EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DO PROJETO DE REFORMA DO CÓDIGO PENAL

 

Brasília, de de 2000.

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

Submeto à consideração de Vossa Excelência o anexo Projeto de Lei que altera a Parte Geral do Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e dá outras providências.

2 Com a edição da Lei no 7.209, de 11 de julho de 1984, reorganizou-se sistematicamente toda a Parte Geral do Código Penal em criterioso e metódico trabalho de reconstrução das teorias do delito e da pena com vistas à harmonização de nossa antiquada legislação ao que havia de mais moderno e factível, em vista da realidade brasileira, para a prevenção e repressão ao crime sem perder atenção à dignidade do criminoso.

3. Muitos dos princípios trazidos tanto na Reforma do Código Penal quanto na Lei de Execução Penal foram pouco depois reafirmados pela Constituição da República, em 1988, conferindo a certeza de que os membros daquelas Comissões estavam perfeitamente sintonizados com os pressupostos de um Direito Penal legislado por um Estado Democrático de Direito. Lamentavelmente, discursos penais menos comprometidos com os laços éticos do Estado de Direito proliferaram com o agravamento de problemas sociais, que não são exclusividade de nossas fronteiras, e esquecendo-se de lição clássica, segundo a qual a melhor políticas criminal ainda é uma boa política social, iniciaram intenso processo de reformas pontuais da legislação penal e processual penal tornando o sistema muito menos permeável às conquistas de 1984, consolidadas em 1988.

4. O Direito Penal legislado na década de 90 foi um dos momentos mais dramáticos para o Direito brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em  matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabordos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa. Ao lado dessas reformas, e mesmo em contradição a vários de seus postulados, novos institutos importados sem muito critério do direito americano e italiano promoveram uma completa desorganização do que sobrara do sistema legal, promovendo uma exagerada liberalização de situações, muitas vezes, socialmente graves. Some-se a isso a crise penitenciária vivida pelo Estado brasileiro e as frustrantes tentativas legais de corrigi-la pela via de remédios marcados por um forte sentimento de impunidade e tem-se o retrato da legislação penal atual. Uma completa desarticulação discursiva entre institutos, ausência de correspondência destes a uma política criminal efetiva e paradoxos que se avolumavam em quantidade e qualidade impediam que se pudesse chamar de sistema penal o que brotava dessas reformas.

5. Não é o caso de fazer referência a cada uma das leis responsáveis pelo caos punitivo gerado. Cada uma de per si e todas em seu conjunto promoveram o mais sinistro desmantelamento de um sistema penal equilibradamente construído poucos anos antes. (Fls 02 da EM No /00)

6. Diante da necessidade de se promover urgentemente a reconstrução do sistema penal, o então Exmo. Sr. Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, pela Portaria no 531, de 29 de setembro de 1999, nomeou um Grupo de Trabalho Especial para promover um diagnóstico do funcionamento do sistema penal brasileiro e oferecer sugestões para o seu aperfeiçoamento. Fizeram parte desse Grupo os ilustres professores Alberto Silva Franco, Edson O'Dwyer, Ivette Senise Ferreira, Jair Leonardo Lopes, Fernando Luiz Ximenes, Luiz Vicente Cernicchiaro, Miguel Reale Jr., que o coordenava, Nilo Batista, René Ariel Dotti e Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, este já previamente designado Secretário. Somou-se a esses e na Secretaria, Eduardo Reale Ferrari.

7. Dos trabalhos desenvolvidos por esse Grupo de Trabalho Especial e das audiências públicas e com os mais qualificados interlocutores e operadores do sistema criminal com reuniões em diversos pontos do País concluiu-se pela necessidade de reformar, com urgência, ao menos o sistema de penas do Código Penal para reordená-lo aos princípios constitucionais e garantir, simultaneamente, a segurança exigida pela cidadania e a dignidade humana de todos os personagens do processo criminal reclamada pela civilização e pelas leis.

