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Alexandre Matias

20021209leeperry.jpg (83053 bytes)As voltas que o mundo da música dá: sabe aqueles chutes que se dá quando se dança reggae? Você sabe - reggae se dança com os braços dobrados, balançando para um lado e para o outro, funcionando como um contrapeso para o próprio gingar do corpo, que vai para a direita quando os braços estão à esquerda, e vice-versa. A dança do reggae é um movimento de vai-e-vem entre duas paralelas, a dos ombros e a das ancas. Toda a dança do reggae - e parte da dança latina e caribenha - trabalha com a alternância lateral destes dois eixos, interligados pela coluna.

Voltando aos chutes, há uma variação do passo clássico do gênero jamaicano que propões outra alternância. Desta vez, à medida em que os pés saem, cada um à sua vez, do chão, eles flutuam um tempo maior no ar, voltando para o chão na hora marcada pelo ritmo e no exato momento em que o outro pé sai do chão. Há um exercício de futebol semelhante, embora não seja marcado pelo ritmo: sobe-se o joelho para frente, à altura da virilha, alternando uma perna por vez. Essa dancinha, que chegou a talhar parte das coreografias de samba-reggae feitas pelas multidões atrás dos trios elétricos em Salvador, talvez não existira, caso uma pessoa específica não tivesse absorvido influências não-musicais tão absurdas quanto improváveis em sua própria música.

Este sujeito é o nosso amigo Lee "Scratch" Perry, papa do dub, o upsetter, o conquistador, o bom e velho "Lipa" como carinhosamente se referem os dubeiros brasileiros. Nosso herói não é o poderoso chefão do Universo Reggae, mas também pode ser considerado o pai da música popular moderna, devido às audazes práticas em estúdio que inventou. Ele pode não ser o pai do dub (este é, sem dúvida, King Tubby), mas foi quem transformou o gênero em comunicação para as massas, valor agregado sonoro e magia negra da era elétrica. Como um pajé, entuchava-se de plantas medicinais (maconha, especificamente), enfurnava-se em seu retiro espiritual (o excêntrico estúdio Black Ark) e, com suas ferramentas mágicas (uma mesa de som e idéias que poderiam soar geniais ou ridículas, dependendo de quem as ouvia), transformava o som de novos artistas em viagens psicodélicas individualistas e extravagantes, ganhando cores e profundidade inéditas na história do som gravado. Sua batuta conduziu metamorfoses surpreendentes, levando nomes como Junior Marvin, Max Romeo, the Heptones e os Wailers de Bob Marley a fronteiras musicais muito além do mundano conceito de pop radiofônico que estes tinham antes de conhecê-lo.

Tremendo encrenqueiro, brigou com deus e com o mundo, fez o que lhe deu na telha e cultivou inimigos por puro capricho, usando sua mitológica excentricidade como desculpa para tudo que quisesse fazer. Assim, garantiu seu espaço não apenas na história do reggae, mas do punk (o Clash o trouxe pra Inglaterra como se tivesse conseguido domar um animal raro), do hip hop (que o diga o DJ Kool Herc, o pai da matéria, que lhe surrupiou todos os segredos de estúdio) e da música eletrônica.

Sua viagem sonora hoje parece brincadeira de criança. Afinal, Tubby já tinha feito a parte principal. Foi ele que, experimentando sobre as possibilidades que inventaram as versions (o tetravô do remix), isolou vocais e cozinha das músicas. Com baixo, bateria e, ocasionalmente, teclados separados da melodia principal, Tubby esticava a canção o tempo que desejasse. Isso veio pela demanda que do público jamaicano, que queria dançar por horas a mesma música.

Foi aí que surgiram as tais versions. Como o público queria exatamente a mesma coisa e os donos dos soundsystems (aquelas picapes usadas, caindo aos pedaços, com caixas de som e radiolas na carroceria, que animavam os bailes jamaicanos) queriam vender novas músicas e artistas, aos poucos um novo conceito surgiu. Usando as mesmas bases musicais das músicas que faziam sucesso, produtores empilhavam novos vocais, novas melodias, novos solos, tornando as músicas velhas, novas. Logo, as bandas de estúdio estariam gravando apenas "riddims", bases instrumentais que seriam recicladas quantas vezes o público quisesse.

