CIDADANIA

Modernização e Cidadania: Heranças de um Pacto Conservador

Érica Vieira de Almeida - Érica Vieira de Almeida é assistente social e professora assistente da UFF/Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Campos dos Goitacazes, RJ. Mestre em Serviço Social na Escola de Serviço Social da UFRJ.

E-mail: ericalmeida@uol.com.br.

Esta análise trata da lenta e nem sempre linear trajetória da cidadania brasileira, ou seja, das diferentes conjunturas históricas em que se deram a emergência, a ampliação, bem como a restrição dos direitos civis, políticos e sociais. Ao destacar o vínculo entre o padrão deficitário de cidadania consolidado no Brasil e o processo de modernização capitalista aqui realizado e adequadamente caracterizado, por um conjunto de autores, como uma revolução "pelo alto", o presente trabalho procura demonstrar que o padrão de modernização aqui implementado não foi capaz de romper com os interesses das "velhas" oligarquias, conservando um conjunto de elementos da ordem anterior. Nesse sentido, este artigo procurará recuperar, a partir de uma análise histórica que prioriza o protagonismo das classes e frações de classes, a natureza excludente e conservadora dos pactos políticos que conduziram o processo de modernização capitalista no país e suas conseqüências, sobretudo, quanto aos impasses à construção da cidadania e de uma esfera pública democrática.

Considerando que uma das dimensões da cidadania está diretamente associada à democratização das relações entre Estado e sociedade, nossa análise procura demonstrar que, ao contrário das formações econômico-sociais que realizaram uma revolução democrático-burguesa, nas quais o protagonismo das forças populares foi imprescindível à formação de um projeto revolucionário contrário ao ancien régime, o Brasil não realizou a sua transição ao capitalismo por meio de um "corte revolucionário" com o padrão societário anterior. A ausência de participação das classes subalternas no projeto de modernização da nação brasileira impediu a efetivação de um projeto nacional hegemônico, no qual a integração social dessas mesmas classes figurasse como questão central, revelando a face excludente de uma sociedade que conheceria a cidadania apenas de forma parcial e incompleta.

Ao colocar em debate o vínculo entre "revolução passiva à brasileira"1 e a consolidação de uma determinada cidadania que vem sendo qualificada pelos diferentes autores como "deficitária", "incompleta", "regulada", "inacabável", "imperfeita", "virtual", "passiva", dentre outras, gostaríamos de chamar a atenção não apenas para o modo pelo qual o Brasil se modernizou, mas, sobretudo, para a presença de determinadas particularidades no processo de modernização brasileiro que terão um papel fundamental na constituição desse vínculo.

O reconhecimento de uma alternativa histórica à revolução burguesa "clássica", de tipo jacobino, na transição para o capitalismo permitiu que autores como Lênin, Gramsci e Barrington Moore Jr.2 desenvolvessem uma rica e complexa análise em torno das formações econômico-sociais que não se modernizaram a partir de uma revolução nacional nos moldes daquelas realizadas na Inglaterra (século XVII), na França e nos Estados

Unidos (século XVIII). Embora os conceitos de "via-prussiana" (Lênin), "revolução passiva" (Gramsci) e "modernização conservadora" (Moore) carreguem consigo as "especificidades" de distintas formações econômico-sociais, na medida em que foram elaborados para interpretá-las, eles conseguem traduzir um conjunto de relações históricas responsáveis pela determinação dos processos de revolução "pelo alto" ou "revolução sem revolução".

O compartilhamento da tese plurilinear de que a revolução democrático-burguesa não foi a única "via" de transição ao mundo moderno, ou seja, de que nem todas as sociedades se modernizaram a partir de uma ruptura radical com o ancien régime vai se transformar no "elo" que une esses autores, de matrizes e tempos históricos diferentes. Segundo os mesmos, e daí a sua proximidade teórica, algumas formações econômico-sociais vão passar por um lento e gradual processo de modernização, no qual são conservados inúmeros elementos da "velha" ordem (pré-capitalista). Essa conservação de inúmeros elementos pré-capitalistas significa que nem sempre a modernização capitalista vai implicar a destruição completa das instituições e relações tradicionais vigentes no ancien régime. Ao contrário, as experiências históricas de revolução "pelo alto" demonstraram exatamente a possibilidade da conciliação entre o "arcaico" e o "moderno".

