A Questão da Qualificação

Marcelo Lima*

A realização de um trabalho consiste no processo de objetivação que o homem realiza, baseado naquilo que pensa, pretende, compreende e de que necessita. Para que sua intencionalidade se revele no real, é necessário compreender a matéria sobre a qual atua e o processo por meio do qual pretende conduzir sua ação. É imprescindível estabelecer formas cognitivas de apreensão do que faz.


* Marcelo Lima é Pedagogo. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor do Curso de Especialização em Educação da UFES. E-mail: mlmarcelolima@bol.com.br

O trabalho deve ser cognoscível, possuir um conteúdo significativo, ser lógico, plausível e explicável. É inerente ao produtor a busca e a construção do conteúdo significativo de seu trabalho e o dos outros, nos quais o dele se insere.

No desenvolvimento do capitalismo, esse conteúdo foi sofrendo um esvaziamento progressivo, mas não conseguiu aniquilar-se por completo, a ponto de tornar todo e qualquer tipo de trabalho de todo ignorado, alheio e insignificante.

Desta forma, o significado na atividade humana, embora na passagem do trabalho artesanal para a manufatura e, posteriormente, para a organização científica do trabalho tenha sofrido mudanças profundas no que toca à questão do saber em uso, essa característica não foi destruída, ou seja, resistiu aos acontecimentos, estabelecendo um traço tênue de permanência na história da produção humana.

Com a inserção da maquinaria na produção, a ferramenta de uso manual transformou-se em máquina-ferramenta. Uma parte do saber do trabalhador, como o controle da incidência de força física para serrar, por exemplo, uma madeira, tornou-se desnecessária, metamorfoseando-se em um requisito que seria o de guiar eficientemente um pedaço do mesmo material em direção a uma serra que gira velozmente. No entanto, sobre o saber que foi extirpado nasceu um outro. Para Braverman,1  este saber tende a ser progressivamente menor e qualitativamente menos importante, sendo valorizado um outro, que é o saber apropriado pela gerência do processo, determinando uma polarização cada vez mais dicotômica das qualificações requeridas. Acreditamos que, nas funções de intensa repetição em que a substituição da ferramenta pela máquina-ferramenta manteve a mesma função específica, o autor está mais do que correto; entretanto, outras máquinas, as mais complexas, não apenas reproduziram funções humanas já parceladas pelas ferramentas, mas aglutinaram muitas dessas funções, instaurando uma síntese operativa que exigiu um saber superior àquele referente ao instrumento manual que a precedeu. O ato de serrar um pedaço de alumínio pode ser executado por meio de uma serra manual, ou mesmo por um maçarico ou um jato d’água em alta pressão. De modo geral, embora os saberes e as tecnologias tenham alternativas diferentes, o trabalho pode ser feito de maneira repetida. No entanto, um torno mecânico pode realizar inúmeras outras operações que incluem a anterior, permitindo ao produtor uma ação mais complexa para além de umafunção específica do ato de cortar. Nos processos em que essas máquinas mais complexas são utilizadas, podemos dizer que o aparato tecnológico complexo reverte a tendência de fragmentação e alienação do saber e de uma progressiva desqualificação, exigindo dos trabalhadores que queiram se apropriar dessas funções maior tempo de aprendizado ou preparação prévia por instituições especializadas.

Com a inclusão da ciência no processo produtivo, o controle físico humano das máquinas tende a se distanciar, tende a ser mediado por processos hidráulicos, pneumáticos, eletromecânicos, e, agora, microeletrônicos. Numa indústria, para ligar o motor de uma máquina, o operador não precisa ligar os fios que o alimentam utilizando suas mãos diretamente. Ele simplesmente aperta um botão que aciona um processo eletromecânico que fecha o circuito elétrico do motor da máquina, que passa a funcionar. Muitas vezes, isso pode ser feito de maneira programada, informatizada, etc. Essa realidade tanto pode reacender a tendência defendida por Braverman,2  pois o trabalho pode se transformar em um mero e repetitivo ato de apertar botões, como pode lançar novas leituras sobre a questão, na medida em que, se é possível atuar de maneira mais indireta na produção, talvez seja possível, também, aglutinar mais funções, intensificando o trabalho por um lado, mas, por outro, revalorizando o conhecimento a ele necessário.

