MULHER HONESTA: INCOMPATIBILIDADE DO CÓDIGO PENAL COM A EVOLUÇÃO SOCIAL.

 

Sancler Batista de Sousa - Estudante do 9º Período de Direito da Universidade Estácio de Sá - Campus Centro - Rio de Janeiro. Estagiário da Defensoria Pública do Estado do RJ e da Procuradoria do Município do Rio de Janeiro.

 

Mulher honesta: Incompatibilidade do Código Penal com a evolução social.

 

Este trabalho tem por escopo fazer um breve estudo acerca da gradativa evolução dos conceitos morais da sociedade em relação ao comportamento sexual feminino, refletindo no Código Penal a necessidade de mudanças no sentido de que seja respeitado o preceito constitucional da igualdade entre homens e mulheres.

A evolução dos direitos da mulher iniciou-se com a conquista do direito ao voto, em 1932. A busca da participação no mercado de trabalho veio em seqüência. Segundo dados do IBGE-PNAD, em 1970, ela comparecia com 18% de presença no mercado; pulou para 28% em 1980; na década de 80, já chegava aos 35%; e no início da década de 90, alcançava 41%. Atualmente, estima-se seja quase a metade.

Com a vitória na guerra pela cidadania, ilógico seria manter na obscuridade as manifestações sobre seus anseios em relação ao sexo. Logo, passaria a refletir na parte especial do Código Penal, carente de severas modificações.

O elemento normativo "mulher honesta", como explica Ricardo Ribeiro Martins, Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, tem o costume como fonte de interpretação. Em virtude da mudança no comportamento social, tal elemento gera insegurança na sua conceituação (O Direito da Mulher, 1999, p. 59-70).

Para Damásio de Jesus, "mulher honesta é aquela que se conduz dentro dos padrões aceitos pela sociedade onde vive. (...) Pautando-se a mulher pelo mínimo de decência exigido pelos nossos costumes, será considerada honesta" (Direito Penal, 1985, V. 3, p. 109).

Ensina Nelson Hungria, cujas opiniões são endossadas por Celso Delmanto e Julio Fabbrini Mirabete, que "só deixa de ser mulher honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada (...), ainda que não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (...)" (Comentários ao Código Penal, 5.ed, V. 3, p. 139).

Ressalta, por outro lado, que "não perde a qualidade de honesta nem mesmo a amásia, a concubina, a adúltera, a atriz de cabaré, desde que não se despeça dos banais preconceitos ou elementares reservas de pudor".

Verifica-se, entretanto, que a parte especial do Código Penal, vigente desde 1940, sob o prisma de proteger a liberdade sexual da mulher honesta, não é compatível com a realidade dos costumes atuais. O crime de sedução, por exemplo, que não trata da mulher honesta, mas da virgem, maior de catorze e menor de dezoito anos de idade, está praticamente em desuso.

Reza o art. 217 do Código Penal:

"Sedução

Art. 217 - Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (catorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos."

 

Tal fato se deve ao avanço nos meios de comunicação, donde pode-se notar a entrada de imagens, textos e debates sobre sexo pela televisão e, no final do segundo milênio, pela internet, bem como no comportamento dos jovens, que trocaram simples tradições, como reuniões e congraçamentos familiares, por hábitos mais sofisticados (diversões em cinemas, boates, casas de espetáculos etc.).

Em seguida, observar-se-ão os crimes que admitem somente a mulher honesta no pólo passivo da relação processual:

 "Posse sexual mediante fraude

Art. 215 - Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Atentado ao pudor mediante fraude

Art. 216 - Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

Parágrafo único - Se a ofendida é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Rapto violento ou mediante fraude

Art. 219 - Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Rapto consensual

Art. 220 - Se a raptada é maior de 14 (catorze) anos e menor de 21 (vinte e um), e o rapto se dá com seu consentimento:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos."