Juntos esses autores constituirão a estrutura teórica da análise em foco, principalmente no que diz respeito às conseqüências sociais e políticas dessa forma de transição ao capitalismo, que se caracteriza, de modo geral, pela exclusão das classes subalternas mediante uma conciliação política entre as "velhas" e as "novas" forças sociais dominantes e pela conservação de uma série de elementos pré-capitalistas que impedirão o desenvolvimento de relações mais democráticas e de projetos mais inclusivos ou, nos termos gramscianos, de um projeto mais hegemônico.

De modo geral, este artigo procura demonstrar que a exclusão das classes subalternas nas experiências de "revolução passiva" no Brasil não constituiu apenas uma determinação importante desse processo; ela também foi uma conseqüência dos processos de renovação que se assentaram numa conciliação entre o "arcaico" e o "moderno". Num texto intitulado "Caminhos e descaminhos da Revolução Passiva à Brasileira", o autor Luis Werneck Vianna3 afirma que "o Brasil, mais do que qualquer outro país da América Ibérica, pode ser caracterizado como o lugar por excelência da revolução passiva". Ao contrário das revoluções democrático-burguesas, a ausência de uma classe "dirigente" no Brasil, no caso a burguesia, capaz de promover uma ampla aliança contra o projeto elitista e excludente das oligarquias agrárias, impossibilitou a construção de um projeto hegemônico, no qual parte das necessidades e dos interesses das classes subalternas fosse reconhecida e incorporada.

Nossa intenção neste artigo é chamar a atenção para a força e a determinação do passado, ou seja, da nossa herança patrimonialista, elitista, escravocrata, autoritária e excludente na configuração da sociedade brasileira atual. Para tanto, é imprescindível que desmistifiquemos o significado das "revoluções" brasileiras, compreendendo-as como revoluções "pelo alto" ou "revoluções passivas" que não tiveram outra intenção senão a de conservar o poder político das elites tradicionais e, por conseguinte, de dispensar a sociedade civil de um maior protagonismo político.

Cabe lembrar, de forma bem resumida, que tanto a Emancipação Política (1822) quanto a República (1889) foram movimentos elitistas que se caracterizaram pela ausência do "elemento popular", como assinala Gramsci nos casos das "revoluções passivas". Articulada pelas oligarquias agrárias e pela burguesia mercantil nacional contra o monopólio da Coroa Portuguesa, a Independência do Brasil, conhecida também como um "golpe palaciano", se caracterizou por uma conciliação entre frações dominantes, num acordo que preservou os pilares do sistema colonial — a escravidão, o grande latifúndio e a monocultura para exportação.

Além disso, o novo Estado nacional tratará de manter uma esfera política bastante reduzida, assentada no poder moderador, no voto censitário (pelo menos até 1881) e na ausência de partidos independentes.

A República não foi diferente. Concebida também como produto de mais um acordo elitista, neste caso, firmado entre as oligarquias cafeeiras e frações do Exército, ela também excluiu o protagonismo popular. Suas seqüelas mais importantes foram a privatização do Estado pelos interesses das oligarquias cafeeiras e a manutenção de um Estado centralizador, autoritário, coercitivo, sobretudo no que se refere ao tratamento da "questão social", tratada como caso de polícia e não de política.

Cabe lembrar que, no que se refere ao mercado de trabalho, a primeira constituição republicana (de 1891)4 se manteve fiel aos princípios da ortodoxia liberal de não intervenção do Estado nas relações entre capital e trabalho. Aliás, essa ortodoxia só foi quebrada, pelo menos parcialmente, mediante o protagonismo do movimento operário nas primeiras três décadas do século XX. Coube, assim, ao movimento sindical de tradição anarquista e, mais tarde, aos comunistas, a tarefa de publicizar os conflitos entre capital e trabalho, restritos, até então, ao domínio privado das fábricas e das fazendas. À luta por um conjunto de direitos trabalhistas somava-se a luta pela socialização da política, aspecto central para a ampliação da esfera pública. Vale lembrar que, embora a Constituição de 18895 mantivesse a extinção do voto censitário, ela negava os direitos políticos aos analfabetos.