Se considerarmos que, junto ao processo de modificação do aparato tecnológico esteja ocorrendo um processo intenso de inovação organizacional que aponta no sentido da superação dos pressupostos tayloristas, a discussão sobre o assunto se torna mais complexa e mais heterogênea. No contexto brasileiro, o processo de precarização do trabalho apontado por Antunes,3 o padrão de uso da mão-de-obra delineado por Carvalho,4 os problemas de intensificação do trabalho revelados por Leite5 e o evidente desemprego estrutural não nos permitem qualquer idéia de que essas mudanças estejam se generalizando no país. Entretanto, não se pode negar a existência, ainda que restrita, de importantes modificações nos requisitos de qualificação que se revelam nas novas exigências cognitivas, afetivas e psicomotoras necessárias para inserção no trabalho e para sua execução.

Atualmente, a discussão sobre a qualificação no trabalho se encaminha por meio de quatro tendências: a tendência da desqualificação, que diz haver uma progressiva degradação do trabalho, tanto em termos absolutos quanto em termos relativos; a tendência da requalificação, que crê na elevação da qualificação média da força de trabalho; a tendência da polarização das qualificações, com um número pequeno de trabalhadores altamente qualificados ao lado de uma grande massa de desqualificados; e a tendência da qualificação absoluta e desqualificação relativa, que afirma a idéia de elevação dos conhecimentos em termos absolutos, abaixo, entretanto, do patamar dos avanços no campo científico e tecnológico.6

As tendências se referem à homogeneidade ou à heterogeneidade, apontam caminhos diferenciados ou uniformes para a qualificação no trabalho. A degradação ou a requalificação generalizada parecem duas tendências menos prováveis, pois as estratégias empresariais com intensificação da luta intercapitalista, como afirma Valle,7 vão no sentido de buscar a diferença e não a padronização nos esquemas de competição. Países e empresas tendem a buscar as alternativas que lhes são melhores na relação insumo-produto, mas principalmente aquelas que lhes são acessíveis. Se considerarmos que a indústria automobilística utiliza robôs no processo de soldagem das estruturas dos automóveis, ao mesmo tempo em que na Tailândia se utiliza o trabalho infantil na fabricação de bolas, isso fica mais claro. No caso do Brasil, especificamente, tendo em vista o quadro de segmentação do mercado de trabalho, mesmo nas indústrias mais modernas, conforme Neves,8 a tendência de polarização das qualificações nos parece a mais razoável. Ela não equivale, a nosso ver, a uma divisão estanque da força de trabalho entre qualificados e desqualificados, cuja aritmética se refira à segmentação mercado formal-mercado informal; setor primário-setor secundário; gerência-execução, mas estabelece o seu suposto diferenciador em função do grau de repetição inerente a cada atividade, o tempo necessário de aprendizado e escolaridade requerido.

Com o processo de relaxamento da divisão do trabalho e o aumento dos espaços dentro das empresas para atuação do produtor como sujeito, os conhecimentos e os atributos que se vinculavam ao fazer prescrito de um posto de trabalho determinado se tornaram insuficientes e até inadequados, tendo em vista os novos métodos do capital de lidar com competição a fim de se apropriar de ganhos diferenciados de produtividade.

A ênfase na quantidade típica da produção em massa é deslocada para o âmbito da qualidade. Ela se revela não só no produto, mas principalmente no processo que busca reduzir custos de retrabalho, custos de mão-de-obra, custos de matéria prima, custos de energia, custos de planejamento, custos de manutenção, etc. Nesse processo, há um reposicionamento do trabalhador no sentido de acomodar, no produtor, funções que nunca deixaram suas mãos, mas que passaram a ser valorizadas e cobradas como condição de eficácia, como criatividade, iniciativa, zelo, participação, senso de organização, empatia, liderança, tenacidade e conhecimento científico - técnico e operacional do seu trabalho, que passam a ser elementos constituintes do conjunto de requisitos para entrar no emprego e atuar na produção. Os trabalhos de Colbari9 e Küenzer10 revelam que esses atributos não só já eram necessários à produção, como faziam parte da atuação de muitos trabalhadores no processo produtivo que, embora determinado pela gerência, nunca se transformou em uma cópia fiel dessas determinações.

