Link do dia: Lugares abandonados
Apesar
da música negra norte-americana nos presentear rotineiramente com canções fabulosas,
há algo na música negra feita na Inglaterra que transcende o formato canção e que tem
no álbum sua unidade básica de trabalho. É preciso um período de tempo que dure um
pouco mais ou um pouco menos que uma hora para que o ambiente sonoro seja criado graças
à superposições de gêneros musicais teoricamente díspares. É um conceito semelhante
ao prog "álbum conceitual", mas não há amarras textuais ou teóricas, apenas
som. As raízes da música negra na Inglaterra datam do começo dos anos 60, quando a geração Beatles desfilou para seus conterrâneos toda uma proficiência em música pop norte-americana - e entre o country e os sub-Sinatra haviam hits de doo-wop, rhythm'n'blues, boogie-woogie e, claro, rock'n'roll. Os infames "race records" fizeram a cabeça dos jovens ingleses (que recepcionariam mais tarde, em momento histórico, parte daquela revolução black, quando Dusty Springfield apresentou o elenco da Motown - Marvin Gaye, Supremes, Temptations, Martha & The Vandellas, Smokey Robinson & The Miracles - no palco do programa teenpop Ready Steady Go!, em 1965). Pela metade dos anos 60, foi a vez dos menos hippies do movimento hippie elegerem o blues como seu dogma psicodélico, evocando uma paisagem sonora em que magos, gnomos e morsas eram sujeitos de carne e osso: pretos velhos de voz rouca que faziam seus instrumentos gemerem de tristeza. Nos anos 70, foi a vez da música jamaicana ganhar terreno, seguido da disco music, que tomou o planeta de assalto no final daquela década. Mas foi o punk que deu a liga. Quando o Clash sacou que "no future!" e "destroy" eram armadilhas comerciais em forma de dogmas, viu no reggae e na disco a possibilidade de criar uma Internacional do pop. London Calling e Sandinista! eram parques temáticos sobre a história do rock - e tanto a discoteca, o hip hop e a música da Jamaica eram listados como capítulos tão importantes como os outros. Logo em seguida, os Talking Heads sobem neste trem e convocam músicos caribenhos para gravar Remain in Light com o Brian Eno. A sorte estava lançada, e eram estes os primeiros passos de um gênero ainda sem nome, que tangencia o conceito vago de world music (ainda preso ao formato roots) e está infiltrado nas ruas de qualquer cidade. Este gênero - vamos chamá-lo de "glôbal", internacionalizando a pronúncia com o circunflexo - agrega manifestações culturais variadas, que vão do vodu de favela aos b-boys. Qualquer artista que tenha o espectro musical mais amplo consegue visualizar que não existem diferenças entre gêneros musicais ou classes artísticas - todos pertencem a uma mesma consciência planetária, que usa cada indivíduo para provar sua existência. É um papo meio de boteco ou de bicho-grilo ou de budista (no fim, dá tudo no mesmo), mas que, se não consegue encontrar uma lógica para ser explicada, ao menos temos evidênciais suficientes para supor apenas no acaso. Pois tanto a Nação Zumbi quanto o Manu Chao, o Massive Attack e o Jurassic 5, o Stereo Maracanã e o Lee Perry - todos falam a mesma língua, com sotaques diferentes. O amálgama sonoro e cultural que cada um destes grupos cria é tão vasto quanto o da própria realidade e muito específico dentro de seu universo. No fim, todos soam como parte de uma mesma aldeia sonora - que, indo além, encontra ecos no Fela Kuti, no Jimi Tenor, no Cornelius, no Talvin Singh. Continentes musiciais que soam como uma só Pangéia, rica, populosa e plural. Este "glôbal" é afrocêntrico e baseado no ritmo (de preferência, elétrico), e foi justamente este o universo desencadeado por músicas como "The Magnificent Seven", "This is Radio Clash", "Rudie Can't Fail", "One More Time" e outras pérolas do Clash. Um universo que foi cantado e idealizado por Bob Marley e por James Brown, por Miles Davis e por John Coltrane, pelos Beatles e pelo Led Zeppelin, mas que só foi posto em prática como manifesto junto com o espetacular plano B de Strummer e Jones. Quando o Clash optou por nivelar seu universo sonoro pelo som do terceiro mundo (incluindo os dentro do primeiro mundo), ele validou politicamente a disco music, o reggae e o hip hop, liberando para as gerações seguintes toda a liberdade artística. Este universo foi pilhado pelo mainstream no auge dos anos 80 (lembre-se