Segundo José Murilo de Carvalho,6 se em 1872 os eleitores eram 11% da população total, incluindo os escravos (índice maior que o da Inglaterra, Itália e Portugal), em 1894, essa participação caiu vertiginosamente para 2,2% da população, o que revela a persistência de uma cultura política autoritária que insiste em desqualificar as classes subalternas para a participação na vida pública. Aliás, não será outra a intenção contida na proposta corporativista do Estado Novo, qual seja, a de esvaziar o sentido transformador do movimento operário dos anos 20.

Aproveitando-se de uma sociedade civil ainda débil e dependente, de tipo "oriental",7 as elites tradicionais brasileiras se anteciparam e acabaram conduzindo as principais transições no país, pelo menos até a década de 80, quando a sociedade civil ganha, enfim, características "ocidentais" e passa a intervir mais efetivamente na esfera pública. Além da debilidade da sociedade civil brasileira, a ausência de uma classe dirigente (também no sentido gramsciano) durante o processo de transição da sociedade rural, tradicional, à sociedade moderna, urbano-industrial, acabou possibilitando que as oligarquias tradicionais (não-exportadoras) se mantivessem no poder, conservando uma série de elementos pré-capitalistas, dentre eles as relações de servidão no campo e os mecanismos de coerção extra-econômica.

Conhecida como o marco da modernização brasileira, a "Revolução de 1930" constituiu-se num movimento elitista ligado às oligarquias agrárias e regionais, insatisfeitas com o domínio das oligarquias exportadoras. Nesse sentido, ela se caracterizou muito mais como uma fratura no interior da classe dominante do que como um conflito entre o arcaico e o moderno. Ao não deslocar as oligarquias agrárias do poder, a Revolução de 1930 selava o seu compromisso com um padrão de modernização caracterizado por um lento e gradual processo de mudanças moleculares, em que o passado não foi completamente substituído; ao contrário, a sua permanência aparecia como condição sine qua non para a expansão do capitalismo no Brasil.

O enquadramento do movimento sindical, através das práticas de cooptação e da implementação da Legislação Social, foi fundamental à recuperação da "paz social", necessária aos interesses da expansão capitalista.

Transformados em órgãos de colaboração do Governo, os sindicatos perderam a sua autonomia para realizar as críticas necessárias ao padrão de cidadania que excluía da proteção social pública a maioria dos trabalhadores brasileiros.8 Ademais, a ausência de uma sociedade civil independente e plural impedia uma oposição mais orgânica ao Estado Novo, que, além de dar prosseguimento à política corporativista, eliminou as instituições políticas que tinham a função de mediar a relação entre Estado e sociedade, tais como os partidos e o Parlamento, para legitimar-se enquanto representante exclusivo do "povo".

Essa comunhão entre Estado e Nação não só privou a sociedade brasileira de expressar publicamente as suas divergências com relação à política de Vargas, como também impediu que a modernização econômica fosse acompanhada de mudanças significativas na relação entre o Estado e a sociedade, sobretudo daquelas que apontavam para a superação de um certo particularismo, tendo em vista a construção de uma esfera pública.

Esse "vazio político"9 durante a transição da sociedade tradicional, rural, para a sociedade moderna, industrial, fez com que o Estado assumisse o lugar que seria da classe dirigente na condução do processo de modernização, o que, por sua vez, contribuiu para gestar e consolidar um Estado hipertrofiado, coercitivo, e que se constituiu no principal agente (político e financeiro) da modernização brasileira.

Amplamente utilizados pelo Estado brasileiro contra o crescimento e a organização do movimento sindical autêntico, a Legislação Social e o corporativismo estatal foram os grandes responsáveis, do ponto de vista do desenvolvimento industrial, pelo sucesso da expansão capitalista no Brasil a partir dos anos 30 e pela adoção de um padrão capitalista refratário à regulação pública e democrática do mercado de trabalho.

Essa combinação entre o velho e o novo demonstra que, no Brasil, o moderno não se opôs ao arcaico; ao contrário, a conciliação entre eles constituiu-se numa condição sine qua non à implementação do modelo de substituição de importações, que só foi possível graças à privatização do fundo público e à manutenção das relações de servidão no campo, considerando a completa ausência de regulamentação relativa ao mercado de trabalho rural. Além disso, a precarização das condições de trabalho e de vida na cidade também contribuiu para o processo de formação do excedente necessário ao desenvolvimento industrial. Aliás, no que se refere às relações de trabalho no campo, essas só serão regulamentadas na década de 60 com o Estatuto do Trabalhador Rural em virtude da pressão do sindicalismo rural e das Ligas Camponesas.

