Questionário
Internacional
Situacionista
Questionário paródico publicado no # 9 de Internacional Situacionista
(9-VIII-64). Publicado no # 8 do fanzine Amano (Agosto-97) em espanhol. Publicado
na internet pelo Archivo Situacionista Hispano. Traduzido de espanhol para o
português pelos editores desta página. *
2. A internacional situacionista é um movimento político?
As palavras «movimento político» escondem hoje a atividade especializada
de chefes de grupos e partidos, que se baseiam sobre a passividade organizada
de seus militantes, a força opressiva de seu futuro poder. A I.S. não tem nada
a ver com o poder hierárquico, sob qualquer forma que se apresente, não é por
conseguinte nem um movimento político, nem uma sociologia da mistificação política.
A I.S. se propõe ser a mais alta expressão da consciência revolucionária internacional,
esforçando-se em elucidar e coordenar os gestos de negação e os sinais de criatividade
que definem os novos contornos do proletariado, a vontade irredutível de emancipação.
Encarnada na espontaneidade das massas uma atividade tal é incontestavelmente
política, a menos que se questione a qualidade dos agitadores mesmos. Do mesmo
modo que as correntes radicais aparecidas no Japão (a ala extremista do movimento
Zengakuren), no Congo, na clandestinidade espanhola, a I.S. contribui com um
apoio crítico e por conseguinte procura ajudar praticamente. Mas contra todos
os «programas transitórios» da política especializada, a I.S. se
remete a uma revolução permanente da vida quotidiana.
3. A internacional situacionista é um movimento artístico?
Uma grande parte da crítica situacionista da sociedade de consumo consiste em
mostrar até que ponto os artistas contemporâneos, ao abandonarem a riqueza do
excesso contido para explorá-la, durante o período de 1920-25, se condenaram
em sua maior parte a fazer uma arte autoreferencial. Os movimentos artísticos
não são, depois de então, nada mais que ecos imaginários de uma explosão que
nunca ocorreu, que ameaçou e ameaça ainda as estruturas da sociedade. A consciência
de tal abandono e de suas implicações contraditórias (a vida e a vontade de
um retorno a violência inicial) fez da I.S. o único movimento que pode, englobando
a sobrevivência da arte na arte de viver, responder ao projeto do artista autêntico.
Somos artistas só porque já não somos mais artistas: vimos realizar a arte.
4. A internacional situacionista é uma manifestação niilista?
A I.S. nega o papel, que é tudo o que se está disposto a ser concedido a ela,
no espetáculo da decomposição. A superação do niilismo passa pela decomposição
do espetáculo; a I.S. trata de agir neste sentido. Tudo o que se elabora e se
constrói fora de tal perspectiva não tem necessidade da I.S. para destruir a
si mesmo; mas também é certo que, na sociedade de consumo, os terrenos vazios
do solapamento espontâneo oferecem aos novos valores um campo de experimentação
onde a I.S. não pode introduzir-se. Não podemos construir a não ser sobre as
ruínas do espetáculo. Em todos os lugares a previsão, perfeitamente fundada,
de uma destruição total, obriga a não construir nada sobre a luz da totalidade.
5. As posições situacionistas são utópicas?
A realidade rebaixa a utopia. Entre a riqueza das possibilidades técnicas atuais
e a pobreza de seu uso pelos dirigentes da ordem global não pode haver nada
mais que uma ponte imaginária. Queremos por a organização material a disposição
da criatividade de todos, como as massas se tratam de fazer por todos os lugares
no momento da revolução. É um problema de coordenação ou de tática, como se
quiser. Tudo o que nós propomos é realizável: seja imediatamente, seja a curto
prazo, desde o momento em que se comecem a por em prática nossos métodos de
investigação, de atividade.
6. Vocês julgam necessário se chamarem assim, «situacionistas»?
Na ordem existente, onde as coisas ocupam o lugar dos homens, todo nome está
comprometido. Sem dúvida, este que escolhemos leva em si mesmo sua própria crítica,
enquanto se opõe àquele outro de «situacionismo» que outros nos
aplicaram, que desaparecerá no momento em que cada um de nós seja situacionista
em todos os lugares e não haja mais proletários lutando pelo fim do proletariado.
Num sentido imediato se trata também de um nome irônico, que tem o mérito de
abrir uma brecha entre a antiga incoerência e a nova exigência. O que mantém
a inteligência extraviada desde faz alguns anos é precisamente essa brecha.
7. Qual é a originalidade dos situacionistas, como grupo delimitado?
Nos parece que existem três pontos principais que justificam a importância que
nos atribuímos como grupo organizado de teóricos e experimentadores. Em primeiro
lugar, nós fazemos, pela primeira vez, uma nova crítica, coerente, da sociedade
que se desenvolve atualmente, do ponto de vista revolucionário; esta crítica
está profundamente ancorada na cultura e na arte deste tempo quanto a sua elucidação
(evidentemente, este trabalho está longe de estar completo). Em segundo lugar,
praticamos a ruptura completa e definitiva com tudo aquilo que nos abriga e
acorrenta. Isto é preciso em uma época em que as diversas espécies de resignação
estão sutilmente imbricadas e são solidárias. Em terceiro lugar, inauguramos
um novo estilo de relações com nossos «partidários»; nós negamos
absolutamente o discipulado, nada nos interessa a não ser a participação mais
plena; e em lutar em um mundo de pessoas autônomas.