8. A exemplo do ocorrido com a Reforma Penal de 1984, deliberou-se remeter à fase posterior não apenas a reforma da Parte Especial do Código, que necessita, antes e acima de tudo, um amplo processo de consolidação das leis penais com harmonização dos crimes ainda previstos na legislação complementar que se avoluma constantemente. Mas não foi só a Reforma da Parte Especial foi adiada. Igualmente, a da teoria do crime na própria Parte Geral, fruto também de polêmica que o momento recomendava evitar.

9. É inarredável a necessidade de se editar uma urgente Reforma da Lei de Execução Penal para harmonizar o texto da Lei no 7.210/84 ao disposto, agora, no novo sistema de pena apresentado nesta Reforma. Tal omissão não apenas tornaria inviável a edição isolada da Reforma da Parte

Geral, mas potencialmente mais perigoso do que deixar as leis simplesmente como estão atualmente, uma vez que são documentos cuja tramitação deve ser inseparável. A precedência dada à reforma do sistema de penas na Parte Geral do Código, à semelhança do que se tem feito em outros países, antecipa a adoção de nova política criminal.

10. A única alteração procedida no Título I do Código Penal versa sobre a legislação especial. Procurou-se coibir o processo de inflação legislativa em matéria penal a partir da alteração do artigo 12 do Código para compatibilizá-lo com a norma-princípio constante do art. 5º do projeto, que se alinha aos preceitos gerais da Lei Complementar no 95, de 26 de fevereiro de 1998, e do Decreto no 2.954, de 29 de janeiro de 1999, que, ao dispor sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, preceituou que os projetos de lei que contenham normas penais deverão:

I - compatibilizar as penas previstas com outras figuras penais existentes no ordenamento jurídico, de modo a evitar a desproporção entre os bens jurídicos protegidos e as penas aplicadas para delitos diversos ou semelhantes (art. 9.º).

11. Para aprofundar esses objetivos e garantir o devido processo legislativo em matéria penal propôs-se que a lei especial não conterá dispositivo tendente a abolir as regras de aplicação da lei penal e aos princípios relativos:

I - aos elementos do crime;

II - às formas de participação punível;

III - ao sistema progressivo da pena de prisão e da medida de segurança de internamento." (Fls 03 da EM No /00)

12. Ao tratar do concurso de pessoas procedeu-se um necessárioajuste para compor um quadro de mais equilibrada retribuição penal aos que se utilizarem, no cometimento de crime, de concurso de pessoas, transformando a mera circunstância agravante do Código atual em causa de aumento de pena de um sexto a dois terços. Tal medida corresponde à necessidade de fazer frente por meio de resposta penal eficaz à criminalidade urbana articulada em grupos de criminosos, inclusive com o auxílio de inimputáveis. Essa maior punibilidade responde inclusive, aos anseios de maior proteção dos adolescentes que são estimulados a participar desses grupos por via do agravamento da responsabilidade dos que foram imputáveis.

13. Como já afirmado, o núcleo da presente Reforma desenvolveu-se em torno do título das penas. O espírito que norteou a Reforma de 1984 continua presente nesta parte, principalmente quando reafirmamos que "uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cadavez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para crimes de pequena e média gravidade, se assim considerar o juiz ser medida justa. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa da liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por ora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade."

14. A reordenação do sistema de penas como tarefa legislativa inicial a partir da qual se tornará possível tanto uma reforma abrangente da Parte Especial do Código Penal e do Código de Processo Penal, diplomas legais atacados de anquilose e inapropriados para dar eficácia à justiça criminal, como uma reforma menos abrangente das legislações mais recentes, como a Lei de Execução Penal (tempo de permanência em cada fase do regime progressivo, punição por faltas disciplinares, atividades das comissões técnicas de avaliação, remição, trabalho do preso, etc.) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (aumento do tempo de internação de menores em relação a atos infracionais extremamente graves) para livrá-los de questões que não dizem respeito à estrutura moderna desses ordenamentos jurídicos.

