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![]() A comparação veio depois de uma inesperada seqüência de clipes que passou durante aquele programa do Multishow, o TVZ. Zapeando, parei no comecinho de "Boys", da Britney, que veio emendado com "Dirrty", de Christina Aguillera, e "Die Another Day", da Madonna. Valeu assistir os três, ainda mais na seqüência. Diz muito sobre o estado das coisas - tanto em música pop quanto transformação da consciência planetária. Pra quem não assistiu nenhum dos clipes, um brífin rápido. O de Britney é metido a estiloso, e apesar de ela usar longo e coque, não deixa de lado a vagabundice na letra ("Garotos servem pra termos a certeza que estamos no comando", tudo nessa linha). A produção sonora acompanha a direção de arte do vídeo (ou seria o contrário) e fica a cargo do duo N*E*R*D, que salvou a loirinha de uma possível derrapada transformando o single de estréia do terceiro disco, "I'm a Slave 4 U", em uma orgia princeana, de gemidos e vocoders (como se "Bad", do Michael Jackson, fosse uma balada soul cantada por uma garota). O clipe se passa numa espécie de castelo/club, meio luxuoso, meio mundado, e ainda conta com a presença de Pharrell, um dos produtores, puxando um rap arrogante e cool (o mesmo tom usado no melhor disco do ano, In Search of...), que ainda pára o beat para apontar o boné e fazer propaganda da própria banda ("I'm a NERD", diz, no breque). Britney se faz de besta pra dois boyzinhos brancos (o Brandon do Barrados no Baile é um deles), mas no fim, cai no xaveco mano e liso do seu par vocal. Tudo muito sutil, desde a gostosura inerente da cantora à sua vagabundagem profissa (lápis no olho do jeito certo, carregado na medida), passando pela insinuação sexy do elenco e a produção Quincy-Jones-2002 do single. Não se deixe enganar pela capa do single: este foi lançado antes do clipe e não tem a menor relação com o acabamento visual do vídeo (e não se deixe enganar por mim: o clipe é um clipe OK, não espere a versão século 21 para o interlúdio musical de Veludo Azul). Sim, a faixa faz parte da trilha do filme Goldmember e Austin Powers faz ponta a la "Beautiful Stranger" - mas há um quê de ironia na forma em que ela despacha o espião para voltar ao papo de Pharrell. Soa como um "você pode ser bom pra Madonna, mas...". Se "Boys" opta pela sutileza, "Dirrty" de Christina Aguillera não sabe o que é isso. O vídeo é feito para que associemos o adjetivo "bitch" à outra loirinha - e é exatamente isso que ela quer, ser vista como uma "bitch" típica do rap americano (Lil' Kim é o exemplo que me vem à cabeça). Então ela enfia-se na câmera, soca calcinha vermelha, chacoalha-se usando uma microssaia, briga num ringue de luta livre com outra menina, sua em bicas, mete a mão no meio das pernas mais do que Michael Jackson e faz Carla Perez parecer tão inocente quanto aquelas meninas de 6 anos que a imitavam no Raul Gil. O brilho da pele suada é a estética básica do clipe (recurso usado em "Slave 4 U"), mas se no clipe de Britney este se limitava ao corpo vestido (até demais) da cantora, neste, além da pele da própria Aguillera, há trocentos homens seminus, musculos e carecas (é, tipo, jiu-jitsu) se contorcendo ao redor da cantora. Desagradável. Fora que Christina é dessas pirralhas que ficavam bêbada em festa pra ver se alguém catava, que tomava fora de nerd porque era falsa demais. Ela é baixinha, sem graça e agora tá usando uns dreadlocks toscos - se no clipe de "Lady Marmalade" ela era o Dee Snider depois da tosse, neste clipe novo ela lembra o Josh Wink depois da reposição hormonal. Como no clipe de Britney, Aguillera convida um rapper para dar crédito de rua à faixa - e o convidado é o wu-tang Redman, com pose de mau e papo de mau caráter. Ambos clipes trazem as cantoras sussurrando algo como "get nasty", o que prova que as duas são rivais pop clássicas, dobradinha dialética tal Beatles x Stones e Sex Pistols x Clash. Ambas são frutos dos direitosos, reacionários e conservadores anos 90, mas seus clipes dão uma noção do rumo que ambas estão seguindo. Ou melhor, dos rumos. Opostos, só uma sobreviverá para contar a história. A minha aposta é em Britney Spears, claro. Pra começar, ela entrou no imaginário pop empurrando o próprio tapete vermelho com a ponta do pé - de maria-chiquinha, blusa amarrada deixando a barriga de fora, saia xadrez (saia xadrez!) e meia 3/4, ela dominava facilmente a cena cantando uma canção pop perfeito ancorada numa sacada de produtor (as quatro notas ao piano que formam o riff de "Baby One More Time" grudado num "oh baby, baby", espremido no delay). Christina Aguillera surgiu em seguida, com a mesma velocidade que o GeraSamba virou o É o Tchan. Não bastasse clonar uma fórmula que deu certo, a mini-cantora sequer conseguiu um hit à altura do primeiro hit de Spears. Nem a própria Britney, diga-se de passagem. "Crazy" era legal, mas era o que se esperava de uma cantora teen pop. "Oops I Did It Again" repetia a fórmula de "Baby One More Time" como se seu segundo disco fosse de uma nova cantora que surgiu imitando-a. A sobrevivência de Britney na mídia foi garantida pelo papo da virgindade, pelo namorico com o carinha do N Sync lá e por duas performances em apresentações da MTV, a primeira cantando "I Love Rock and Roll" e "Satisfaction" com