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Link do dia: A nova revista do Kazi
Uma parede de oitenta e um minutos e quinze segundos separa-nos dos anos 70.
Quando Roger Waters ergueu seu ego como uma parede, de tijolos brancos e cimento à
mostra, ele desenhou um limite para o excesso daquela década. "Maior é
melhor", pregava o mote daqueles dez anos de luxo, glamour, desperdício e
decadência. É este sentimento grandiloqüente que conecta elementos tão diferentes
quanto a discoteca, a inconseqüência dos punks, o bolo econômico de Delfim Neto, o
nascimento comercial dos filmes pornô, a fase Las Vegas de Elvis Presley, os Secos &
Molhados, os óculos de Elton John, as costeletas, os bigodes e as calças boca-de-sino.
Uma sensação que parecia basear a libertação do espírito na construção de uma
gigantesca caricatura de si mesmo, fraquezas à mostra justamente para superá-las. Só que os anos 70 transformaram esta caricatura em seu próprio fim. Bastava expor sua individualidade da maior forma possível para se satisfazer. Não da melhor forma, preste atenção. A década de 70 fazia questão de confundir quantidade com qualidade e nunca nada chegou perto em tamanho. Os maiores carros, penteados, sapatos, jóias, paletós, relógios, móveis e imóveis... A estética visual havia cedido aos limites da ambição egoísta humana, tornando-se uma obsessão perversa - e em muitas vezes de extremo mau gosto - naqueles dez anos. "A década do eu", batizariam mais tarde. Roger Waters, baixista e gradualmente líder do Pink Floyd durante esta década, percebeu que toda aquela mania de grandeza apenas nos separava da tal libertação espiritual prometida por toda tendência, em vez de levar-nos àquela direção. Como ele mesmo explica (leia abaixo), a terra prometida pelo consumismo é um jaula que nos aprisiona de forma confortável. De dentro dela, nada é possível fazer - a não ser quebrar a parede. Para quebrá-la, Waters precisou construí-la. E encontrou um dos momentos mais instáveis de sua banda, que já passara por uma situação delicada no período da saída de seu líder e fundador, Syd Barrett, em 1968. Mas se enquanto eram uma pequena banda da moda, com apenas um discaço de estréia de reputação, a instabilidade quase desandou o conjunto, o que dizer do final dos anos 70, quando o Pink Floyd era um dos maiores grupos do planeta. Os números ao redor da banda já ultrapassavam a casa dos sete dígitos, seja em vendas, em público de shows, em gastos em turnês e em discos. Não era tão simples assim. Dentro do Floyd, Waters e o guitarrista David Gilmour aos poucos assumiam as rédeas do grupo. Se antes as composições eram esforços conjuntos resultados de ensaios que duravam períodos inteiros, a produção musical foi se individualizando com o tempo. Até que após Wish You Were Here (o tour-de-force de Gilmour como compositor, a benção final a Syd Barrett), os dois simplesmente tomaram as composições do Floyd. Animals, de 1978, era composto apenas por cinco faixas, quatro de Waters e uma de Gilmour. Para piorar as coisas, tanto Gilmour quanto o tecladista Rick Wright soltaram parte de sua produção em discos solo, carreiras à parte do grupo. Mas para Waters não, não havia disco solo. Em sua cabeça, ele era o Pink Floyd. A sensação de estar preso numa banda de rock e a de perder o contato com a sua própria individualidade atingiram Waters simultaneamente e ele assumiu-se como sendo o próprio Pink Floyd. Este delírio egoísta provou-se a raiz dos problemas do grupo, cuja tensão interna aumentou à medida que a influência de Waters sobre a banda aumentava. Logo, Roger seria o único autor de uma história que espelhava-se em sua vida pessoal e refletia medos e fraquezas individualistas usados como defesa. Era a enorme parede que ele começava a construir - e que mais tarde construiria no palco. Lançado em 1979, The Wall causou polêmica pela dimensão, escala e grandeza. Era um disco duplo, conceitual e discursivo, uma viagem psicológica aos cantos escuros da alma numa época em que a alma estava se fantasiando de purpurina, nicotina, brilhantina e cocaína. Ouvíamos a história de um garoto chamado Pink que se via superprotegido pela mãe, abandonado pelo pai (morto na guerra), oprimido pelos professores e mimado como uma estrela de rock. No topo de tudo, se observava como um ditador nazista que achava-se no direito de odiar e eliminar quem quer que aparecesse pela frente. Mas do topo, se viu só e triste, próximo da insanidade e com apenas duas opções: continuar daquele jeito e encarar a verdade. Que ele não era importante, que apenas