Capítulo II*


Ora, visto andarmos à procura desta ciência, devemos examinar de que causas e de que princípios a filosofia é a ciência. Se considerarmos as opiniões que existem acerca do filósofo, talvez o problema se nos manifeste com maior clareza.

Nós admitimos, antes de mais, que o filósofo conhece, na medida do possível, todas as coisas, embora não possua a ciência de cada uma delas por si. Em seguida, quem consiga conhecer as coisas difíceis e que o homem não pode facilmente atingir, esse também consideramos filósofo (porque o conhecimento sensível é comum a todos, e por isso fácil e não-científico). Além disto, quem conhece as causas com mais exatidão, e é mais capaz de as ensinar, é considerado em qualquer espécie de ciência como mais filósofo.

E, das ciências, a que escolhemos por ela própria, e tendo em vista o saber, é mais filosofia do que que escolhemos em virtude dos resultados; e uma [ciência] mais elevada é mais filosofia do que uma subordinada, pois não convém que o filósofo receba leis, mas que as dê, e que não obedeça ele a outro, mas a ele quem é menos sábio.

Tais e tantas são, pois, as opiniões que temos sobre a filosofia e os filósofos. E quanto a estes, o conhecimento do todas as coisas encontra-se necessariamente naquele que, em maior grau, possui a ciência universal, porque ele conhece, de certa maneira, todos os [individuais] sujeitos. No entanto, é sobremaneira difícil ao homem chegar a estes conhecimentos universais, porque estão muito para além das sensações. Além disto, entre as ciências são mais exatas as que se ocupam predominantemente dos "primeiros"; e as que de menos [elementos precisam] são mais exatas do que as que são chamadas "por adição", como a aritmética relativamente à geometria.

Porém, a que ensina é a ciência que investiga as causas, porque só os que dizem as causas de cada coisa é que ensinam. Ora, conhecer e saber por amor deles mesmo é próprio da ciência do sumamente conhecível. Com efeito, quem procura o conhecer pelo conhecer escolherá, de preferência, a ciência que é mais ciência, e esta é a do sumamente conhecível; e sumamente conhecíveis são os princípios e as causas: é pois por eles e a partir deles que conhecemos as outras coisas, e não eles por meio destas, que são subordinadas.

A mais elevada das ciências, e superior a qualquer subordinada, é, portanto, aquela que conhece aquilo em vista do qual cada coisa se deve fazer. E isto é o bem em cada coisa e, de maneira geral, o ótimo no conjunto da natureza.

Resulta portanto de todas estas considerações que é a esta mesma ciência que se aplica o nome que procuramos. Ela deve ser, com efeito, a [ciência] teorética dos primeiros princípios e das causas, porque o bem e o "porquê" são uma das causas. Que não é uma [ciência] prática resulta [da própria história] dos que primeiro filosoforam.

Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, as do Sol e dos astros e a gênese do Universo. Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso, também quem ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso. Pelo que, se foi para fugir à ignorância que filosofaram, claro está que procuraram a ciência pelo desejo de conhecer, e não em vista de qualquer utilidade.

Testemunha-o o que de fato se passou. Qaundo já existia quase tudo que é indispensáel ao bem-estar e à comodidade, então é que se começou a procurar uma disciplina deste gênero. É pois evidente que não a procuramos por qualquer outro interesse mas, da mesma maneira que chamamos homem livre a quem existe por si e não por outros, assim também esta ciência é, de todas, a única que é livre, pois só ela existe [por si]. E por tal razão, poderia justamente considerar-se mais que humana a sua aquisição. Por tantas formas é, na verdade, a natureza serva do homens que, segundo Simônides "Só Deus poderia gozar deste privilégio", e não convém ao homem procurar uma ciência que lhe não está proporcionada.

Se, como dizem os poetas, a divindade é por natureza invejosa, nisto sobretudo deveria ver-se o efeito, e todos os mais categorizados serem infelizes. Ora, nem é admissível que a divindade seja invejosa, e, segundo o provérbio, "os poetas dizem muitas mentiras", nem se pode admitir que haja outra ciência mais apreciável que esta. Com efeito, a mais divina é também a mais apreciável, e só em duas maneiras o pode ser: ou por ser possuída principalmente por Deus, ou por ter como objeto as coisas divinas. Ora, só a nossa ciência tem essas duas prerrogativas. Deus, com efeito, parece ser, para todos, a causa e princípio, e uma tal ciência só Deus, ou Deus principalmente, poderia possuí-la.

Todas as outras são, pois, mais necessárias do que ela, mas nenhuma se lhe sobreleva em excelência. E o estado em que nos deve deixar a sua aquisição é inteiramente contrário ao do das primitivas indagações, pois, dissemos nós, todas começam pela admiração de como as coisas são: tais os autômatos, aos olhos daqueles que não examinaram ainda a causa, ou os solstícios, ou a incomensurabilidade do diâmetro: parece, de fato, maravilhoso para todos que haja uma quantidade não comensurável pela mais pequena unidade [que se quiser]. Ora, nós devemos acabar, segundo o provério, pelo contrário e pelo melhor como acontece nestes [exemplos], desde que se conheçam [as causas]; nada, efetivamente, espantaria tanto um geômatra como o diâmetro tornar-se comensurável. Fica assim estabelecida a natureza da ciência que procuramos e também o fim que a nossa investigação e todo o tratado devem alcançar.


* Estabelecida no capítulo anterior a existência da filosofia (ou sabedoria), Aristóteles propõe-se neste capítulo indagar o que caracteriza. Em resumo é: ciência das causas primeiras; teorética, por excelência; eminentemente livre; divina; a mais digna de apreço, gerando a sua aquisição um estado de espírito contrário ao do pasmo da ignorância.