Em seu
segundo disco - 'The Sophtware Slump' -, o Grandaddy faz uma ode a um mundo que tenta
reconstruir-se após a ruína das tecnologias - e vê um futuro melhor sem máquinas
Alexandre Matias
Cursor do mouse travado na tela. Caixa automático em manutenção.
Chiado de TV fora do ar. Fita cassete moída dentro do aparelho. "A rede
travou". Cartão telefônico desmagnetizado. Poste caído. CD-R que não toca.
Ônibus sem bateria. Disquete bichado. Provedor de internet fora do ar. Blecaute. Carro
sem gasolina. "Este programa executou uma operação ilegal e será desligado".
Controle remoto com a pilha fraca. Celular fora da área de contato ou desligado. Elevador
parado. Flash queimado. Sobrecarga de energia. Caixa de som com microfonia. Vírus de
computador. Tem horas que a tecnologia esfrega na nossa cara que somos meros escravos
dela.
Há quem tenha medo da inteligência artificial, que os computadores,
uma vez de posse do livre arbítrio, se dêem conta de como podem controlar o mundo apenas
obrigando os seres humanos a obedecerem preceitos ditados por milhares de terminais
fantasiados de eletrodomésticos e outras facilidades. Um futuro negro para nossa
espécie, que a ficção científica gosta de recorrer para nos meter medo (procure a
graphic novel A Era Metalzóica ou filmes como Exterminador do Futuro e 2001
- Uma Odisséia no Espaço para ter uma idéia). Mas tal probabilidade é tão
possível quanto remota e, por mais que os avanços na biotecnologia e na genética
avancem, irá demorar ainda um tempo para que computadores pensem como nós, que, como HAL
9000 do filme de Kubrick, possam titubear ("espere um pouco..." divaga o
megacomputador em uma das cenas cruciais e subestimadas do clássico de Arthur C. Clarke)
além de seu raciocínio binário. Por isso, não precisamos nos preocupar com isso.
Outra alternativa de futuro do ponto de vista da tecnologia é
simplesmente sua extinção. Como os dinossauros, que pagaram o preço por serem maiores
do que o nosso planeta poderia suportar, as máquinas que interligam todos os seres
humanos planeta afora podem chegar a um limite que exceda o razoável e pedirem arrego. E
- puf! - desliguem. Imagine o estrago: o mundo atual sem qualquer tipo de energia
elétrica pode ser o cenário perfeito para o juízo final. Tudo aquilo que fugisse do
âmbito local seria prontamente deletado do cotidiano e assistiríamos a pelo menos um
século de reconstrução do planeta sem os confortos do século 20.
É isso que o Grandaddy, este quinteto de Modesto, Califórnia,
conhecido dos alternativos por suas conexões com o Pavement (abriu uma turnê européia
deles e o antigo baterista do grupo de Stephen Malkmus - Gary Young - está excursionando
agora com o Grandaddy) e com o Silver Jews (alguns integrantes do Grandaddy tocaram na
banda de Dave Berman). Com seu segundo álbum propriamente dito, The Sophtware Slump (RoadRunner),
o grupo abre seu leque de referências, expandindo as baladas de folk rock com
referências a um futurismo retrô (culpa dos teclados) que fizeram a fama do primeiro
disco, Under the Western Freeway. Brincando de fazer ficção-científica (e volta
a pergunta - são os discos os livros de hoje?), eles gravam um álbum de rock clássico
pelo filtro da ironia dos anos 90, atravessando-o com referências à ciência e
tecnologia e a texturas eruditas - mais um para uma galeria de setentismo hi-fi que gerou
o OK Computer, do Radiohead, em 97; Deserter's Songs, do Mercury Rev, em 98;
e com o Soft Bulletin, dos Flaming Lips, no ano passado (e o Good Morning Spider,
do Sparklehorse; o Terror Twilight, do Pavement; e último disco do Air).
A alma do grupo é o vocalista, guitarrista, tecladista, produtor e
principal compositor, Jason Lytle, que é o nosso condutor neste pequeno conto de
ficção-científica. Sem uma linha narrativa central, o disco vai contando pequenas
histórias de um planeta pós-alta tecnologia, em que a natureza, por capricho próprio
(ou para garantir a própria sobrevivência), desliga todas as máquinas e os homens têm
apenas que aprender como viver sem elas.