15. Primeiramente constata-se que, apesar do amplo poder discricionário outorgado ao juiz na escolha da sanção a ser aplicada, mormente para as infrações sancionadas com penas não superiores a dois anos, a opção recaiu, em geral, na aplicação do sursis sem condições.

16. Por outro lado, a recente Lei no 9.714, estendendo a substituição de penas de até quatro anos por restritivas ocasionou a perda de sentido para o sursis, bem como para o regime aberto, como fase inicial do cumprimento da pena. Ademais, a não efetividade do regime aberto em todo o país conduziu à impunidade pela aplicação da prisão domiciliar.

17. Todo esse quadro e a necessidade de se tornar mais efetiva a aplicação das penas restritivas, em busca de um Direito Penal Eficaz, mostra a necessidade de se reformular o sistema de penas, eliminando-se o regime aberto, modificando-se o regime semi-aberto, alterando-se o poder discricionário do juiz. Daí porque o Projeto contempla, de modo bastante ousado, a revogação completa do instituto da suspensão condicional da pena. (Fls 04 da EM No /00)

18. As penas restritivas de direito, sobretudo, a pena de prestação de serviços à comunidade, podem ser operacionalizadas e efetivadas enquanto se implementa a reformulação geral no campo penal e processual penal. Tais penas mostram-se, a curto prazo, mais factíveis, com a adoção de algumas adequadas medidas, mormente com a criação, no âmbito da Justiça Federal e das Justiças Estaduais de Varas Privativas de Execução de Penas Restritivas de Direito, como forma essencial de se operacionalizar a sua efetividade, a exemplo do que ocorre em Fortaleza, Ceará e no Paraná.

19. A impunidade, decorrente da inaplicação das penas restritivas, bem como de sua não implementação quando aplicadas, com a escolha pela solução cômoda do sursis simples, sem condições, é uma questão obrigatória a ser enfrentada pela Comissão. A impunidade resulta, também, da inexistência de casas de albergado, tornando o regime aberto uma falácia, pois a ser cumprido em prisão domiciliar. A falência do regime aberto é constatação obrigatória. Diante dessa realidade, e da verificação de que com pequena equipe técnica e vontade política implementa-se a execução de penas restritivas de direito, com resultados extraordinários em favor da sociedade e do próprio condenado, deu-se grande realce à substituição da prisão por pena restritiva de direito, mas sempre sujeita esta substituição ao poder discricionário do magistrado.

20. Desde a edição da Reforma de 1984 tem havido um crescente movimento internacional em prol da minimização dos efeitos das penas criminais. O Instituto da Ásia e do Extremo Oriente para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente formulou um dos primeiros estudos relacionados com o assunto. Logo que redigidas as Regras Mínimas sobre o tema, o 8.º Congresso da ONU recomendou sua adoção, que ocorreu em 14 de dezembro de 1990, pela Resolução 45/110, da Assembléia Geral. Aprovou-se, ademais, na mesma ocasião, a recomendação de denominá-las Regras de Tóquio.

Os cinco objetivos fundamentais das Regras de Tóquio, que nada mais são que as Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas Não-privativas de Liberdade, estão devidamente delineados nas Regras 1.1 e 1.2, nestes termos:

"As presentes Regras Mínimas enunciam um conjunto de princípios básicos para promover o emprego de medidas não-privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão"; "As presentes Regras têm por objetivo promover uma maior participação da comunidade na administração da Justiça Penal e, muito especialmente, no tratamento do delinqüente, bem como estimular entre os delinqüentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade".

21. Naturalmente que essa direção internacional não poderia ser desprezada numa Reforma Penal de um país que pretendesse ter o seu sistema punitivo compatibilizado com as expectativas internacionais mais evoluídas. Claro, por outro lado, que a experiência de mais de quinze anos de aplicação (e de não aplicação) de regras relacionadas a um sistema de penas que, na sua concepção original já representava um avanço em seu tempo à direção internacional, motivou a sua reformulação numa dupla direção: a busca de eficácia na tarefa punitiva e a humanização de um sistema que continua a preservar a marca de uma dada seletividade de sua intervenção.