 

A verdadeira intenção inserida no Código Penal de 1940, ao "proteger" a mulher honesta, porém, consistia em reprimí-la sexualmente, bem como em mantê-la virgem enquanto conviver com os pais. O homem, que sempre teve maior liberdade para realizar seus desejos sexuais, se quiser pô-los em prática, sem que responda pelos crimes ora estudados, pode procurar a prostituta, haja vista que esta não integra o pólo passivo naqueles tipos penais. É por isso que o legislador em momento algum se preocupou em tipificar a prática da prostituição como ilícito penal, pois, assim, os homens poderiam buscar a satisfação da consupciência com mulheres excluídas pela sociedade, sem que se preocupassem em responder pelos referidos crimes. As demais, consideradas honestas, deveriam continuar virgens e submissas aos pais, até a data do matrimônio.

Esse pensamento arcaico era defendido por diversos autores no século XIX. Para alguns, a mulher sempre tinha um instinto dirigido para a reprodução da espécie.

Schopenhauer afirmava que "uma jovem que se deixava seduzir tornava-se traidora para com todo o seu sexo".

Naquela época, no entanto, começaram a surgir idéias divergentes. Para os biólogos, o sexo, tanto para o homem, quanto para a mulher, é uma necessidade fisiológica de evacuação.

Fére assim o exprimiu: "o apetite sexual, antes de tudo, é uma necessidade geral do organismo provocada pela sensação de plenitude, ou seja, uma certa necessidade de evacuação".

Beaunis compara a excitação sexual a uma ação química, exercida pelo organismo ou sistema nervoso.

Assim, chegaram à conclusão de que "quanto maior for a recíproca atração entre um homem e uma determinada mulher, com a mesma intensidade atuam os agentes mecânicos e químicos, o instinto de realização dos ideais de aperfeiçoamento e pureza da espécie, de modo que um compense as deficiências do outro (física e morais) harmonicamente e, juntos, transmitam ao novo ser as melhores e mais completas condições de sobrevivência e perfeição".

 

A evolução na jurisprudência.

 

O reconhecimento progressivo da igualdade entre homens e mulheres no aspecto sexual verifica-se na jurisprudência. A seguir, será analisada a evolução dos costumes de 1940 até hoje:

"O estupro, com violência ficta, não pode ser reconhecido, se a paciente não é mulher recatada e honesta e mantém, durante um longo período, de cerca de dois anos, relações sexuais com o seu namorado, de quem se faz amante, com ele vivendo em mancebia". (Ac. da 1ª Câm. do TA DF, atual Estado da Guanabara, em 23-11-42, in Darcy Arruda Miranda – Repositório de Jurisprudência do Código Penal, 1959, pg. 708-709, V. II).

Nos dias de hoje, a doutrina é predominante ao afirmar que responderá por estupro aquele que constranger, mediante violência ou grave ameaça, mulher à conjunção carnal, mesmo se for prostituta.

"O apelante confessou o namoro com a ofendida à época em que esta se disse por ele deflorada. Trata-se de menor honesta e de bons costumes. Incrível que a vítima, que já deu à luz uma menina, fosse acusar outro homem, que não o verdadeiro de a ter infelicitado, ou que fosse, no curso de um namoro sério com o apelante, entregar-se a outro homem. A sentença condenatória merece confirmada". (Ac. un. da 3ª CT – DF, atual Estado da Guanabara, em 30/6/52, ob. Cit., pg. 743).

Atualmente, não mais se discute sobre o crime de defloramento, extinto do Código Penal.

"Não se configura o crime de rapto, se a vítima, embora mulher de 17 anos operária de fábrica, deixa o lar paterno para viver com um homem casado, que não planejou o rapto, nem combinou com ela a fuga". (Ac. da 2ª CTA-DF, atual Estado da Guanabara, em 22/6/42, Rer. For., 96/525).

Aqui observa-se o tratamento destinado à mulher que conquistava uma vaga no mercado de trabalho e que, por se tornar independente, decidia, por livre e espontânea vontade, conviver com homem casado. Eram excluídas da sociedade, fato que, mormente nas grandes metrópoles, é aceito pela opinião pública. Atualmente, "só a moça dissoluta, e não a que teve outros namorados, é excluída da proteção penal" (TACrSP, RT 519/403). Para o rapto consensual, "basta a honestidade, não se exigindo, também, a virgindade" (TACr, RT 613/348; TAMG, RT 567/378). Conclui-se, então, que a perda da virgindade não configura a descaracterização da honestidade feminina.

