Link do dia: A história da Discos Marcus Pereira
O Bidê ou Balde tem o álibi indefensável por ter sempre escancarado seu
objetivo: queriam o topo do showbusiness, o cúmulo do hi-fi, mainstream direitoso, Las
Vegas. Porque se fossem uma banda indie de verdade, daquelas "pelo underground",
o fato de entregar seu primeiro disco nas mãos do conglomerado Abril (vivendo dias de
ressaca, depois da fartura de "Anna Júlia" e "Eu Vou Estar") poderia
comprometer a evolução da produção independente de música pop no Brasil. Como
comprometeu. Tá bom, eis a teoria: o Bidê ou Balde era a banda certa na hora errada. Tudo começa no primeiro ano FHC, 1994, quando uma geração de bandas de classe média recebe, na cara, a porta das gravadoras multinacionais. Acontece que o povão estava recém-endinheirado, graças ao Plano Real, e estas perceberam que era muito mais f'ácil vender subgênero musical em escala industrial pra moradores de condomínios-pombais do que adular parte dos formadores de opinião para convencer classes A e B do que comprar. Soltos sem as muletas financeiras que a seguraram em todas as décadas depois da bossa nova, a geração Juntatribo viu seu sonho popstar estilhaçar em sua frente. Enquanto o mainstream absorvia os nomes mais pop daquela safra (Raimundos, Chico Science & Nação Zumbi, Pato Fu, Planet Hemp, Skank), todo o restante tinha seu chão retirado rapidamente, cada banda em um momento - graça a diferentes tipos de fatores: um produtor pilantra, um disco sem divulgação, uma tiragem inexistente, uma gravadora picareta, um jornalista deslumbrado, uma gravação feita nas coxas, uma briga desnecessária, o fato de não fazer shows. Em 1995, a grupo contemporâneo de artistas pop/rock no Brasil enfrentava uma seca braba e quase aceitou seu próprio fim. Alguns sobreviventes decidiram continuar. Reduzindo seu campo de ataque ao público local, bandas davam prioridade ao estabelecimento de um nome forte em âmbito regional, que daria um possível reconhecimento nacionalartistas - nunca o caminho inverso. Artistas que flertaram com grandes gravadoras alguns anos antes se reinventavam para começar do zero. E a estética da "mistureba", que reinava no pop antes do triunvirato sertanejo-pagode-axé tomar o poder, rompe com fronteiras sonoras novas e aceita influências de cenas paralelas à dita central, como eletrônico e hip hop. Destes, a cena pop independente brasileira adquire principalmente a noção não-linear de produção. Não havia a necessidade de uma pessoa centralizar as principais ações do lançamento de um produto independente. Associado a esta descentralização da cena, acontece a popularização do computador e da internet. A eletrônica permite que bandas e gravadoras possam produzir de verdade, sem a interferência de especuladores de tecnologia, como salas de ensaio, estúdios e mesas de mixagem e masterização. Ela possibilita que jornalistas e fanzineiros tornem seu trabalho ainda mais lido e, como conseqüência, mais próximo do dia-a-dia de seus leitores. É a eletrônica que possibilita que a troca de músicas à distância seja feita a uma velocidade infinitamente superior - questão de minutos. Gravadoras pequenas distribuem e divulgam melhor seus discos, como produtores garantem audiência a seus shows e as bandas vendem-se direto ao ouvinte. Assim, os principais agentes do mercado de música pop independente no Brasil passam a se comunicar e a se conhecer de forma mais ágil e eficaz. Isto permite que a cena evolua pacas. O próximo passo é a inevitável intercomunicação entre os nomes brasileiros e seus pares estrangeiros e logo pequenos selos americanos, europeus e japoneses começam a publicar novos artistas brasileiros, revistas e fanzines gringos descobrem diferentes aspectos da cena musical, bandas de todo o mundo vêm fazer shows organizados por produtores que cresceram junto aos indies. Assim, entre 1998 e 1999, a cena independente brasileira viveu um momento quase utópico. Bandas novas, gravadoras iniciantes bem sucedidas, programas de rádio, festas, excelentes shows nacionais e internacionais toda a semana, em toda a parte do Brasil, fanzines respeitados, público cada vez maior, interesse da mídia - que passou a utilizar o termo "indie" como uma espécie de novo grunge (quando todo mundo sabe que o indie é o novo hippie). É aí que algo foge de controle. Quando bandas como Los Hermanos, Autoramas e Bidê ou Balde passam a ser aceitas, por diferentes tribos dentro da cena, como bandas dignas de pertencerem à elite indie, as três assinam com grandes gravadoras e quebram a lenta escalada rumo à popularidade de uma cena que se dispunha a viver em seu mundo paralelo, longe do "paraíso" mainstream. E, de um jeito ou de outro, confundiram a cabeça de seu público original. 