22. As inovações propostas não se cingiram, tão-só, à uma nova disciplina jurídica do sistema de penas, mas incluíram, mesmo, uma modificação terminológica que procurou abrandar certos pruridos de outros tempos. Assim, as penas são: prisão (e não mais privativas de liberdade), restrição de direitos, multa e perda de bens. Com a nova denominação pena de prisão, eliminou-se antiga distinção entre reclusão e detenção, que vinha cumprindo apenas papel de relevo em matéria processual, uma vez que aplicadas indistintamente quanto ao seu modo de execução. Também regulamentou-se uma modalidade de pena prevista na Constituição da República, conferindo-lhe uma disciplina compatível com os rigores das penas patrimoniais e uma estrita constitucionalidade na sua cominação e execução. (Fls 05 da EM No /00)

23. O Projeto concentra ênfase na natureza da progressividade do regime de execução da pena de prisão. Na elaboração das novas regras concluiu-se que o tempo atual de permanência nos regimes de cumprimento de pena tem sido insuficiente, o que motivou a mudança do sistema para a obrigatoriedade de permanência mínima de um terço no regime anterior, tornando a execução mais severa do que o sistema atual que se contenta com o prazo mínimo de um sexto. A regra da progressividade do regime de pena deprisão é, não obstante a exigência de maior lapso temporal, humanizada pela inversão do ônus da prova, uma vez que doravante as limitações à progressão são de responsabilidade do Ministério Público, que deverá incumbir-se da demonstração de causas legais impeditivas do benefício.

24. Além disso, há uma espécie de criação de sub-regimes de cumprimento de pena em meio semi- aberto, facultando-se em uma de suas etapas a realização do trabalho externo ou a freqüência a cursos, atividades que não são permitidas sob nenhuma hipótese durante o cumprimento de pena em regime fechado, que continuam, quanto ao mais, com a disciplina geral que lhes conferiu a Reforma de 1984.

25. O regime aberto é definitivamente abolido do sistema de execução de penas de prisão, previsto com idealismo na Reforma de 1984, mas cuja execução terminou abandonada pelos Poderes Executivo e Judiciário. A ausência de construção das casas de albergado ou estabelecimentos adequados a esse fim, tornou o regime aberto em prisão albergue domiciliar uma regra perigosa que contemplou a marca da impunidade e substituiu a premissa do senso de responsabilidade que se pretendia introduzir por um generalizado sentimento de falta de controle e ausência de qualquer fiscalização pelo Estado. Da constatação dessa realidade sobreveio a técnica de trazer o regime do livramento condicional - em moldes bastante próximos do existente na atualidade - como terceira e última etapa do cumprimento da pena de prisão. Fica ressalvado, no entanto, que o livramento condicional apenas poderá ser utilizado como etapa final do regime progressivo, sendo impossível determinar-se o início de execução da pena de prisão nesse regime, ao contrário do que ocorre atualmente com o regime aberto.

26. O cumprimento da pena superior a oito anos continua, obrigatoriamente, a ser iniciado em regime fechado. Abrem-se, contudo, para condenados a penas situadas aquém desse limite, possibilidades de cumprimento em condições menos severas, atentas às condições personalíssimas do agente e a natureza do crime cometido. Assim, o condenado a pena entre quatro e oito anos poderá iniciar o seu cumprimento em regime semi-aberto.

Ao condenado a pena inferior a quatro anos, em lugar do regime aberto, ora extinto, e do livramento condicional, que apenas existe como etapa do sistema progressivo para os que provêm de outros regimes, poderá ter esta substituída por restrição de direitos.