Na década de 50, a posição jurisprudencial definia a situação da mulher no crime de sedução:

 

"Não se configura o crime de sedução, desde que a moça se entregue ao simples namorado, em situação que não se coaduna com o procedimento de moça honesta, recatada e de bom conceito no seio da sociedade." (Ac. da 1ª CCTJ-RGS, em 02/6/53, Rer. For., 155/436).

É notória a evolução, eis que "nos dias de hoje, é muito rara a inexperiência em moça de 16 anos, tanto na capital quanto no interior" (TJSP, RTJSP 93/403). "A inexperiência em jovens entre 14 e 18 anos de idade é fato excepcional, que deve ficar bem provado" (TJSP, RT 603/309).

A jurisprudência reconhece, outrossim, que "não é ingênua moça de 17 anos de idade que trabalha fora, em escritório (TJSP, RT 524/338) ou estuda à noite (TJSP, RT 525/330)".

 

Conclusão.

 

A mulher quis e aceitou – além das circunstâncias terem-no imposto – o desafio de competição com o homem, no sentido da igualdade jurídica e social dos sexos. Portanto, manter velhos conceitos sobre matéria sexual, em relação à mulher, contrastaria ridiculamente com a realidade contemporânea.

A OAB, em 1973, já afirmava que a hipersensibilidade sexual da mulher deveria ser tema de psiquiatria; só faria parte da matéria penal se envolvesse aberrações, principalmente em se tratando de menores de idade reduzida.

O Anteprojeto do Código Penal, visando a acompanhar o progresso jurídico-social da mulher no decorrer dos anos, excluiu os crimes de sedução e rapto consensual. No crime de rapto, substituiu-se a expressão "mulher honesta" por "alguém". Extinguiram-se também os crimes de posse sexual mediante fraude e atentado violento ao pudor mediante fraude, criando-se, em seus lugares, o crime de satisfação da lascívia própria, cujo sujeito passivo é qualquer pessoa.

Quanto ao envolvimento com menores, suscitado pela OAB, foram instituídos os crimes de violação sexual de menor ou incapaz e de abuso sexual de menor ou incapaz, punindo o agente, no primeiro, com pena de reclusão, de oito a doze anos; e no segundo, com reclusão de quatro a doze anos.

Em suma, não basta retirar o elemento normativo "mulher honesta" do Código Penal para que o problema seja solucionado. É preciso que, desde logo, seja esclarecido, principalmente aos jovens, formadores do comportamento social do próximo milênio, a importância da equivalência sexual entre homens e mulheres, concorrendo, assim, para a extinção daquele pensamento machista e incompatível com a nova realidade social.

 

Referências Bibliográficas.

 

1. BRASIL. Congresso Nacional. Código Penal. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

2. DATA FOLHA. Mulher e trabalho: uma já não vive sem o outro. Marie Claire. Rio de Janeiro, n. 6, p. 32-41, set. 1991.

3. DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 5.ed. São Paulo: Renovar, 1991.

4. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. V.8: Parte especial – arts. 197 a 249 do CP.

5. JESUS, Damásio de. Direito Penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 1996. 4v. V.3: Parte especial - dos crimes contra a propriedade imaterial e dos crimes contra a paz pública.

6. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000. V.2: Parte especial – arts. 121 a 234 do CP.

7. SCAVONE. Miriam. As vitoriosas. Veja. São Paulo, n. 1.629, p. 224-231, dez. 1999.

8. SÉGUIN, Élida (Org.). O Direito da Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

9. SOARES, Orlando. A Evolução do Status Jurídico-Social da Mulher. Rio de Janeiro: Rio, 1978.

 

 

ANEXOS

ARTIGOS DO ANTEPROJETO DO CÓDIGO PENAL

TÍTULO II

DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

CAPÍTULO I

DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL

Estupro

Art. 162. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena – reclusão, de seis a dez anos.