Com seu próprio soundsystem, Tubby era um hacker antes de seu tempo. Começou na música graças às seus conhecimentos de elétrica, rudimentares e experimentais, aprendidos na marra, consertando TVs, rádios, eletrodomésticos e a parte elétrica de automóveis. Logo estava dentro do estúdio, ajudando produtores a descobrir novos efeitos e inventar novas técnicas de gravação. Mas enquanto fritava o peixe, olhava o gato, e assim criou seu próprio soundsystem, em 1964, cheio de delays e reverbs feitos através de gambiarras elétricas e uma potência inacreditável para a época. Com uma arma secreta (o sagaz U-Roy) como seu discotecário, começou uma escalada de sucesso que o levaria ao topo do pop da ilha em menos de quatro anos.

O começo dos anos 70 viu o auge da era das versions, quando hits que caíam no gosto popular se desdobravam em duas, três, quatro, dez e às vezes dezenas de versões, muitas delas meramente instrumentais, com vocais falados adicionados em estúdio. Foi quando Tubby resolveu ir além. Depois de meses ensaiando suas experiências em estúdio, resolveu lançá-las para o público. O ano era 1972. De repente, a música parou e, em vez do ritmo voltar, Tubby deixou apenas os vocais da melodia serem repetidos a capella, sem instrumental. O estranhamento causado foi desligado assim que o ritmo voltou, mas havia algo diferente. Não haviam guitarras ou teclados, o som era apenas o pulsar seco e gordo do baixo e da bateria. Logo os elementos que compunham a melodia voltavam, mas completamente diferentes. Tubby deixava vocais no fundo, usava apenas pedaços de guitarras, repetia várias vezes um mesmo efeito e, principalmente, coalhava a música de eco. Era como se ele desligasse a gravidade da pista de dança. O público, como era de se imaginar, pirou. E Tubby mais uma vez se consagrava como papa do ritmo local.

Isto enfureceu o desequilibrado Lipa. Fulo da vida depois que o popstar que ajudou a moldar (Bob Marley) se rebelou e se livrou de suas amarras, Perry estava disposto a assegurar seu nome na história. E perseguiu a novidade inventada por Tubby como se fosse uma idéia sua - e até hoje o sujeito garante que é o inventor do dub. Mas a pólvora é filha do nerd magrelão ("Tubby" era um apelido irônico).

Mas não dá pra desmerecer as explosões criadas por Perry. Se Tubby tinha se garantido ao transformar as quatro paredes do estúdio num literal espaço sideral, Perry queria agremiar elementos não-musicais à dança. Começou usando referências de quadrinhos e faroeste, disparando sons que lembravam armas lasers e supersocos, tiros e galopes de cavalo. Ambos universos iam além de suas gravações: a série de discos Super Ape sempre trazia um macaco gigante como se fosse um super-herói selvagem; seus discos eram lançados por selos próprios, com nomes como Justice League; sua principal grife de discos (Upsetter) trazia no rótulo o desenho de um punho fechado visto de frente, como se rasgasse o disco - a onomatopéia "Punch!", escrita sobre o rótulo, não deixava dúvidas quanto suas inspirações. Os títulos de discos e músicas também traziam referências caubói: "Clint Eastwood", "Return of Django", "For a Few Dollars More", "The Good, the Bad and the Upsetters".

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O desquilibrado Lipa

Até que, em 1975, durante as gravações do que se tornariam três discos, ele precisava de temas para as músicas. Deixou sua banda de estúdio, os Upsetters, inventando bases e melodias quando lhe veio à cabeça os filmes de Bruce Lee que ainda faziam sucesso na Jamaica. A lógica era a mesma por trás dos conceitos dos filmes italianos de bangue-bangue e dos super-heróis de quadrinhos: um herói solitário que enfrentava a tudo e a todos para conseguir se manter vivo. Sem pensar duas vezes, Lipa voltou ao Black Ark com tudo na cabeça.