Mas há algo de novo. Não se trata apenas de velhos requisitos que se reacendem. Existem modificações na divisão do trabalho, decorrentes dos novos arranjos organizacionais e da revolução tecnológica que, mais do que extinguir velhas funções, instauram novas profissões, que tendem não só a retomar a totalidade de alguns processos, mas também reinventar novas totalidades, nem sempre coerentes na sua constituição.

Uma coisa é o processo produtivo atual determinar que uma especialidade como "eletricista disso" ou "eletricista daquilo" passe a ser "eletricista geral", que atue com liderança e criatividade, que possa incorporar as inovações de outras áreas que influenciem o conhecimento de eletricidade, como a eletrônica e a informática, mas coisa muito diferente é o setor produtivo fundir áreas díspares transformando um eletricista e um mecânico em um eletromecânico ou uma outra composição que superponha áreas, o que, além de demonstrar um claro objetivo de redução do número de trabalhadores e intensificação do trabalho, não leva em consideração os processos formativos e identidades profissionais diferenciadas.

A formação profissional requerida de um indivíduo desde o trabalho artesanal se constitui em forma de árvore, ramificando-se a partir de um tronco epistemológico comum. Ao que parece, a formação no contexto atual se estabeleceria em rede, cada indivíduo se formaria a partir de um mosaico que estabelece e se constitui em forma de rede. Essas transformações na estrutura ocupacional, ao deslocarem o eixo do posto de trabalho para o sujeito, comprometem o conceito de qualificação e lançam um novo conceito que se baseia na idéia de competência; não no singular, mas sempre no plural, o modelo de competências que consiste num conjunto de atributos antigos e novos que são exigidos e podem mudar, conforme o processo de trabalho em cada empresa.

De acordo com Hirata,11 na nova empresa, a qualificação, correspondência entre um saber, uma responsabilidade, uma carreira, um salário, tende a se desfazer na medida em que a divisão social do trabalho se modifica. Às exigências do posto de trabalho se sucede um estado instável da distribuição de tarefas, em que a colaboração, o engajamento, a mobilidade passam a ser qualidades dominantes,12 o que desloca a questão da qualificação do eixo de um posto de trabalho superado ou uma função obsoleta, situando no sujeito o conjunto de atributos úteis para a produção. No entanto, os trabalhadores, embora estejam, no momento, desprendendo-se das funções especializadas que possuíam, não vão ficar sem uma função definida. Mesmo que eles aglutinem outras funções, se apropriem de outras inéditas, não deverão se posicionar de maneira irremediavelmente flexível na produção, pois ao movimento de despadronização do trabalho segue um movimento de repadronização que reinventa as profissões sem abrir mão do conceito. E elas delineiam perfis ocupacionais que têm de se ajustar de maneira eficaz no processo produtivo, ou seja, numa indústria, nenhum trabalhador pode fazer toda e qualquer atividade; é necessário um locus definido para o trabalho, mesmo que este não seja o posto de trabalho como foi tradicionalmente definido. O hábito definido por Berguer e Luckman13 nos parece superado sob esse ponto de vista. E embora possa constituir um mosaico de saberes e esteja multiqualificado e supermotivado para o trabalho, as suas atividades carecem de definição e de identidade.

Nesse sentido, a noção de competência deve se estabelecer em dois grupos de atributos: aqueles que correspondem a todo e qualquer ser humano como iniciativa, criatividade, responsabilidade, empatia; aqueles que se vinculam a um locus definido pela natureza das atividades em um ramo do conhecimento que exige vários atributos cognitivos e psicomotores, mas que, pela sua relativa especificidade, tende a aprofundar uns e exigir menos de outros.

Este arranjo do conjunto dos atributos, além de buscar manter a força de trabalho permanentemente atualizada, estabelece um novo modo de ser vinculado a novas formas de disciplina e controle, que se baseiam na adesão e na coesão interna, cumprindo uma função ideológica de obscurecimento da intensificação do trabalho. Esse processo gera uma instabilidade no posicionamento funcional dos trabalhadores, criando neles uma propensão, uma predisposição, uma prontidão nos trabalhadores com o objetivo de que eles venham assumir, sem muita resistência, novas atribuições além daquelas que já possuíam, o que não se confunde com a politecnia ou omnilateralidade, assemelhando-se, mas sem se igualar, à polivalência ou multifunção, consistindo de fato numa elasticidade ocupacional ou numa ampliação das tarefas, ou ainda no que Ficher14 chamou de enriquecimento de cargos.