 

Atentado violento ao pudor

Art. 163. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena – reclusão, de quatro a dez anos.

 

Forma qualificada pelo resultado

Art. 164. Nos casos dos artigos 162 e 163, se resulta:

I - lesão corporal grave:

Pena – reclusão, de oito a doze anos.

II - Se resulta lesão corporal gravíssima:

Pena – reclusão, de dez a quinze anos.

III - morte:

Pena – reclusão, de doze a vinte anos.

 

Aumento de pena

Art. 165. Aumenta-se a pena, nos casos dos artigos 161, 162 e 163:

I - de metade, se:

a) a vítima é maior de quatorze e menor de dezoito anos;

b) o agente é ascendente ou descendente, padrasto, madrasta, irmão, tutor, curador, empregador ou, por qualquer título, tem autoridade sobre a vítima;

c) o crime é cometido por quem se aproveita do fato de a vítima estar presa, internada em estabelecimento hospitalar ou sob sua guarda ou custódia.

II - de dois terços, se o crime é cometido por duas ou mais pessoas.

 

Violação sexual de menor ou incapaz

Art. 166. Praticar conjunção carnal com menor de quatorze anos, ou pessoa alienada, portadora de deficiência mental ou impossibilitada por qualquer outra causa de oferecer resistência:

Pena – reclusão, de oito a doze anos.

 

Abuso sexual de menor ou incapaz

Art. 167. Praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal com menor de quatorze anos, ou pessoa alienada, portadora de deficiência mental ou impossibilitada por qualquer outra causa de oferecer resistência:

Pena – reclusão, de quatro a doze anos.

 

 

Forma qualificada pelo resultado

Art. 167. Nos casos dos arts. 166 e 167, se resulta:

I - lesão corporal grave:

Pena – reclusão, de dez a quatorze anos.

II - Se resulta lesão corporal gravíssima:

Pena – reclusão, de doze a dezoito anos.

III - morte:

Pena – reclusão, de quatorze a vinte e dois anos.

 

Aumento de pena

Art. 169. Aumenta-se a pena, nos casos dos artigos 166, 167 e 168:

I - de metade, se:

a) o agente é ascendente ou descendente, padrasto, madrasta, irmão, tutor, curador, empregador ou, por qualquer título, tenha autoridade sobre a vítima;

b) o crime é cometido por quem se aproveita do fato de estar a vítima internada em estabelecimento adequado a menores ou hospitalar, ou sob sua guarda ou custódia;

c) o crime é cometido com violência ou grave ameaça.

II - do dobro, se o crime é cometido por duas ou mais pessoas.

 

Satisfação da lascívia própria

Art. 170. Induzir, mediante fraude, ameaça, promessa de benefício, casamento ou união estável, pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos a satisfazer a lascívia do agente:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

 

Ofensa ao pudor de menor

Art. 171. Praticar na presença de menor de quatorze anos ato de libidinagem, ou induzi-lo a presenciar, para o fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:

Pena – detenção, de um a três anos.

 

Rapto

Art. 172. Raptar alguém, mediante violência ou grave ameaça, para fim libidinoso:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, além da pena correspondente à violência.

 

Assédio sexual

Art. 173. Assediar alguém, exigindo, direta ou indiretamente, prestação de favor de natureza sexual, como condição para criar ou conservar direito ou para atender à pretensão da vítima, prevalecendo-se do cargo, ministério, profissão ou qualquer outra situação de superioridade:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

 

Ação penal

Art. 174. Nos crimes definidos neste Capítulo, procede-se mediante queixa.

§ 1º. Procede-se, entretanto, mediante ação de iniciativa pública, se:

I - resulta lesão corporal grave ou morte;

II - o crime é cometido com abuso de pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, madrasta, tutor ou curador;

III - o crime é cometido contra menor de quatorze anos, ou pessoa alienada, portadora de deficiência mental ou impossibilitada por qualquer outra causa de oferecer resistência.

§ 2º. Procede-se mediante representação, se a vítima ou seus pais ou quem sobre ela tem autoridade não podem prover as despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família.