fingira-se como tal para ter o melhor da vida - e este nunca vinha. Para encarar a verdade, deveria despir seus medos em público e derrubar a parede que havia construído em torno de si. Era o próprio Roger Waters contando sua história, criando um disco para destruir o Pink Floyd e libertar-se das máscaras do sucesso. Mas todo esse blá-blá-blá existencialista não faria sentido se as canções não funcionassem. Além das seqüências teatrais escritas por Waters, o disco ainda contava com a mão de Gilmour no épico psicológico de "Comfortably Numb" e nas guitarreiras "Run Like Hell" e "Young Lust", além das três versões para a grudenta "Another Brick in the Wall" (a segunda, com o coral de crianças cantando "não precisamos de educação", tornou-se o hit do álbum), a confessional "Mother", a pesada "One of My Turns", o épico "The Trial" (com o dedo pomposo do produtor e parceiro de Waters, Bob Ezrin, que já havia produzido os teatrais Alice Cooper, Kiss e o Berlin de Lou Reed) e a cinzenta "Empty Spaces". Todas fazendo citações entre si, musical ou liricamente, compondo uma grande peça musical. Mas o disco era apenas um pretexto para o show, que deu origem à parede do título do disco. Todo o álbum foi pensado na apresentação ao vivo, que incluía nada menos que a construção de uma enorme parede entre o público e a banda. Usando seu próprio conjunto como metáfora de todo um sistema, Waters questionava o gigantismo exagerado da época desde o início do show, quando uma banda - usando máscaras com os rostos dos integrantes do grupo - fingia ser o Pink Floyd, dando espaço ao grupo verdadeiro apenas a partir da segunda faixa. E ao erguer uma parede frente ao grupo e colocar o público para assistir apenas a um show de luzes, projeções, bonecos infláveis gigantes, por trás de uma parede de tijolos brancos de plástico por grande parte da noite, Waters perguntava sobre o sentido de tudo aquilo. É isso que Is There Anybody Out There? - The Wall Live - 1980-1981 captura. Um registro preciso de duas das 29 apresentações que o grupo fez do disco, ambas no Earls Court, em Londres, o disco duplo tem pelo menos vinte minutos a mais que sua versão original, graças aos solos, incursões instrumentais, provocações ao público (como o próprio título: "Tem alguém aí?" - atrás da parede!) e faixas extra (uma quase vinheta e uma outra cortada do disco). E prova que, mesmo com as relações pessoais aos frangalhos (Rick Wright confessou recentemente ter de pagar análise até hoje para poder pensar em enfrentar Roger Waters mais uma vez), fizeram algumas das melhores apresentações de sua história. Mas tudo tem um preço e o de The Wall foi transformar o Pink Floyd no cúmulo do grupo de rock gigantesco. A urgência do punk já fazia as classes inferiores e o mercado se mexerem e transformando "ter" em "ser", toda uma lógica de entretenimento e cultura foi desviada, para o pop furtivo, colorido e descartável que tomou os anos 80. Aquela parede enorme do Pink Floyd era o fim da picada, um absurdo. Eram os anos 70 se refletindo na parede que Waters e companhia destruíam ao final do disco. Era uma parábola, como Ziggy Stardust de David Bowie; a banda do Sargento Pimenta dos Beatles; Arthur dos Kinks e os shows do Nirvana - uma história simples para que pudéssemos entender um contexto ainda maior. A diferença é que o excesso de cinismo do Pink Floyd colocou não apenas o próprio grupo como personagem principal como o seu universo retratado da forma mais crua possível. Ninguém gostou do que viu - era o fim dos anos 70. E do Pink Floyd. *** "Boa parte do impulso criativo para The Wall deriva da minha desilusão com shows de rock em grandes estádios a céu aberto. Na época do Dark Side of the Moon, a excitação de um show do Pink Floyd vinha de uma certa intimidade na conexão entre a audiência e a banda. Era mágico. Durante os anos 70, estas oportunidade e magia foram sumindo, esmagadas, a meu ver, pelo peso morto dos números - a escala incoerente das dimensões de eventos em estádios. Isso é conhecido hoje, mas talvez mereça ser repetido: houve um momento no palco do Estádio Olímpico em Montreal, durante a turnê do disco Animals, quando fui forçado a confrontar todos os aspectos negativos destas circunstâncias e minha conivência a eles. Um fã adolescente maluco, gritando sua devoção, começou a subir pela rede que separava a banda do gado humano à frente do palco quando atingi o ponto de ebulição da minha frustração: eu cuspi em seu rosto. Logo após, fiquei chocado pelo meu comportamento. Eu percebi que a troca manipulável e recompensadora