Descobrimos um planeta onde aparelhos inúteis são jogados fora em
florestas, onde robôs morrem lentamente e a natureza volta a ser um prazer quase lúdico
para o homem moderno, recém-transformado em novo-primata ao ter de conviver sem as
ferramentas que tornaram sua vida preguiçosa. Mas em The Sophtware Slump ("O
Colapso dos Sophtwares", escrito errado mesmo, como o "ph" no lugar do
"f"), vivemos num mundo em que o acontecimento do título é lembrado como um
marco na história, embora não se tenha exata noção do que realmente significou aquilo.
São pelo menos duas gerações após o fim das máquinas do século 20 e a natureza volta
a exercer o papel de divindade (que a ciência - via tecnologia - havia substituído)
sobre novos humanos que não sentem falta do conforto de outrora porque só ouviram falar
nele, nunca o desfrutaram. E numa lenta conclusão, o Ctrl+Alt+Del planetário talvez
tenha sido a melhor coisa que já aconteceu à Terra.
Ele abre como um banjo distorcido de Hes Simple, Hes
Dumb, Hes the Pilot. "Sem rumo de novo, homem 2000?/ Perdeu os mapas,
perdeu os planos/ Você ouviu eles gritarem: Pousa, porra, pousa!/ Você diz
que não consegue/ Mas acho que você consegue", canta solitário (ouvimos o som de
árvores, insetos e aves ao fundo) com esperança em encontrar a esperança no homem do
ano 2000. "Você está pronto?", pergunta uma voz da cabine. "Sim",
responde o vocalista antes de parar de tocar o banjo. A torre retorna: "OK, 1, 2, 3,
4" e um teclado cafona (bem anos 80) e o compasso marcado por uma bateria leve passem
a acompanhar o vocal. O clima já não é o mesmo. "Como vai, homem 2000?/ Bem-vindo
de novo à terra firme, amigo/ Ouvi falar que os controles estavam presos/ É bom tê-lo
de volta". Uma frase assobiada por um teclado vagabundo abre a terceira parte da
música, agora com violão, cordas e efeitos sonoros da era Atari. "Mas acho que eles
não entendem/ Eles nunca entendem/ Eles dizem: encontre, homem 2000/ Temos novos planos/
Mas em vez disso/ Eu estou aqui pra te contar/ Eu acredito que eles querem que você
desista/ Você está desistindo, homem 2000?". O clima de dúvida faz com que o piano
assuma o primeiro plano com notas dissonantes e logo as rédeas da canção, enquanto
cordas digitais e mais efeitos sonoros crescem ao fundo, criando uma paisagem decadente e
surreal ao mesmo tempo que atemporal. "Você está cedendo, homem 2000?",
pergunta o narrador, enquanto um segundo vocal faz a pergunta que explica o colapso do
título - "Você amou este mundo ou este mundo não te amou?". Teclados ainda
mais retrô (eles são onipresentes daqui pra frente) passam a cantar a melodia, enquanto
os vocais vão morrendo lentamente, junto com a canção... Devagar como o computador de
2001... Como o fim de uma faixa do Pink Floyd... "Não desista, homem 2000".
Depois de nos situar no apocalipse pós-colapso, o disco passa a nos
contar pequenas historietas deste novo mundo, que só nos ajudam a ver e imaginar um mundo
sem máquinas. O country-steady de Hewletts Daughter fala que "do alto
dos destroços/ Geleiras e armários/ Assisto à bagunça/ E meço a pressão/ Sofás
flutuando em estradas". A triste Jed the Humanoid descreve a criação e a
morte de um robô (Jeddy 3 - o que faz a bizarra conexão com o Rush, cujo vocalista,
Geddy Lee, é fissurado em ficção-científica e escreveu pelo menos dois discos que são
refletidos em Slump - 2112 e Farewell to Kings), que se mata depois
que se torna obsoleto - e, conseqüentemente, não amado. The Crystal Lake é
pesada e plácida ao mesmo tempo e trata um lago como um oráculo, que "sabe que
você é só um homem moderno". Pesada e rápida, Chartengrafs vem em seguida
falando em "trocar tabelas e gráficos por risadas". A bucólica Underneath
the Weeping Willow pede a purificação através da natureza: "Quero dormir sob o
salgueiro chorão/ Ele chora toda noite quieto/ Lacrimeja tudo à minha volta/ Dormirei
sob aquele som/ E finalmente serei permitido/ A acordar e ser feliz de novo".