Nesse sentido, podemos concluir que os anos que se seguiram à Revolução de 1930 foram essenciais não só para a criação dos pilares necessários à implantação da política de substituição de importações (plenamente desenvolvida nas décadas de 50 e 60), mas, sobretudo, para a afirmação de uma cultura política autoritária e elitista em que as classes subalternas não são reconhecidas como sujeito de direitos e, portanto, enquanto sujeito da sua própria história. Além disso, a ausência de um projeto nacional hegemônico demonstrava a incapacidade da nossa "revolução passiva" de articular os múltiplos interesses sociais necessários para construir uma aliança política mais progressista, na qual parte dos interesses das classes subalternas fosse incorporada.

Caracterizado como mais uma transição "pelo alto" ou "revolução passiva", o processo de "redemocratização" de 1945 não teve a intenção de consolidar uma nova ordem político-social, na qual a modernização econômica fosse acompanhada pela modernização política e pela institucionalização de verdadeiros canais de participação social e de controle social do Estado. Ao contrário, a manutenção da estrutura corporativa estadonovista, da "cidadania regulada", de partidos criados "de cima para baixo" e mais, os obstáculos à autonomia das classes trabalhadoras no campo e na cidade, limitaram o projeto de "redemocratização" pós-45.

Desse modo, podemos concluir que o novo bloco de poder que se organizou a partir do fim do Estado Novo não chegou a se constituir numa alternativa democrática para o país. Ele foi, antes de tudo, uma reorganização das forças políticas, um novo arranjo entre as frações de classe dominantes, uma nova combinação de interesses, na qual a ausência de hegemonia impedirá, mais uma vez, o predomínio de relações políticas menos verticalizadas e desiguais.

Se, de um lado, o populismo foi um modo determinado e concreto de manipulação das classes subalternas, de outro, ele propiciou a expressão de suas insatisfações. Ora, ao ressaltarmos o elemento contraditório que permeia o populismo no Brasil, pretendemos afirmar que se, enquanto forma de incorporação das massas urbanas, o populismo constituiu a principal estratégia de legitimidade e manutenção do pacto de dominação pós-45, foi ele, também, que gestou as condições favoráveis e necessárias à crítica e à superação desse mesmo pacto.

Assim, mesmo limitadas na sua autonomia, tanto sindical quanto político-partidária, as classes subalternas levarão os governos populistas a estabelecerem com elas um tipo de relação política de natureza diferente da estabelecida pelos governos anteriores. A institucionalização do voto e a necessidade de legitimidade por parte dos governos eleitos passam a exigir uma relação de "mão-dupla" entre o Estado e as classes subalternas, revelando um campo de contradições e de possibilidades para a ação política dessas mesmas classes.

É nesse sentido que o golpe de 64 não pode ser visto como uma simples reação das elites às Reformas de Base, mas como uma típica reação das elites brasileiras contra o protagonismo das classes subalternas, que, por meio dos diferentes movimentos sociais, do campo ou da cidade, visavam à ampliação das fronteiras estreitas do pacto de dominação populista em direção a um projeto nacional mais inclusivo.

Ao analisar o caráter autoritário do Estado brasileiro, Francisco de Oliveira10 nos lembra que, em 60 anos (entre a "Revolução de 30" e o ano de 1990), foram duas ditaduras, totalizando trinta e cinco anos. Se considerarmos, porém, os golpes e as tentativas, serão um golpe ou uma tentativa para cada três anos. Esses dados são bastante elucidativos no que se refere à forma autoritária e violenta da qual as elites brasileiras se serviram para impedir os segmentos populares de qualquer protagonismo nacional.

Com o Golpe de abril, mais uma vez, a Nação será impedida de vivenciar uma experiência democrática. Na verdade, a intervenção militar de 64, que pôs fim à possibilidade de construção de uma nova relação política mediatizada pelo debate público, é a expressão de uma sociedade que não foi capaz de aprofundar e consolidar os canais institucionais necessários à manifestação dos conflitos em face da emergência dos movimentos sociais autônomos do campo e da cidade.