entre nós (a banda) e eles (o público) havia sido pervertida bruscamente pelas dimensões, avareza corporativa e ego. A única coisa que havia restado era um arranjo que era essencialmente sado-masoquista. Eu tinha uma imagem vívida do público sendo bombardeado - bombas atiradas do palco - e um senso que aquelas pessoas explodidas aos pedaços ficavam absolutamente tomadas de alegria ao se tornarem o centro da ação. Foi mais ou menos nesta época que tive a idéia de construir uma parede durante o show. A idéia me fisgou na hora. Além de seu significado pessoal, eu achei que poderia tornar-se uma grande peça de rock teatral. The Wall é parte da minha narrativa, da minha história, mas eu acho que os temas básicos ressoam em todas as pessoas. A idéia que nós, como indivíduos, geralmente achamos mais necessário evitar ou negar os aspectos doloridos de nossa experiência, e de fato fazer com que alguns destes sejam usados como tijolos numa parede, por de trás da qual podemos encontrar abrigo, mas que atrás dela nos tornamos emocionalmente imunes, é uma idéia fácil de entender. As pessoas reconhecem isso em si mesmas. Na minha vida, isso aconteceu atrás das paredes de uma gigantesca banda de rock. Numa banda de rock você se encontra numa posição muito invejada e privilegiada. Aparentemente é o material de que os sonhos são feitos. Você tem muito poder, você ganha muito dinheiro e há todo esse glamour deslumbrante. Você se vicia muito fácil nessas coisas e quando isso acontece, você escolhe esquecer todos os aspectos negativos disso tudo. Você se torna confortavelmente anestesiado (comfortably numb). Para permanecer neste sonho, esta é a condição exigida. Você se prende ao sonho porque, uma vez sonhado, fica muito difícil deixá-lo escapar? Ou você abraça a percepção que isso não é tão bom e parte dali pra outro lugar? Eu percebi que o sonho não valia a pena, ou pelo menos que a realidade da situação não era tão desejável quanto o sonho poderia ter sido. Na verdade, eu já havia chegado a esta conclusão em Wish You Were Here. Naquela época eu já não trocava "um passeio durante a guerra por uma volta na gaiola". Porque estar numa dessas bandas de rock enormes é uma gaiola. Uma grande gaiola cheia de brinquedos sedutores, mas é uma gaiola. Havia algo de descoberta e exorcismo ao escrever The Wall. Eu tive que expor tudo aquilo, botar pra fora, e passar o resto da vida como o homem de preto ao redor da festa, aparentemente alheio atrás dos óculos escuros e do cigarro, mas na verdade morto de medo como qualquer outro ser humano qualquer naquela posição. Falando das gravações e dos shows, acho que foram os melhores que já fizemos como Pink Floyd. Eu me sinto realmente orgulhoso do trabalho. Tem uma ótima forma narrativa e musical, boas canções e é um ótimo espetáculo de rock teatral. Quem sabe, tenho só 56 anos, mas pode ser a melhor coisa que eu já fiz. Me dá imenso prazer que sucessivas gerações o apreciem. Eu sempre recebo pedido de permissões para montagens, mas só concordo em dá-las para produções amadoras, em escolas ou universidades. Esta quantidade de montagens escolares é especialmente recompensadora. É também irônico porque o principal hino da peça, "We dont need no education" (Não precisamos de educação), criou um mal-estar quando foi lançado. Políticos e educadores se alinharam para dizer que era uma apologia ao fim da escola. Na verdade, a peça se tornou uma grande ajuda a um grande número de pessoas que tentam ensinar música ou inglês para jovens, porque os jovens se interessam em todas as idéias que ela encerra. Quase se tornou um livro didático. Isso me deixa feliz". Roger Waters |
16.12.02 Is There Anybody Out There? - The Wall Live - 1980-1981 Pink Floyd 2000 1. Master of Ceremonies 2. In the Flesh 3. The Thin Ice 4. Another Brick in the Wall, Pt. 1 5. The HappiestDays of Our Lives 6. Another Brick in the Wall, Pt. 2 7. Mother 8. Goodbye Blue Sky 9. Empty Spaces 10. What Shall We Do Now? 11. Young Lust 12. One of My Turns 13. Don't Leave Me Now 14. Another Brick in the Wall,Pt.3 15. The Last Few Bricks 16. Goodbye Cruel World 17. Hey You 18. Is There Anybody Out There? 19. Nobody Home 20. Vera 21. Bring the Boys Back Home 22. Comfortably Numb 23. The Show Must Go On 24. Master of Ceremonies 25. In the Flesh 26. Run Like Hell 27. Waiting for the Worms 28. Stop 29. The Trial 30. Outside the Wall 15.12.02 (dia livre) 14.12.02 13.12.02 12.12.02 11.12.02 10.12.02 (dia livre) 09.12.02 08.12.02 (dia livre) 07.12.02
05.12.02 |
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