27. Preserva-se o princípio de amparo do trabalho do preso pela Previdência Social, e reafirma-se o seu caráter obrigatório em todos os regimes e que se desenvolverá segundo as aptidões ou ofício anterior do preso, nos termos das exigências estabelecidas. As novas modalidade de ensino, previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação estão contempladas como alternativa ou complementação ao trabalho. (Fls 06 da EM No /00)

28. As penas de restrição de direitos são reconduzidas à formulação geral da Reforma de 1984 (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de fins de semana), com abolição da prestação pecuniária e autonomização da perda de bens e valores. Quanto à prestação pecuniária é necessário dizer que sua nefasta introdução pela Lei no 9.714/98 produziu os efeitos mais perniciosos na desarticulação do sistema de penas levando ao sentimento de impunidade mais vigorosamente experimentado pela sociedade desde muito tempo, além de uma irresponsável mercantilização do Direito Penal. A pena criminal perdeu completamente o seu significado com tal medida que introduziu a obrigação de dar em lugar da obrigação de fazer, característica das restrições de direitos, fazendo com que a imediatidade da liquidação da pena despertasse o sentimento de ausência de qualquer punição ou de extrema vantagem na prática de certosdelitos, inclusive de caráter financeiro. Simplificam-se as hipóteses decabimento das penas de restrição de direitos, garantindo-se-as desde que aplicada pena de prisão inferior a quatro anos ou, qualquer que seja a penaaplicada, se o crime for culposo e a culpabilidade e demais circunstancias judiciais constantes do art. 59,indicarem que essa substituição seja necessária e suficiente à individualização da pena.

29. De se notar a extensão que se pretendeu conferir ao novo rol de interdições de direitos, particularizando-se outras medidas de caráter punitivo nessa modalidade em relação ao rol vigente.

30. A exemplo do que ocorria na Reforma de 1984, para dotar de força coativa o cumprimento da pena restritiva de direitos, previu-se a conversão da pena de restrição de direitos em privativa da liberdade, fixando-se agora que tal conversão dar-se-á sempre no regime semi-aberto e pelo tempo da pena aplicada, se injustificadamente descumprida a restrição imposta. A conversão doutra parte, far-se-á se ocorrer condenação por outro crime à pena privativa da liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa.

31. Como em todos os demais Projetos de Reforma Penal, neste também busca-se revalorizar a pena de multa. Já não é mais a inflação ou a desvalorização da moeda que tornou ineficaz no Brasil a força retributiva da multa. De um lado tem-se uma interpretação exageradamente conservadora na fixação dos valores - o que levou o Projeto a cominar patamares mais elevados - de outro, o aviltamento das multa penal por outras de caráter administrativo. Daí aumento não apenas do número de dias-multa, de noventa para setecentos e vinte como do valor de cada dia-multa (um décimo a dez vezes o valor do salário mínimo), com a possibilidade de elevação até o quintúplo se "o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo."

32. Vedada a conversão da multa não paga em pena de prisão, apresenta o Projeto duas alternativas para a conversão. A primeira, destinada ao condenado solvente que deixa de pagá-la ou frustra a sua execução, acarreta a pena de perda de bens, no montante correspondente ao valor da multa aplicada, que será revertido em favor do fundo penitenciário nacional. Como medida preparatória, o juiz deverá, ao converter a pena de multa em pena de perda de bens, decretar a indisponibilidade dos bens do condenado enquanto perdurar o processo de execução. A segunda, destinada ao condenado insolvente, leva o juiz a converter a pena de multa em pena prestação de serviços à comunidade, pelo número correspondente de dias-multa, podendo o juiz reduzi-la em um terço.

33. Fica abolida a substituição de pena de prisão em multa, sendo esta medida penal de caráter cumulativo, não substitutivo. As penas de prisão de curta duração poderão ser apenas substituídas por penas derestrição de direitos. (Fls 07 da EM No /00)

34. Mantém-se o capítulo específico, pertinente à cominação das penas substitutivas, já que o mecanismo da substituição não poderia situar-se repetitivamente em cada modalidade de delito.