de Sting, Paul Simon, Peter Gabriel, David Byrne) e transformado em mercado alternativo auto-suficiente (o meio world music é um dos mais organizados do showbusiness), mas sempre se assegurou ao viver à margem do sistema. Das colisões rítmicas propostas tanto pelos DJs de hip hop (Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash) quanto por bandas de pós-punk (PiL, Gang of Four, Associates) ao flerte inglês com o dub (On-U-Sound, Pop Group, Raincoats, Slits), passando pelos filhos da disco (a house de Chicago, o techno de Detroit, o funk carioca e o Miami Bass) e chegando aos coletivos de hip hop ingleses (o Wild Bunch e o Soul II Soul, principalmente). Isso sem mencionar artistas panculturais, como o Mano Negra, o Karnak, o Ozomatli, os 3 Mustapha 3, os Paralamas do Sucesso, Manu Dibango, os Negresses Vertés, Airto Moreira, o Zap Mama, Youssou N'Dour e os safáris culturais de Arto Lindsay e Serge Gainsbourg. Mas é na Inglaterra negra que ele mais floresce. E se o marco zero deste "glôbal" se dá entre as músicas mais ousadas do Clash, é nos anos 90 que ele dá seus melhores frutos - o dub urbano do Massive Attack, o interesse da acid house por Marcos Valle e Joyce, a alquimia de gêneros de gravadoras como a Mo'Wax, a Output e a Ninja Tune, coletivos techno, house e UK garage (o famoso 2-step, que nada mais é do que rap cantado sobre bases house), a cena de hip hop capitaneada por nomes como Roots Manuva e Tricky, a aceitação internacional do drum'n'bass (que absorve tudo: gangsta, raggamuffin, Jorge Ben, dancehall, tablas e cítara), gêneros efêmeros como o acid jazz, o nu-beat, o nuyorican soul, o trip hop, o big beat, entre outras ainda mais diversas variações do tema. A sopa musical fervida no caldeirão inglês durante mais de uma década curtiu bem, pegou peso e corpo, separando a gordura de suas verdadeiras qualidades proteicas. O segundo disco do Nightmares on Wax é um exemplo perfeito do grau em que a mistura musical foi curtida. O grupo começou como uma dupla de produtores, George Evelyn e Kevin Harper, fissurados em diferentes gêneros negros da atualidade. Versados e colecionadores de disco, estrearam com o ótimo A World of Science, de 91, mas logo depois Harper deixou o grupo. Evelyn passou um tempo discotecando house, quando, em 1994, resolveu reativar a grife sonora inventada no início da década. Desta vez, não quis deixar dúvidas quanto aos objetivos do disco e tascou "Delírio do Fumante" como título de seu novo álbum. Não é nem preciso ouvir o disco para saber que o fumante, no caso, não é o viciado em tabaco. Caso reste alguma dúvida, a primeira faixa - "A Nights Interlude", um tema recorrente ao Nightmares on Wax, construído sobre um sample de Quincy Jones - deixa tudo muito claro. As cordas hipnotizam o ouvinte exigindo relaxamento, esperando o momento exato para liberar o beat - e este vem na segunda música, "Dreddoverboard". A partir daí, Smoker's Delight é um devaneio canábico de primeira classe, evocando a tensão atmosférica do dub, o ar quente do jazz e o marasmo do hip hop instrumental, mutando-se num disco que poderia ser colocado ao lado de Blue Lines ou Dummy como um dos pilares do trip hop. Evelyn é preciso e nunca se deixa levar por ímpetos bruscos, conduzindo o álbum mansamente até se apropriar do cérebro do ouvinte. Faz isto sempre usando referências da música negra norte-americana, e sempre com requinte e maestria. Além de Jones, usa samples de Smokey Robinson e do grupo de disco Positive Force (usando o "don't stop" e a guitarrinha-base de "We Got the Funk" para a segunda parte de "Cruise (Don't Stop)"). Usando cordas e baixos como o leite de sua culinária musical, ele engrossa o caldo a cada faixa, criando a atmosfera perfeita para seus delírios esfumaçados. No final, vende perfeitamente seu peixe, encaixando o mood soulssegado em cada neurônio do ouvinte. |
11.12.02 Smoker's Delight Nightmares on Wax 1995 1. Nights Interlude 2. Dreddoverboard 3. Pipes Honour 4. Me + You 5. Stars 6. Wait a Minute/Prayin (For a Jeepbeat) 7. Groove St. 8. Time (To Listen) 9. (Man) Tha Journey 10. Bless My Soul 11. Cruise (Don't Stop) 12. Mission Venice 13. What I'm Feelin 14. Rise 15. Rise (Reprise) 16. Gambia Via Vagator Beach 10.12.02 (dia livre) 09.12.02 08.12.02 (dia livre) 07.12.02
05.12.02 |
© 2002 Reprodução permitida com a autorização do autor