90% do público underground dos Hermanos passou a odiar o grupo assim que "Anna Júlia" misteriosamente se tornou um hit popular e foi tocada sobre os trios elétricos do axé. O disco do Autoramas não era fácil de encontrar e o grupo fez shows para públicos diferentes de sua audiência cativa. O Bidê ou Balde encontrou uma resistência pesada por parte da mídia que não ia com a cara da cena independente (e sua divulgação equivocada fez com que o grupo perdesse o público indie que ganhara no início). Não dá pra culpar as bandas, afinal o ano foi ruim para a economia brasileira e muita gente se segurou como pôde. Fora que sempre existe a possibilidade de conseguir trabalhar bem dentro de uma grande gravadora, embora ela seja cada vez menor - mas quem consegue ser frio o suficiente para pensar na História enquanto faz decisões que alterem seu dia-a-dia? Mas não dá pra não deixar de imaginar quantos discos o Autoramas venderia se seu CD saísse por uma gravadora estabelecida no mercado independente - afinal, eles fizeram seu nome graças a shows e uma demo de três músicas. E o Los Hermanos, que vinha numa escalada de shows que possivelmente não chegaria ao público estratosférico pós-"Anna Júlia", mas que fatalmente o deixaria do tamanho de um Funk Como Le Gusta ou de um Marcelo Nova (ou seja, artistas estáveis, que sempre enchem seus shows). E isso no primeiro disco. Mas o Bidê ou Balde tem a desculpa de ser indie sem querer. Pode ser jogada de marketing, mas o fato é que o grupo não lançou fita demo (preferiu o CD single com "Melissa" e só), e de cara partiu para o circuito interior-litoral gaúcho que movimenta o mercado de discos no Rio Grande do Sul. Mas o grupo estava dentro de uma efervescência cultural de Porto Alegre que até hoje dá frutos e que, por nomes como Frank Jorge, CardosOnLine e Video Hits terem vínculos fortes com o underground, fez com que o BoB fosse assimilado pelo público indie gaúcho. E, conseqüentemente, notado pelo indie nacional. Mudaram pra São Paulo, cativaram um público local, lançaram o disco, ganharam a antipatia de muita gente de mídia e, por falta de divulgação e marketing equivocado, não conseguiram o que queriam: acontecer em escala nacional. Por isso, Outubro ou Nada! é como se fosse o primeiro disco da banda. Como o lançamento do livro do Elio Gaspari foi lançado às vésperas do governo Lula (para "apagar" o estrago da ditadura militar), o segundo disco do Bidê ou Balde parece ser uma tentativa de enxergar uma história paralela. E se o grupo lançasse seu disco por uma gravadora independente? Porque, por maior que Antídoto seja, ela é uma gravadora independente e seus discos mal chegam pra cima do Trópico de Capricórnio. Não estão em todas megastores, não estão em todas as lojas online, nem nas bancas de revistas ou em gôndolas de hipermercados. Isso funciona como se o grupo fizesse uma declaração de princípios. Ou seja - mesmo terminando a fantástica "Hollywood #52" com uma coda tào hi-life quanto surreal ("Estofado de couro/ Pele de camelo" repetido diversas vezes), o Bidê ou Balde volta como uma banda indie. Legal, o primeiro disco - Se o Sexo É o Que Importa, Só o Rock é Sobre Amor - acaba soando como um manifesto sobre o universo desenhado pela banda: new wave e pós-punk, Rentals e Weezer, B-52's e Fall, Strokes e Hives, Blitz e Globo de Ouro. Sim, os elementos pop estão mais pop que nunca, mas a produção do mago Thomas Dreher e guitarras mais sujas e mais pesadas sugerem que o lugar do Bidê - pelo menos em Outubro ou Nada! - é na parada de rock alternativo, entre o recém-falecido Astromato e os carniceiros for export do Thee Butchers' Orchestra. E que mal tem isso? Nenhum. O segundo disco da banda gaúcha tem tantos hits em potencial quanto o primeiro e algumas músicas funcionam como continuações conceituais de faixas do disco anterior ("A-há!" é prima-irmã de "Me Envergonha", "Dulci" segue "(Eu Te Amo) Lucinda", "Matelassê" é uma evolução do pop dada de "K-7" e "Spaceballs"). A maioria gruda no cérebro na segunda audição (algumas, de cara), mas o rádio brasileiro, acostumado a melodias óbvias, riffs batidaços e letras melosas, não absorveria tão facilmente o pop do grupo (atenção para o grifo necessário) quanto a cena independente. Tudo porque a cena independente já amadureceu o suficiente pra saber o que é bom, o que é pop e quando os dois agem ao mesmo tempo. Outubro ou Nada! é festa do início ao fim, segue o compasso do disco anterior com um plus de familiaridade com o estúdio e menos encanação quanto à aceitação que o trabalho poderia ter frente ao showbusiness. Em seu segundo disco, o Bidê faz rock pra eles mesmos, sem encanarem em agradar os mídia e o mercado, esse sujeito decadente que compra o que as grandes corporações ensinam. E aí está o trunfo na manga que o BoB talvez nem tenha pensado: longe do mercadão, conseguem atingir um público que exige mais qualidade e talvez possa retomar a escalada freada no ano 2000 e conseguir fazer um disco independente que venda 10, 20 mil cópias. |
06.12.02 Outubro ou Nada! Bidê ou Balde 2002 1. Hollywood #52 05.12.02 |
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