8. Por que vocês não falam sobre o passado da I.S.?
Se falou bastante freqüentemente, por parte dos possuidores especializados do
pensamento moderno, em liquidação sobre isso, mas foi escrito muito pouco. Num
sentido mais geral, é devido a nós negarmos o termo «situacionismo»,
que seria a única categoria suscetível de nos introduzir no espetáculo reinante,
de nos integrar sob a forma de doutrina coagulada contra nós mesmos, sob a forma
de ideologia no sentido de Marx. É normal que o espetáculo que nós negamos
nos negue. Se fala com gosto dos situacionistas como indivíduos, para tentar
separá-los da contestação do conjunto, sem a qual por outro lado não seriam
uns indivíduos tão «interessantes». Fala-se dos situacionistas na
medida em que deixam de sê-lo (as variedades rivais de «nashismo»,
em vários países, tem unicamente em comum o pretender manter uma relação qualquer
com a I.S.). Os cães de quintal do espetáculo retomam sem especificá-los fragmentos
da teoria situacionista para lança-los contra nós. Eles se inspiram, como é
normal, na luta pela sobrevivência do espetáculo. Necessitam então ocultar a
fonte, ou seja, a coerência de tais idéias e não só por vaidade de plagiário.
Ademais os intelectuais vacilantes não ousam falar abertamente da I.S. porque
o falar implica uma tomada de partido mínima: dizer claramente o que se nega
em contrapartida do que se defende. Muitos crêem bem injustamente que aparentar
se manter na ignorância poderá libertá-los de sua responsabilidade para mais
tarde.
9. O que vocês contribuem para o movimento revolucionário?
Por desgraça não existe tal movimento. A sociedade contêm certamente as contradições,
e muda. O que retorna, de uma forma sempre nova, faz possível e necessária uma
atividade revolucionária que atualmente não existe, em nenhum lugar ainda, sob
a forma de movimento organizado. Por conseguinte não se pode «apoiar»
um movimento tal, a não ser construi-lo: defini-lo e ao mesmo tempo experimentá-lo.
Dizer que não existe um movimento revolucionário é o primeiro gesto, indispensável,
em favor de tal movimento. O resto é reexplorar o desejo do passado.
10. Vocês são marxistas?
Bem entendido que Marx disse: «eu não sou marxista».
11. Existe alguma relação entre as teorias de vocês e
suas vidas reais?
Nossas teorias não são outra coisa que a teoria de nossa vida real e da possível
experimentação ou estimativa dentro dela. Por parcelar que sejam, com relação
a nova ordem, os campos de atividade disponíveis. Não nos orientamos pelo medo.
tratamos o inimigo como inimigo, este é o primeiro passo que recomendamos a
todo o mundo, como aprendizagem acelerada do pensamento. Em todos os lugares
sustentamos incondicionalmente todas as formas de liberdade dos costumes, tudo
o que a canalha burguesa ou burocrática chama libertinagem. Está evidentemente
excluído que nós preparamos a revolução da vida quotidiana mediante o ascetismo.
12. O situacionistas são a vanguarda da sociedade dos ociosos?
A sociedade dos ociosos é uma aparência que recobre um certo tipo de produção-consumo
do espaço-tempo social. Se o tempo de trabalho produtivo propriamente dito se
reduz, o exército de reserva da vida industrial trabalhará no consumo. Todo
o mundo é sucessivamente operário e matéria-prima na indústria das férias, dos
prazeres, do espetáculo. O trabalho existente é o alfa e o ômega da vida existente.
A organização do consumo, junto a organização dos prazeres, deve equilibrar
exatamente a organização do trabalho. O «tempo livre» é uma medida
irônica no esquema de um tempo pré-fabricado.
Rigorosamente, este trabalho não poderá dar mais que esse ócio tanto para a
elite ociosa -- de fato, cada vez mais, semiociosa -- como para as massas que
ascendem aos prazeres momentâneos. Nenhuma barreira de chumbo pode isolar, por
pouco que seja o tempo, nem o tempo completo de um fragmento da sociedade, da
radioatividade que difunde o trabalho alienado; é o que determina que a forma
da totalidade dos produtos e da vida social seja esta e não outro.
13. Quem financia vocês?
Não tivemos nunca outra finança, e de uma forma extremamente precária, que nosso
próprio emprego na economia cultural da época. Este emprego está submetido a
uma contradição. Temos suficientes capacidades criativas para ter um «sucesso»
quase seguro; mas temos uma exigência tão rigorosa de independência e de perfeita
coerência entre nosso projeto e cada uma de nossas realizações presentes (por
exemplo, nossa definição de uma produção artística intisituacionista) que somos
quase totalmente inaceitáveis para a organização dominante da cultura, inclusive
em suas manifestações mais secundárias. O estado de nossos recursos parte deste
componente. Ver, a este propósito, o que escrevemos no nº 8 da revista «Internacional
Situacionista» (1964) sobre «os capitais que não faltaram jamais
às empresas nazistas» e a nossas condições inversas (última imagem desta
revista).
14. Quantos vocês são?
Um pouco mais que o núcleo inicial de guerrilha em Sierra Maestra mas com menos
armas. Um pouco menos que os delegados que estiveram em Londres em 1864 para
fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores, mas com um programa mais
coerente. Tão firmes como os gregos da Termópilas mas com um porvir mais belo.
15. Que valor vocês atribuem a um questionário como este?
O questionário se manifesta como uma forma de diálogo fáctico que converge hoje
obsessivamente todas as psicotécnicas do espetáculo (a passividade regozijadamente
assumida sob um disfarce grosseiro de «participação», de atividade).
Mas nós podemos sustentar, a partir de uma interrogação incoerente, reificada,
as posições exatas. De fato estas posições não são respostas, no sentido de
que elas não revertem sobre as perguntas, mas no sentido de que as subvertem.
São respostas tais que conseguem transformar as questões de tal modo que o verdadeiro
diálogo poderia começar após estas respostas. No presente questionário, todas
as perguntas estão falseadas -- e entretanto nossas respostas são verdadeiras.
Internacional Situacionista, 1964
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