A intervenção militar de 64 não revelou apenas o esgotamento das condições sócio-históricas favoráveis ao "pacto de dominação" assentado no modelo de substituição de importações, e a sua incapacidade de ampliar a "cidadania regulada", mas, também, e, sobretudo, o limite dos governos "populistas" na efetivação das reformas democráticas. Um outro aspecto importante na análise da cidadania brasileira é aquele que diz respeito ao vínculo entre os direitos sociais e às conjunturas de restrição de direitoscivis e políticos.

Embora os direitos sociais constituam uma resposta às reivindicações populares, a forma como foram incorporados pelo Estado-autoritário em 37 e 64 permite que eles funcionem como mecanismos importantes na formação do consentimento, principalmente daqueles segmentos privilegiados pela Legislação Social de Vargas e, mais tarde, pela expansão da cobertura previdenciária e demais programas implementados pela Ditadura de 64. Além do mais, a emergência e a expansão dos direitos sociais durante esses períodos comprometem a crença na disputa política, ou melhor, na democracia política como um mecanismo necessário à efetivação da esfera pública, mesmo com os limites referentes à democracia realmente existente.

O fato de a emergência e de o processo de ampliação dos direitos sociais no Brasil aparecerem associados às duas conjunturas de restrição de direitos civis e políticos no período pós-30 ("Estado Novo" e "Estado de Segurança Nacional") poderia, inicialmente, nos levar a pensar que nem sempre a cidadania é conseqüência do processo de democratização. Considerado um traço constitutivo das modernizações conservadoras, a antecipação ou outorga dos direitos sociais pelos Estados-autoritários tanto no final da década de 30, início da década de 40 quanto nas décadas de 60 e 70, constituiu-se num mecanismo privilegiado de legitimação dos mesmos. Na verdade, ao incorporar um conjunto de medidas voltadas para a reprodução da força de trabalho, o Estado visava a conquistar a adesão e o consentimento de segmentos importantes da classe trabalhadora, minimizando os conflitos de classe e, sobretudo, desarticulando as oposições à ordem vigente.

Nesse sentido, poderíamos afirmar precipitadamente que os direitos sociais, na sua forma restrita e seletiva, serviram apenas à manutenção do "pacto de dominação" no Brasil pós-30, principalmente porque eles não implicaram a alteração das relações entre Estado e sociedade, ou seja, sua implementação não foi resultado e nem teve como conseqüência a ampliação da esfera pública, muito pelo contrário.

Entretanto, se verificarmos as conjunturas anteriores ao período em que se deu a emergência dos direitos sociais, bem como a sua expansão, podemos concluir também que elas se caracterizaram por uma intensa mobilização das classes subalternas em defesa dos seus interesses. Essa consideração nos leva a afirmar que tanto o movimento operário e a articulação política das classes subalternas, através do Partido Comunista na década de 20 quanto o protagonismo do movimento sindical, das Ligas Camponesas, do movimento estudantil, dos diferentes movimentos sociais urbanos, dentre outros, no final dos anos 50 e início da década de 60, funcionaram como verdadeiros instrumentos de "pressão" sobre os Estados-autoritários para que eles implementassem os direitos sociais. Assim, não há nenhuma contradição na tese que associa cidadania à democratização de uma determinada sociedade, ou seja, à capacidade de a população interferir na condução da vida pública.

A redefinição das práticas sócio-políticas das classes, alterando o padrão de enfrentamento entre as classes fundamentais durante o processo de transição que se inicia na década de 70, expressa a mudança qualitativa da sociedade civil brasileira que, enfim, completa o seu processo de "ocidentalização", no sentido gramsciano.

Segundo Carlos Nelson Coutinho,11 ao desenvolver, de forma definitiva, a modernização capitalista, a ditadura brasileira de 64 vai contribuir para esse processo de "ocidentalização" da sociedade civil brasileira, que, no final da década de 70, dá mostras da sua complexidade, diferenciação e articulação.

