Nem todos se preocupam com a questão de saber se a vida tem sentido.
Alguns - e esses não são os mais infelizes - têm a mente de uma
criança, que ainda não questionou tais coisas; outros, tendo
desaprendido a questão, já não as questionam. Entre ambos estamos
nós próprios, aqueles que procuram. Não conseguimos projectar-nos de
novo no nível do inocente, para quem a vida ainda não olhou com os
seus olhos escuros e misteriosos, e não nos interessa juntarmo-nos aos
saturados e fatigados que já não acreditam em qualquer sentido na
existência por não terem conseguido encontrar qualquer sentido na sua
própria vida.
Aquele que não conseguiu atingir o objectivo que procurava na sua
juventude, e que não encontrou nada que o substituísse, pode lamentar
a falta de sentido da sua própria vida, mas pode ainda acreditar que a
existência em geral tem sentido e pensar que tal sentido está presente
nos casos em que uma pessoa atingiu os seus objectivos. Mas aquele que,
depois de muito esforço, conseguiu atingir os seus propósitos, e que
depois descobriu que o seu prémio não é tão valioso como parecia, de
alguma maneira sente-se enganado - confronta-se abertamente com a
questão do valor da vida e diante dele, como um solo sombrio e
devastado, permanece o pensamento de que, para além de todas as coisas
serem transitórias, em última análise tudo é em vão. . . .
Qual é a razão para a estranha contradição que consiste no facto
de o sucesso e a satisfação não se fundirem num sentido apropriado?
Não parece prevalecer aqui uma lei inexorável da natureza? O ser
humano estabelece objectivos para si próprio, e enquanto os persegue
apoia-se na esperança, é verdade, mas ao mesmo tempo vive atormentado
pela dor do desejo insatisfeito. Logo que atinge o objectivo, no
entanto, depois da primeira sensação de triunfo segue-se
inevitavelmente um sentimento de desolação. Permanece um vazio, que
aparentemente só pode culminar com a emergência dolorosa de novas
ambições, com o estabelecimento de novos objectivos. Assim recomeça o
jogo, e a existência parece estar condenada a ser uma oscilação
incansável entre dor e aborrecimento que termina com o nada que é a
morte. Esta é a célebre linha de pensamento que está na base da
visão pessimista da vida de Schopenhauer. Não haverá uma maneira de
lhe poder escapar? . . .
Na verdade, nunca encontraremos um sentido último na vida se a
virmos apenas sob o aspecto do propósito.
Não sei, no entanto, se o fardo dos propósitos pesou alguma vez
mais sobre a humanidade do que no momento presente. O presente idolatra
o trabalho. Mas trabalho significa actividade dirigida para objectivos,
direcção para um propósito. Supõe que estás no meio da multidão
numa rua agitada de uma cidade e imagina-te a parar os transeuntes, um
por um, para lhes perguntares: «Onde é que vais tão depressa? Que
assunto importante tens de resolver?». E se, depois de conheceres o
objectivo imediato, perguntasses depois pelo propósito desse objectivo,
e depois pelo propósito desse propósito, acabarias sempre por chegar
ao seguinte propósito depois de poucos passos na sequência: manter a
vida, ganhar o próprio pão. E manter a vida porquê? Para esta
questão dificilmente conseguirias extrair uma resposta inteligível a
partir da informação obtida. . . .
O núcleo e valor último da vida só pode residir em estados que
existem em função de si próprios e que contêm em si próprios a
satisfação que proporcionam. . . . Ora, a vida significa movimento e
acção, e se desejamos descobrir um sentido nela devemos procurar
actividades que contêm o seu valor e propósito em si próprias,
independentemente de quaisquer objectivos exteriores; actividades,
portanto, que não são trabalho, no sentido filosófico do termo. . . .
Existem realmente tais actividades. Para sermos consistentes, devemos
chamar-lhes jogos, já que este é o nome para a acção livre e sem
propósito, isto é, para a acção que na verdade contém em si o seu
propósito. . . .
Jogar, como entendemos a noção, é qualquer actividade que decorre
inteiramente em função de si própria, independentemente dos seus
efeitos e consequências. Não há nada que impeça esses efeitos de
serem de um tipo útil ou valioso. Se forem, tanto melhor; a acção
continua a ser jogo, pois já contém o seu valor em si própria. Bens
valiosos podem proceder dela, tal como da actividade intrinsecamente
não aprazível em que se procura atingir um propósito. Por outras
palavras, também o jogo pode ser criativo; o seu resultado pode
coincidir com o do trabalho. . . .
Olhemos à nossa volta: onde encontramos jogo criativo? O exemplo
mais brilhante (que ao mesmo tempo é mais do que um simples exemplo)
encontra-se na criação do artista. A sua actividade, que consiste em
dar forma ao seu trabalho através da inspiração, é ela própria um
prazer, e em parte é por acidente que valores duradouros resultam dela.
Enquanto trabalha, o artista pode não pensar no benefício desses
valores, pode nem pensar na sua recompensa, já que de outro modo o acto
de criação ficará corrompido. O prémio que abundantemente recompensa
não é a corrente de ouro, mas a canção que brota do coração! Assim
se sente o poeta, e também o artista. E quem se sente assim naquilo que
faz é um artista.
Considere-se, por exemplo, o cientista. Conhecer, também, é um puro
jogo do espírito, a procura da verdade científica é um fim em si
mesmo para ele. O cientista adora medir os seus poderes contra os
enigmas que a realidade lhe propõe, independentemente dos benefícios
que possam de alguma maneira resultar da sua actividade. . . .
Toda a nossa cultura terá que se concentrar num rejuvenescimento do
ser humano, rejuvenescimento no sentido filosófico, de tal maneira que
todas as nossas actividades se libertem gradualmente do domínio dos
propósitos, que até as acções necessárias para a vida se
transformem em jogo. . . .
Toda a educação deverá encarregar-se de que nada da criança se
perca no homem à medida que este amadurece, de que a separação entre
a adolescência e a idade adulta vá desaparecendo gradualmente, de tal
forma que o homem permaneça um rapaz até aos seus últimos anos, e a
mulher uma rapariga, apesar de ser uma mãe. Se precisamos de uma regra
de vida, que seja esta: «Preserva o espírito da juventude!». Pois
este é o sentido da vida.
Pedro Galvão
galv@clix.pt