Para Dugué,15 a noção de competência visa romper os possíveis obstáculos entre exigências dos postos de trabalho redefinidos e os conhecimentos que possuem os trabalhadores. A indefinição dos conteúdos da atividade faz entrar em crise a noção de profissionalidade referenciada na existência de um corpo de capacidades específicas e organizadas, próprias de uma profissão, levando o profissional a desenvolver não um métier, mas uma capacidade de automobilização para resolver problemas, o que lhe coloca o risco da insegurança no mercado de trabalho por não ter um saber reconhecido.

A instituição da racionalidade técnica implícita no taylorismo demandou da sociedade, e principalmente da produção, novas formas de percepção das relações entre saber e poder, tendo em vista novas perspectivas de hierarquia e temporalidade. Uma nova racionalidade tende também a modificar essas relações. Do ponto de vista do processo de apropriação dos atributos úteis ao trabalho, na medida em que emerge o modelo de competências, o valor do tempo, implícito na noção de formação e de experiência, tende a se deteriorar, sob o risco de requalificação generalizada da força de trabalho, pois, se a profissionalidade se desvaloriza, a profundidade dos conhecimentos nela subjacentes também perde força. Isso pode levar a seleção de pessoal a valorizar, no campo educativo/profissionalizante, a diversidade dos conhecimentos em detrimento de sua profundidade. A composição dos pré-requisitos deve se diversificar de maneira a atender às necessidades específicas do leque ocupacional no qual o trabalhador vai se empregar, transferir ou agregar, mudando em muito os critérios de seleção e de desenvolvimento de recursos humanos.

Isso, do ponto de vista do acesso ao trabalho, cria uma nova possibilidade aos candidatos, uma vez que a longa experiência profissional pode perder força, mas para além desse aspecto pode redundar numa tendência de substituição dos contigentes de trabalhadores de perfis obsoletos e ampliação da competição no mercado de trabalho.

É claro que a grande oferta de níveis cada vez maiores de escolaridade e experiência decorrentes da rotatividade do trabalho e a diminuição progressiva das vagas no trabalho permitem conciliar a diversidade e a profundidade dos conhecimentos requeridos, mas um imediatismo parece contaminar cada vez mais a noção de formação profissional.

Novos conhecimentos e habilidades começam a ser exigidos dos trabalhadores, já que a otimização de suas atividades utiliza novas formas de organização do processo produtivo e novas tecnologias. A utilização de máquinas informatizadas, por exemplo, demanda o domínio da linguagem dos computadores. Entretanto, os novos requisitos para o trabalho vão além de algumas novas características cognitivas, e antigas habilidades psicomotoras são valorizadas nesse momento, como as de cunho comportamental, atitudinal, afetivos, etc.

É a crescente mobilização de todas as dimensões possíveis do trabalhador, seus conhecimentos, suas experiências, sua afetividade, que constitui a rede de elementos requeridos e utilizados nos processos produtivos mais avançados que englobam uma variedade de características que se igualam ou abarcam outras, mas que aqui relacionamos da forma mais ampla possível: iniciativa para resolver problemas, identificação com os objetivos da empresa, facilidade para adquirir novas qualificações, responsabilidade na produção, raciocínio lógico, conhecimentos técnicos gerais, disciplina, relações com os diversos níveis hierárquicos, comunicação oral, aspiração profissional, comunicação escrita, concentração, coordenação motora e destreza manual, conhecimento global das operações de produção, gestão da produção, estatística, conhecimentos gerais, informática, conhecimento sobre as funções das máquinas, de manutenção, mecânica, eletrônica, eletricidade, de matemática, capacidade de pensar, de decidir, responsabilidade, capacidade de fabricar e consertar, de administrar a produção e a qualidade, leitura e interpretação de dados formalizados, lógica funcional, abstração, dedução estatística, espírito de equipe, sociabilidade, criatividade, curiosidade, motivação, atenção, estabilidade, confiança, autonomia, capacidade de gerar e de se adaptar às mudanças, independência, cooperação, lealdade, comprometimento, competitividade, habilidade de negociação, senso de decisão, etc.16

Está claro que nem todos os trabalhadores deverão ou poderão acumular tantas qualidades pessoais, tanto pelo caráter de cada um como pelo percurso formativo individual ou pelas características das funções que venham a exercer, que tendem a se utilizar de umas qualidades pessoais em detrimento de outras.