35. São importantes as inovações trazidas ao Código vigente pelo Projeto que procura assegurar a individualização da pena sob critérios ainda mais abrangentes do que os previstos na Reforma de 1984. Aprimoram-se as reais possibilidades de individualização judicial da pena por meio de novos critérios considerados no art. 59, cujas diretrizes foram alargadas. Continuam a ser três as ordens gerais de fatores sobre as quais repousa a individualização da pena; as relativas: ao agente, ao fato e à vítima. As duas últimas não sofreram alterações, mas, quanto ao agente, ao lado da culpabilidade, já em seu sentido mais abrangente trazido pela Reforma de 1984, e dos antecedentes, determina o Projeto que se refira o juiz à reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas. Tais acréscimos merecem destaque. Antes de mais nada, a reincidência deixa de figurar como circunstância agravante obrigatória e passa a ser considerada no curso da individualização da pena. Na seara dos critérios relativos ao autor, cedem lugar a personalidade, de improvável e discriminatória aferição e a conduta social, pelas condições pessoais e oportunidades sociais a ele oferecidas, expressões mais atuais e que revelam a plúrima dimensão do homem como centro de valorização do Direito Penal. No mais, permanece sem alteração o dispositivo.

36. No cálculo da pena não foram introduzidas modificações em relação ao sistema atual salvo quanto ao disposto no art. 68-A, que sem modificar radicalmente a estrutura do nosso sistema clássico das margens penais, cria a possibilidade de se alcançar na maioria dos casos o ideal de justiça material, com a previsão de uma causa de diminuição de pena, fazendo com que esta possa ser aplicada, pois, abaixo do mínimo legal cominado nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, quando se permite ao juiz, observadas as circunstâncias do art. 59 e desproporcionalidade entre a pena mínima cominada e o fato concreto, fundamentadamente, reduzir a pena de um sexto até metade.

37. Em vista do atual estágio da violência e para coibir-se simplesmente o reajustamento da faixa penal da inimputabilidade etária, ao lado do maior rigor que se atribuiu ao concurso de pessoas, inclusive quando há a presença de inimputável no grupo, eliminou-se a atenuante genérica de ser o agente menor de vinte e um anos na idade do fato, circunstância essa que não mais se justifica na atualidade.

38. Foram mantidos os conceitos de concurso material e concurso formal, ajustados ao novo elenco de penas. Mas, por outro lado, modificou-se a definição do crime continuado para tornar claro e corrigir-se inúmeras interpretações jurisprudenciais sobre o seu conceito, expressando o art. 71 que "há crime continuado quando o agente, com ou sem unidade de desígnio, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes que ofendam o mesmo bem jurídico, e pelas condições de tempo, ou de lugar, ou de maneira de execução, ou de outras circunstâncias objetivas semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro". No mais, preservada a estrutura geral da disciplina vigente desse instituto. (Fls 08 da EM No /00)

39. O Projeto baliza a duração máxima das penas privativas da liberdade, tendo em vista o disposto no art. 5º, XLVII, b, da Constituição, que veda as penas de caráter perpétuo. As penas devem ser limitadas para alimentarem no condenado a esperança da liberdade e a aceitação da disciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal. Mantém-se, pois, no art. 75, a restrição a duração das penas privativas da liberdade a trinta anos, e do mecanismo desestimulador do crime, uma vez alcançado este limite. Caso contrário, o condenado à pena máxima pode ser induzido a outras infrações, no presídio, pela consciência da impunidade, como atualmente ocorre. Daí a regra de interpretação contida no art. 75, § 2o: "sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento dapena, far-se-á nova unificação, computando-se, para esse fim, o tempo restante da pena anteriormente estabelecida". Introduz-se, porém, no art. 83, parágrafo único, ao tratar do livramento condicional, a cláusula segundo a qual "independentemente da quantidade de pena e do regime em que se encontre, o sentenciado, cumpridos vinte anos de prisão sem que tenha praticado novo delito no curso da execução da pena, poderá obter livramento condicional." Com isso reafirma-se o sentido da Constituição e não se retira do sentenciado a esperança de liberdade, única razão que pode motivá-lo ao adequado comportamento no curso da execução da pena de prisão.