Nesse sentido, a pressão por parte dos movimentos sociais, principalmente o movimento sindical do final da década de 70, foi essencial para a superação do quadro clássico de "revolução passiva" durante a transição dos anos 80. Embora esse processo de socialização política não tenha conseguido produzir as mudanças necessárias à efetivação de um projeto nacional hegemônico e, portanto, mais democrático e inclusivo, ele permitirá não apenas a publicização das contradições, mas também a estruturação de novas práticas sociopolíticas mais orgânicas e autônomas por parte das classes subalternas.

A essa combinação de processos "pelo alto" e "por baixo", de soluções negociadas entre as elites e das pressões populares, Coutinho12 chamará de "transição fraca", ou seja, um processo de transformação que amplia os espaços políticos e, ao mesmo tempo, conserva os elementos autoritários e excludentes do regime anterior.

Por mais que o episódio da transição democrática dos anos 80 se caracterizasse pelo protagonismo popular, ou seja, pelas pressões de "baixo para cima", as negociações entre as elites dominantes acabariam por prevalecer sobre as demandas populares por um processo de democratização.

Nascida de um amplo acordo de cúpula, a "Nova República" possuía uma deficiência congênita para enfrentar a tradição republicana autoritária e elitista, que tem desqualificado a participação das classes subalternas por meio da associação entre práticas coercitivas e de cooptação. Como se não bastassem as velhas questões relativas à insuficiência de uma esfera pública, bem como dos mecanismos sociais de controle do Estado, a Nova República se mostrou incapaz de superar os níveis abismais de apartação social, fruto de um processo de "modernização conservadora" que se reproduziu às custas de uma intensa exploração da força de trabalho e de uma política de proteção social deficitária e seletiva. A ausência de perspectivas e esperanças no final da década de 80 foi o resultado mais cruel da "transição fraca". Na verdade, a conjugação das duas transições — uma política e a outra econômico-social —, fruto do processo de reestruturação do capitalismo mundial, acabou possibilitando, no desfecho da transição política brasileira, uma situação bastante favorável ao esvaziamento do projeto democrático no qual se assentava a oposição ao Estado autoritário.

Ao contrário, portanto, de um acordo amplo, protagonizado por classes e frações de classe dispostas a construir um projeto social mais integrador e democrático, a "transição fraca" se caracterizará como mais um pacto restrito e "pelo alto". Daí a manutenção de uma série de elementos do regime anterior, dentre eles a permanência de um Estado hipertrofiado, dos mecanismos transformistas, de formas de "populismo", que desprezam as mediações políticas, e da tutela militar. Além, é claro, da manutenção dos latifúndios. Segundo Coutinho,13 a evidência disso é a presença de elementos arcaicos e "prussianos" no governo Sarney, o que o tornou incapaz de implementar os mecanismos democráticos necessários à participação efetiva da população na gestão da vida nacional, principalmente no que diz respeito à definição das políticas econômicas e sociais, bem como das prioridades e investimentos estatais.

A modernização brasileira desaguou na globalização, assistindo à agudização dos seus componentes mais perversos e reduzindo as chances de construção de um projeto mais hegemônico. Num tempo histórico em que o privatismo passa a se constituir na única medida das relações sociais e a vida social passa a ser regulada única e exclusivamente pelas relações de mercado, a cidadania ganha uma dimensão inquestionável, não só porque propõe uma outra lógica de regulação da vida em sociedade, mas também porque o seu aprofundamento significa a possibilidade concreta de reinventarmos e refundarmos o sentido de público, portanto, de soberania popular nas sociedades contemporâneas.

No que se refere à Constituição de 88,14 esta será permeada de contradições e disputas sintonizadas tanto com a emergência de uma "sociedade civil" de tipo "ocidental",15 quanto com o aprofundamento da crise econômica e, conseqüentemente, com o aparecimento de novas formas de corporativismo.

Como conseqüência desse processo, em que os interesses particulares se sobrepõem aos interesses públicos, provocando um encolhimento ainda maior da frágil esfera pública brasileira conquistada a partir da década de 80, os direitos sociais ainda não se constituirão em direitos para todos. Na medida em que aparecem vinculados apenas a um determinado segmento da "classe que vive do trabalho", os trabalhadores formais, eles excluem da cidadania os trabalhadores precarizados, temporários, parciais, subcontratados, terceirizados, ou seja, todos aqueles vinculados à chamada economia informal.