Mas, o que parece mais revelador é a intensa valorização dos atributos do tipo comportamental. Não que isso seja inédito na utilização da força de trabalho, pois o movimento de Relações Humanas, que surgiu entre as décadas de 20 e 30 deste século, já perseguia os objetivos de aumentar a motivação e o envolvimento dos trabalhadores na produção utilizando recompensas e sanções não econômicas com forte apelo psicológico.

O contexto refaz a questão com muito mais veemência, com a seguinte interrogação: qual o valor relativo dos atributos atitudinais em relação às demais qualidades pessoais dos indivíduos no processo efetivo de realização do trabalho? Araújo,17 por exemplo, imputa uma importância privilegiada a esses aspectos no processo de trabalho, no que enxergamos algumas restrições, pois não acreditamos que possam se sobrepor, ou superar, o valor produtivo dos atributos cognitivos ou psicomotores, pois seria inútil alguém ter criatividade, iniciativa, zelo, resistência a pressão, adaptabilidade, bom relacionamento social, baixa irritabilidade ou empatia, se não souber como executar a tarefa e quais os fundamentos científicos do processo de transformação na indústria na qual está inserido.

Leite18 aponta casos em que houve a substituição de máquinas-ferramentas convencionais por tornos de controle numérico em uma empresa em processo de restruturação produtiva e os profissionais escolhidos para operar as máquinas foram os ferramenteiros, os torneiros mecânicos que assumiram o papel, pois embora não precisassem mais utilizar toda sua destreza manual e tendo que utilizar muito mais intensamente suas capacidades de concentração e atenção, seu conhecimento do processo de usinagem permaneceu, até então, insubstituível.

A revalorização desses atributos, por parte do capital, ao que parece, se estabelece no sentido de preencher o vazio ocasionado pela gestão autocrática característica da gerência científica do trabalho, que impôs enormes obstáculos à emergência do sujeito, o que ocorreu em menor medida com os conteúdos cognitivos e operacionais do trabalho que não foram extintos no taylorismo, embora tenham sido fragmentados e alojados em cada função específica.

Os trabalhadores não determinavam como, por que, ou em que ritmo deveriam trabalhar, mas realizavam o trabalho e se apropriavam, por sua práxis, de parte de seu conteúdo significativo.

Além disso, a empresa capitalista atual vai desenvolver em seus trabalhadores as características que a escola ou outras instituições não deram conta. Nesse sentido, realiza um trabalho complementar na formação do indivíduo, sem no entanto dedicar tempo e recursos que se comparem aos utilizados pela escola no ensino da leitura, da escrita e da matemática, para ficar nas mais elementares contribuições no campo cognitivo dado pela escola.

Tudo isso se acrescenta ao fato de que existe uma tradição negadora do sujeito no processo produtivo ainda vigente e que as empresas no novo modelo, como não podem substituir instantaneamente gerentes e trabalhadores de vivência taylorizadas, têm de reverter o seu padrão de comportamento internalizado há muito tempo, através do desenvolvimento daqueles atributos.

Há que se considerar ainda que ninguém tem diploma de criativo ou zeloso e que a pouca capacidade de mensuração dos atributos não permite uma seleção apurada dos trabalhadores, o que não ocorre com muitas características cognitivas e operacionais que podem ser certificadas por instituições através de diplomas de escolaridade ou reveladas em testes cuja visibilidade é muito maior do que os traços de natureza afetiva, psicológica, etc.

Saber-ser e, simultaneamente, um saber-fazer. Os modelos de gestão não operam a divisão entre cognição e atitude, até para poder usufruir mais da força de trabalho. As atitudes fazem parte do rol de competências que o capital busca mobilizar para que os trabalhadores produzam de acordo com as novas características instáveis do mercado.