40. O Projeto avança a Reforma de 1984 ao estabelecer em relação às medidas de segurança uma disciplina mais detalhada, especialmente em relação ao tratamento ambulatorial. Como princípio geral dos estabelecimentos onde venham a ser cumpridas, seja a de internação seja a de sujeição a tratamento ambulatorial, tem-se a regra de que sejam esses estabelecimentos públicos, para que sejam evitados certos abusos que se verifica na atualidade. Excepcionalmente "a internação e o tratamento ambulatorial podem ser efetivados em estabelecimentos privados, à falta de estabelecimento público, desde que devidamente conveniados e autorizados pelo Juízo da Execução", limitando-se essa modalidade de tratamento aos crimes cuja máxima não seja superior a quatro anos.

41 O Projeto prevê também a obrigatoriedade de perícia médica nos internados e sujeitos a tratamento ambulatorial, pelo menos, a cada seis meses.

42. Também a previsão de que o tempo de duração da medida de segurança não poderá ser superior ao do máximo da pena cominada ao tipo legal de crime deve ser considerada como importante inovação do Projeto, na mesma linha de proteção da pessoa humana contra penas (e medidas de segurança) de caráter perpétuo.

43. A desinternação progressiva corresponde a introdução de relevo e de sentido altamente protetivo dos direitos do internado. Transmuda-se o instituto da progressão de regime previsto no sistema de penas para as medidas de segurança, podendo o juiz, após perícia médica, conceder ao paciente que apresentar melhora em seu tratamento, a desinternação progressiva, facultando-lhe saída temporária para visita à família ou participação em atividades que concorram para o seu retorno ao convívio social, com o indispensável supervisão da instituição. Observados os resultados positivos da desinternação progressiva e realizada a perícia, com melhora do quadro clínico do internado, poderá o juiz autorizar a transferência para o tratamento ambulatorial, ouvido o Ministério Público. Entretanto, em qualquer fase do tratamento ambulatorial, poderá o juiz determinar a internação do paciente, se essa providência for necessária para sua melhoria. A alta será sempre condicionada ao tratamento indicado, devendo ser restabelecida a situação anterior se o paciente, antes do decurso de um ano, pratica fato indicativo da persistência da doença. (Fls 09 da EM No /00)

44. São trazidas para a disciplina da ação penal no Código Penal institutos que a ela dizem respeito, introduzidos por outras leis apenas com modificação de dispositivos do Código de Processo Penal. Assim, a suspensão do processo decorrente da revelia (Lei no 9.271/96) e do art. 89 da Lei no 9.099/95 são trazidas agora também para o Código Penal, mas em regime de maior restrição para eliminar o sentimento de impunidade disseminado por esses diplomas. Assim, sobretudo quanto a outra, demarcando-se claramente que não constitui direito subjetivo do acusado, impõe-se, cumulativamente, série de requisitos para tornar esse instituto excepcional, com destaque para a obrigatória reparação do dano, podendo ser satisfeita a obrigação em parcelas, a critério do juiz.

45. Corrige-se omissão legislativa e põe-se fim a celeuma doutrinária e jurisprudencial esclarecendo-se que também são causas de extinção da punibilidade o "cumprimento das condições da transação, do livramento condicional e da suspensão do processo" (art. 107).

46. Para revalorização do instituto da pena de multa modificam-se os prazos de verificação da prescrição, garantindo-se que esta não ocorrerá, em qualquer caso, antes de quatro anos. Tal modificação é necessária em vista da elevação dos valores nominais da multa que passam a representar, em qualquer caso, uma sanção economicamente relevante.

47. Também o rol de causas impeditivas e interruptivas da prescrição foram modificados com o objetivo de limitar a ocorrência da perda do direito de punir do Estado, garantindo-se a tônica de um Direito Penal eficaz.

48. São estas, em resumo, as principais inovações constantes do Projeto de Reforma Penal que ora tenho a honra de submeter à superior consideração de Vossa Excelência. Estou certo de que, se adotado e transformado em lei, há de constituir importante marco na reformulação do nosso Direito Penal, além de caminho seguro para a modernização da nossa Justiça Criminal