Nesse sentido, a restrição dos direitos trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores formais, em contraposição à Política de Assistência voltada prioritariamente para aqueles em situação de "risco social" e, dentre eles, os trabalhadores informais, deixava claros os obstáculos à construção de uma socialidade mais eqüitativa e democrática.

Embora a Constituição Cidadã16 tenha representado uma conquista importante, sobretudo com relação à socialização de novas referências que mobilizaram grande parte da sociedade civil brasileira em torno da luta pela democratização dos espaços públicos, ela não foi capaz de superar os problemas relativos à ausência de uma regulação sócio-estatal orientada pelo debate público e nacional. Na verdade, o protagonismo popular dos anos 80 não foi suficiente para transformar a relação vertical entre Estado e sociedade e promover o aprofundamento da democratização da sociedade brasileira. Ao nos referirmos à democratização da sociedade, estamos tratando do processo de construção de uma nova sociedade assentada cada vez mais no debate público e no consenso.

Ora, a "transição fraca" se caracterizou exatamente pela sua incapacidade de incorporar as demandas apresentadas pela sociedade civil, sobretudo aquelas apresentadas pelos novos atores políticos coletivos (de matiz progressista), em contraposição tanto aos velhos interesses (das oligarquias) quanto às novas exigências impostas pela reestruturação do capitalismo mundial. Não podemos nos esquecer de que o processo de reestruturação do capitalismo mundial vai impor uma série de medidas restritivas às economias nacionais, sobretudo às economias dos países periféricos que afetará em cheio o núcleo social da Constituição Cidadã,17  ou seja, o seu compromisso com a ampliação da cidadania mediante a universalização dos direitos sociais.

Dentre essas medidas, destinadas a recuperar o crescimento econômico e a reduzir o déficit público, encontra-se a desregulamentação da economia e da já tão precária proteção social, imprescindível ao retorno da situação ideal do mercado conforme o ideal neoliberal — o mercado "auto-regulável".

As novas conquistas obtidas pelos setores progressistas da sociedade civil (com destaque para o movimento sindical, para os movimentos sociais, bem como para a articulação destes setores com os partidos de oposição) no texto constitucional, com relação à democratização das relações políticas, embora significativas, não foram suficientes para ampliar e consolidar uma esfera pública no Brasil, o que permitiu que as velhas práticas privatistas ganhassem fôlego novamente. Além disso, a ausência de uma ampla reforma do Estado brasileiro, não a reforma dos neoliberais, que rejeitam qualquer forma de regulação sócio-estatal, mas de uma reforma que aproxime o Estado cada vez mais da sociedade, revitalizando os seus vínculos com os movimentos sociais, acabou provocando um completo esvaziamento do conteúdo democrático das conquistas incorporadas ao texto de 88.

A presença da "ofensiva neoliberal" entre nós e das suas teses a respeito da desresponsabililzação do Estado, da redução da ação reguladora dos estados nacionais, da desregulamentação da economia, da flexibilização dos direitos, e ainda, a respeito da mercantilização do conjunto das relações sociais, demonstra tanto os novos problemas engendrados pelo atual padrão de acumulação quanto os novos desafios a ser enfrentados pelas sociedades, sobretudo nos países periféricos.

A combinação perversa dos fatores nacionais com a conjuntura imposta pela hegemonia do capital financeiro, pela reestruturação produtiva e pela nova divisão internacional do trabalho impediu que a Constituição Cidadã se efetivasse concretamente, reduzindo as possibilidades de um projeto nacional mais conseqüente. Ademais, a ausência de efetividade na ampliação e no aprofundamento dos mecanismos de participação popular e de controle social do Estado brasileiro (os Conselhos são um bom exemplo disto) vem acentuando, ainda mais, o processo de fragmentação da classe trabalhadora.

Incapaz de representar os interesses da maioria da população, o Estado brasileiro tem se mostrado ineficiente no que se refere ao enfrentamento das desigualdades e da exclusão social, o que vem acentuando, por sua vez, a ruptura da solidariedade entre as classes e, conseqüentemente, a violência, nas suas múltiplas expressões. Esse aprofundamento da "apartação social" é lamentável, sobretudo do ponto de vista da construção de uma alternativa política verdadeiramente democrática, capaz de gestar uma esfera pública que amplie continuamente a democracia. Nesse sentido, a luta pela cidadania no Brasil deve ser recuperada em função daquilo que ela tem de possibilidades, ou seja, daquilo que ela ainda pode e deve construir e aprofundar.

