome, etc.,), mas sobretudo que comecem a projetar diante de si seus desejos -- em vez das atuais compensações -- que rechacem todas as condutas ditadas por outros para reinventar sempre sua realização única, que não considerem a vida apenas como a conservação de um certo equilíbrio, mas que aspirem a um enriquecimento sem limite de seus atos.

3 - A base de tais reivindicações hoje não é uma utopia qualquer. É em primeiro lugar a luta do proletariado, em todos os níveis, pela desestabilização da sociedade dominante, e toda forma de rechaço explícito ou de indiferença profunda deve ser combatida constantemente, por todos os meios. É também a lição do fracasso essencial de todas as tentativas de mudanças menos radicais. E é enfim a exigência que se torna realidade em certos comportamentos extremos da juventude (onde a vestimenta se mostra como a menos eficaz) e em alguns meios artísticos, neste momento.

Mas esta base contém também a utopia, enquanto invenção e experimentação de soluções aos problemas atuais sem que para isso importe saber se as condições para sua realização já estão dadas (admoeste-se a ciência moderna para que faça de agora em diante um uso central desta experimentação utópica). Esta utopia momentânea, histórica, é legítima; e é necessária pois é nela que se alimenta a projeção de desejos sem os quais a vida livre estaria vazia de conteúdo. Tal utopia é inseparável da necessidade de dissolver a ideologia atual da vida cotidiana, e dos laços de sua opressão, para que a classe revolucionária descubra, sem enganos, os usos existentes e as liberdades possíveis.

A prática da utopia não pode sem embargo manter seu sentido sem unir-se estreitamente à prática da luta revolucionaria. E esta não pode prescindir da utopia sem risco de esterilidade. Os pesquisadores de uma cultura experimental não podem esperar realizá-la sem o triunfo do movimento revolucionário, que não poderá ele mesmo instaurar as condições revolucionarias autênticas sem retomar os esforços da linha de frente cultural desde a crítica da vida cotidiana até sua livre reconstrução.

4 - a política revolucionária tem então por conteúdo a totalidade dos problemas da sociedade. Tem por forma uma prática experimental da vida livre através da luta organizada contra a ordem capitalista. O movimento revolucionário deve dessa forma chegar a ser um movimento experimental. No presente, onde quer que exista, deve desenvolver e resolver de forma tão profunda quanto possível os problemas de uma microsociedade revolucionária. Esta política completa culmina no momento da ação revolucionaria, quando as massas intervêm bruscamente para fazer a historia, e descobrem também sua ação como experiência direta e como festa. Iniciam então uma construção consciente e coletiva da vida cotidiana que, um dia, já não mais será detida.

Em 20 de julho de 1960.


P. Canjuers, G. E. Debord

 

 


Dossiê e textos de Debord publicados pela Biblioteca Virtual Revolucionária

Dossiê Internacional Situacionista

Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana


Teses sobre a revolução cultural

Introdução a uma crítica da geografia urbana


Preliminares para uma definição da unidade de um programa revolucionário



MAIS ESCRITOS DE DEBORD (versões retiradas de http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 e adaptadas)

A Sociedade do Espetáculo
Panegírico



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