Ao centro do disco, talvez sua faixa mais significativa, Broken
Household Appliances National Forest. A paisagem da destruição é descrita com
detalhe: "Sentado numa torradeira como se fosse uma pedra/ Não preciso me preocupar
em tomar choque/ Todas as microondas morreram/ Como a salamandra disse/ Geladeiras servem
de casa para sapos/ O cabo elétrico é como um tronco oco/ Floresta Nacional dos
Eletrodomésticos Quebrados/ Ar-condicionado nas árvores/ Floresta Nacional dos
Eletrodomésticos Quebrados/ Lama e metal se misturando bem". Dividida em duas
partes, a faixa começa contemplativa e melancólica até cair no momento mais pesado do
disco, rock parte punk parte metal, sem esquecermos da sonoridade retro-eletrônica que
permeia todo álbum.
Ele prossegue com a tensa e realista Beautiful Ground, em que
ele admite que "tentou cantar engraçado como o Beck/ Mas me deprimiu", logo
após, como o cantor americano, empilhar referências consumistas como "Terra de TV
ar-condicionado/ 20 paus/ Vai pro banco". A faixa termina como uma canção de amor
ao chão ("Belo chão", diz o título), parceiro de bebedeiras do compositor. A
instrumental E. Knievel Interlude (The Perils of Keeping it Real) passa longe da
adrenalina que seu personagem-título (o dublê mais famoso dos Estados Unidos, Evel
Knievel) e usa um relógio como metrônomo, um triste teclado como voz principal e uma
apreensão pré-erupção como acompanhamento. Miner at the Dial-a-View lembra um
Sebadoh fase Bakesale com produção hi-fi. O narrador conta como não encontrou
seu amor através do Dial-a-View (em bom português, "Disque-e-Veja"), um
aparelho que, provavelmente via satélite, filma qualquer pedaço do planeta apenas ao
digitar latitude e longitude. "Eu vi tua casa e teu carro/ Mas não sei onde você
está/ Pelo Disque-e-Veja", reclama o narrador. A faixa acaba com a palavra
"dream" (sonho) repetida automaticamente, até entrar no epílogo, So You Aim
Toward the Sky, que depois de certificar-se que o personagem está a caminho do céu,
despede-se: "Voe/ Longe/ Da dor". As cordas vão baixando e um piano dá a
última nota do disco.
Musicalmente, o grupo está parado numa estranha encruzilhada. De um
lado, é clara a influência de rock dito clássico (especificamente aquele com ambições
mais épicas que a média), do final dos anos 60 e começo dos 70 - progressões de
acordes à Jimmy Page, atmosferas tipicamente Pink Floyd, ecos de Rush. À frente está a
sonoridade retrô do tecnopop dos anos 80 e de bandas pseudo-modernas nos anos 70, como
Electric Light Orchestra, com teclados ultrafuturistas para seu tempo, que soam brega hoje
em dia. No outro lado está a influência da geração folk atual, de artistas como Radar
Bros., Sparklehorse e Will Oldham. Por trás, vem o espírito de Neil Young, velho caubói
que flertou com a eletrônica rasteira em um tortuoso aposto no começo dos anos 80.
Neste meio do caminho, o grupo pinta um quadro em que a única função
da tecnologia parece ser desaparecer para que o homem recobre o sentido da vida junto à
natureza. Entre restos de computadores (espalhados pelo encarte do disco) e fios inúteis,
não teríamos outra opção senão voltarmos a uma vida selvagem e rural. E ficaríamos
brincando de montar palavras com letras arrancadas de teclados, como sugere a capa. Sem
pressa, sem tensão, sem afobação. Livres, enfim.