Sob a ótica do modelo da competência, os treinamentos voltam-se à resolução de problemas e à comunicação. Procuram fazer com que os trabalhadores adquiram as atitudes e comportamentos relativamente independentes dos saberes teóricos e práticos, considerados como constitutivos da competência, instrumentais a sua automobilização nas diversas situações de produção, menosprezando o ângulo do domínio técnico.19

As inovações tecnológicas e organizacionais podem marcar de maneira indelével a identidade dos trabalhadores: as identidades antes definidas de maneira fragmentada, situadas no âmbito das funções parcelizadas, comum ao taylorismo, sofrem uma espécie de ampliação justaposta, e as funções do trabalhador passam a ser tudo aquilo que é necessário à eficácia produtiva, sem, no entanto, formar uma unidade coerente capaz de conferir uma identidade profissional ao trabalhador. No contexto do esvaziamento dos direitos dos trabalhadores, o modelo das competências, ao estabelecer um conteúdo do trabalho ampliado mas desarticulado, compromete a identidade ocupacional, desfaz os laços de solidariedade da categoria profissional, além de deteriorar o perfil de classe.

Para Séve,20 as pressuposições de livre individualidade para todos trazem a terrível marca de seus limites e antagonismos, produzindo uma universalidade abstrata de indivíduos que amiúde são mais desenraizados que emancipados, mais atomizados que autônomos, mais disponíveis que polivalentes. O enorme impulso na direção do desenvolvimento integral da individualidade parece até mesmo afundar-se nas piores decomposições de suas formas alienadas, sobre as quais floresce o indivíduo e não o sujeito.

Além das repercussões no âmbito da identidade e na subjetividade dos trabalhadores, o modelo das competências pode também ensejar uma inadequação para aquele contexto em que as mudanças organizacionais e tecnológicas estão inviabilizadas, pelo menos por longo tempo, tendo em vista os ganhos que se baseiam preponderantemente num uso dilapidador da força de trabalho. De qualquer maneira, trata-se de um contexto sobre o qual devem se debruçar as pesquisas e de que, no âmbito deste trabalho, procuramos tratar.21


NOTAS

1 BRAVERMAM, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987.

2 Id. ibid.

3 ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.

4 CARVALHO, R. Q. Projeto de primeiro mundo com conhecimento de terceiro? Um estudo comparativo das implicações da aceleração da mudança tecnológica para os processos de trabalho e os recursos humanos na indústria. Estudos Avançados, São Paulo, n. 17, 1993.

5 LEITE, Márcia P. A vivência operária da automação microeletrônica. 1993. Tese (Doutorado em Sociologia do Trabalho) - Universidade de São Paulo, Campinas, 1993.

6 PAIVA, Vanilda L. (Org.). Transformação produtiva e equidade: a questão do ensino básico. Campinas: Papirus, 1994.

7 NEVES, Magda et al. Trabalho e educação. Campinas: Papirus, 1994.

8 NEVES,M. A. Trabalho e educação. Campins: Cedes, 1994. (Caderno CEDES).

9 COLBARI, Antônia. Ética do trabalho. São Paulo: Letras & Letras, 1995.

10 KÜENZER, Acácia. Ensino de segundo grau: trabalho como princípio educativo. São Paulo: Cortez, 1992.

11 HIRATA, Helena (Org.). Sobre o "modelo" japonêz. São Paulo: EDUSP, 1993.

12 Id. ibid. p. 129.

13 BERGUER, Peter, LUCKMAM, James. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.

14 FICHER, Rosa M. Pondo os pingos nos "is" sobre as relações do trabalho e políticas de administração de recursos humanos. In: FLEURY, M. Tereza Leme (Coord); FICHER, Rosa M. (Coord.) Processo e relações do trabalho no Brasil. São Paulo: Atlas, 1987. p. 19-50.

15 Apud. ARAÚJO, Ronaldo Lima. Tecnologias organizacionais e qualificação: aspectos atitudinais da qualificação. Caxambu: ANPEND, 1997.

16 SENAI. Formação orientada para o projeto e a transferência – PETRA: manual do instrutor. São Paulo: SENAI/SP, 1992; HIRATA, Helena (Org.). Sobre o "modelo" japonês. São Paulo: EDUSP, 1993; PAIVA, Vanilda L. (Org.). (1994) op. cit.

17 Apud. ARAÚJO, Ronaldo Lima. (1997) op. cit.

18 LEITE, Márcia P. (1993) op. cit.

19 DUGUÉ Apud. ARAÚJO, Ronaldo Lima. (1997) op. cit.

20 SEVÉ Apud. ARAÚJO, Ronaldo Lima. (1997) op. cit.

21 Ver Dissertação de Mestrado defendida na UFES por Marcelo Lima em 1999 sob o título "A História da Formação Profissional no Espírito Santo".


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