A banda que habitava o estúdio do mestre bem conhecia os delírios de seu patrão e logo sacou o que ele queria. Em vez do som mellow e arrastado do reggae tradicional (que, aos poucos, ganhava contornos de fenômeno mundial, na época), o baixista Boris Gardiner e o baterista Mikey Richards (que revezava-se no instrumento com Sly Dunbar e Benbow Creary) começaram um andamento mais rápido, mais próximo do ska e do rocksteady. Com teclados de Winston Wright e Keith Stirling e a inconfundível guitarra de Earl "Chinna" Smith, a banda já havia gravado os discos Musical Bones e Return of Wax. O novo disco seria batizado de Kung Fu Meets the Dragon e contaria com uma participação mais do que especial: Augustus Pablo.

Pablo era discípulo do rival de Perry, King Tubby, e já havia gravado sua obra-prima com seu antigo mestre (King Tubby Meets the Rockers Uptown, considerado o melhor disco de dub de todos os tempo, lançado em 1974) quando começou a trabalhar com Perry. Embora Lipa não confirme nunca, arredio e arrogante do jeito que é, ele não chamou Pablo para trabalhar com ele apenas por seu instrumento. Augustus era o único músico jamaicano que, além de dominar a escaleta (aquele piano de soprar, tipo de brinquedo), conseguia fazer da mesma um instrumento mágico, perfeito para o dub. Mas além disso, Pablo era um mestre do estúdio e parte de seu sucesso com instrumentista vinha de seu feeling como produtor: sabia exatamente onde colocar uma nota, uma frase musical.

"This is... Kung... Fu...", anuncia Lee Perry, em seu tom habitual, abrindo um de seus melhores discos. Quase todo instrumental (apenas "Kung Fu Man", com vocais do lendário Horace Andy - o mesmo que hoje milita nas fileiras do Massive Attack), o disco reúne alguns dos instrumentais mais sólidos e fortes gravados pelo produtor, além de nós de velocidade à frente de seus discos tradicionais. Entre as bases, Perry soltava sua persona oriental, em gritos bizarros que mais soavam como almas desencarnadas - mas era apenas Lipa fingindo-se de lutador de artes marciais.

Mas se os gritos e a temática japa deu a Perry motivo para gravar um álbum inteiro, além de abrir um outro braço para suas inquietações temáticas, deu à música moderna um disco de dub mitológico, com uma sonoridade inédita até para o gênero, em constante evolução. E deu a oportunidade para Lee Perry, nos shows, dar as suas hoje famosas voadoras. Mas se as de Bruce Lee eram saltos com chutes violentos desferidos em pleno vôo, às de Lipa eram tímidas e mal saíam do chão. Pra multidão que o via em ação assimilar aqueles chutinhos à já tradicional dança de reggae, foi questão de tempo.

 

09.12.02
Kung Fu Meets the Dragon
Lee Perry & The Upsetters
1975
1. Enter the Dragon
2. Theme From Hong Kong
3. Heart of the Dragon
4. Hold them Kung Fu
5. Flames of the Dragon
6. Scorching Iron
7. Black Belt Jones
8. Skango
9. Fungaa
10. Black Belt
11. Iron Fist
12. Kung Fu Man

13. Exit the Dragon
14. Rockstone Dub
15. The Dragon Enters
16. 23rd Dub
17. Rebel's Dub

08.12.02 (dia livre)

GOBLIN07.12.02
Suspiria
Goblin
1977


20021122ledzep.jpg (10464 bytes)06.12.02
Outubro ou Nada!
Bidê ou Balde
2002

20021122ledzep.jpg (10464 bytes)05.12.02
Houses of the Holy
Led Zeppelin
1973

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