Embora os países capitalistas do primeiro mundo, com destaque para os países do Norte da Europa, sob o comando da social-democracia, tenham avançado significativamente no que se refere às conquistas sociais e mesmo no que diz respeito à consolidação de uma esfera pública, eles não foram capazes de efetivar concretamente as condições objetivas e subjetivas necessárias ao aprofundamento do processo de democratização em todas as dimensões da vida social.

A introdução de uma nova lógica na regulação da vida social, uma lógica não-mercantil, alterou radicalmente a socialidade capitalista. Entretanto, a manutenção dos fundamentos de uma sociedade de classes, seguida das condições atuais em que se dá a reprodução capitalista, acabou restringindo o poder de influência das esferas públicas, ou se preferirmos, o seu esvaziamento, comprometendo seriamente o significado da democracia, atualmente limitado ao jogo eleitoral, ou seja, à sua dimensão institucional apenas. Essa situação pode ser comprovada através das crises políticas, éticas, sociais, étnicas, religiosas, ambientais, administrativas, dentre outras, instaladas recentemente nos países que consolidaram o Estado de Bem-Estar Social.

Entre nós, o neoliberalismo, que vem se constituindo na principal referência política para a ação dos últimos governos, desde a eleição de Collor em 1989, eliminou uma série de conquistas sociais obtidas na Constituição de 1988,18 relativas à regulamentação da vida social, principalmente no que se refere ao mercado de trabalho, conquistas, portanto, que vão de encontro aos interesses do "livre mercado".

Dentre as inúmeras conseqüências da subordinação do governo brasileiro às deliberações do Consenso de Washington, a desresponsabilização do Estado com relação à "questão social" tem sido uma das mais nocivas e preocupantes, sobretudo porque abre espaço para a perpetuação de um corporativismo perigoso que sobrepõe interesses particulares aos interesses públicos, destruindo qualquer possibilidade de consolidação de uma proposta política assentada na vontade coletiva. Os efeitos nefastos dessa apartação podem ser claramente percebidos quando a miséria e a desigualdade social, que continuam a ser os problemas mais graves do país, vão deixando de ser um desafio para toda a sociedade brasileira.

Notas

1 VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v.39, n.3, p.377-392, 1996.

2 LENIN. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural,1985; GRAMSCI, A. Quaderni del cárcere. Turim: Einaudi, 1975; MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

3 VIANNA, L.W. op. cit.

4 BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. 535 p.

5 Id. ibid.

6 CARVALHO, José Murilo de. A construção da cidadania no Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, 230 p. Mimeogr.

7 Sobre esta distinção, afirma Gramsci: "No ‘oriente’, o Estado era tudo e a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no ‘ocidente’, entre Estado e sociedade civil havia uma relação equilibrada: a um abalo do Estado, imediatamente se percebia uma robusta estrutura da sociedade civil". (Apud COUTINHO, C.N. Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.p.92).

8 Por "cidadania regulada" entende-se uma forma parcial e incompleta de cidadania que privilegia alguns segmentos ocupacionais em detrimento do conjunto das classes subalternas, na medida em que exclui do padrão de proteção social as demais categorias de trabalhadores urbanos (não-regulamentadas pelo Estado Novo), os trabalhadores informais, os autônomos, os trabalhadores rurais, os trabalhadores domésticos e os desempregados e indigentes. Ver SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política

social na ordem brasileira. 3.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1994.

9 WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

10 OLIVEIRA, F. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: PAOLI, M. (Org.). Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e a hegemonia global. Petrópolis: Vozes, 1999.

11 COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo: questões de princípio e contexto brasileiro. São Paulo: Cortez, 1992. (Coleções Polêmicas do Nosso Tempo, n.51).

12 Id. ibid.

13 Id. ibid.

14 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 25. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000. 307 p. (Saraiva de Legislação). Inclui adendo especial com os textos originais dos artigos alterados.

15 Ver nota n.7.

16 BRASIL. (1988) op. cit.

17 Id. Ibid.

18 Id. Ibid.