referências a Michael Jackson e cheiro de sexo na dança ;a segunda no lançamento de "Slave 4 U", em que dançava com uma cobra daquelas de stripper. Mas e a música? Me desculpa, camarada, mas se não tem música, você não dura nesse jogo. Ela tentou se transformar em outro nível de artista (como Jennifer Lopez), mas seu filme (Crossroad - Amigas Para Sempre) não vale um tostão furado - a não ser pela cena de abertura, em que dubla (de calcinha e top, pulando na cama) "Open Your Heart", da Madonna. A balada usada para promover o filme ("I'm Not a Girl") não venderia nem na voz de bastiãs da mesmice norte-americana como Celine Dion ou Faith Hill e o roquinho (a regravação de "I Love Rock and Roll", da Joan Jett) não funciona nem como piada. O terceiro disco atirou para todos os lados, mas a produção dos N*E*R*D garantiu à Britney o que ela precisava: um hit tão bombástico quanto ousado, tão grudento quanto bom. Era "Slave 4 U", que sonzera. Alvo certo, ao usar a outra música que a dupla produziu em seu disco (que conta com vários produtores diferentes), a cantora deu um rumo inesperado à sua carreira, mesmo fazendo o que ela sempre faz. Já Christina Aguillera escrotalizou de vez. Viu que o povão queria sexo e deu pra eles. Seu disco novo chama-se Stripped e o clipe de "Dirrty" vai muito além de mera apologia aos prazeres da carne. Se fosse só isso, tudo bem. Mas com a nova música, a Chrisinha soa como aquelas comerciais de telesexo em que a mulher fica gemendo sozinha. Não é que ela não seja gostosa, mas é que a forma que ela é apresentada é muito fake. Muito artificial. Só tarado goza com isso. Britney opta pela sugestão, característica da grande arte. Hitchcock não mostrava os assassinatos, apenas insinuava. Dom Casmurro acaba e você não sabe se o Bentinho é um corno de facto ou um nóia que não confia no próprio taco. Miles Davis deixava espaços em branco de propósito em seus shows da época do In A Silent Way. Tente adivinhar o conceito de Sgt. Pepper's - o pai dos álbuns conceituais. Grandes obras são compostas para serem completas na imaginação do espectador/consumidor. Você não precisa explicar, basta fazer-se entender. Como ler uma boa coluna de política. Assim é Britney desde "Slave 4 U". Ela não é sexy porque está nua, mas porque está completamente vestida e sua roupa, suada, insinua como é seu corpo. As mãos que correm por seu corpo não têm dono, são conceituais, ideárias, como as mãos que saem das paredes do inferno do Zé do Caixão. A calcinha por sobre a calça também tem este intento, como toda a percussão da música, composta por gemidos e sussurros. Já Christina, apenas apela. Escancara, abre as pernas, chacoalha o quadril violentamente, como se tivesse uma britadeira quicando em seu ponto G. Tudo é explícito, não há espaço para a imaginação, para a possibilidade. Ela quer se vender para o público que consome o hip hop semipornográfico que dominou a MTV depois do gangsta. Mas, pra começar, ela é branca. E ao tentar falar com a audiência do R&B americano, ela deixa pra trás seu público original. Mas nem é a mira mercadológica que preocupa, e sim a falta de tato. Christina Aguillera reúne em seu novo clipe o supra-sumo da direita anos 90: espartana, emergente e de cérebro atrofiado. É procurar para achar - sexo como mercadoria, culto ao corpo, ultimate fighting, invasão de privacidade, emoções estéreis, dinheiro manda em tudo. É um pensamento decadente que, desde que os aviões derrubaram as duas torres, só perde popularidade, tornando-se típico de uma sociedade fútil, egocêntrica e vazia. Gostar de Christina Aguillera - como produto pop, como starlet, como mulherão - é atestado de mau gosto. São aquelas pessoas que compartilham de raciocínios do tipo "tão ruim que é bom" e "quanto mais tosco melhor". Gente que acha a Tromma Films legal (eles FAZEM filmes trash, um gênero que só é legal quando acontece sem querer) e que acredita naquela idiotice que o Notícias Populares era uma grande escola de jornalismo. Não se deixe enganar: quem gosta de tosqueira, tosco é. E a Madonna, com as calças? O clipe de "Die Another Day" entrou na seqüência, quase em homenagem às duas candidatas ao trono. O clipe, como tudo que a Madonna fez depois de 1989, é uma aulinha de como faturar em cima do mercado ao mesmo tempo em que se vende a sua postura de cool. A faixa segue a produção electro-minimalista que a cantora adotou, mas é mais seca que "Music" e indo na onda do tal electroclash. O vídeo traz referências de filmes da moda (a lente esverdeada tanto do Clube da Luta quanto de Matrix - citado também na seqüência da esgrima), polêmica (uma tatuagem com o nome de Deus em hebraico - judeus não curtem tattoos) e o imaginário 007 (a música é tema do filme novo da série) em forma de museu. O single ainda traz remixes de bambas como Felix da Housecat, Dirty Vegas e Paul Oakenfold. E a música é boa, mesmo sendo infame ao dizer "eu vou evitar o clichê". Papo furado - Madonna é uma pilha de clichês. Mas duas coisas a diferencia do resto - as mesmas duas coisas que fizeram-na chegar inteira, quase vinte anos depois: sugestão e músicas legais. E é isso que Britney está fazendo. Resta saber quando é que ela e Aguillera vão tomar as rédeas de suas carreiras (deixando empresários e executivos de gravadora virarem conselheiros, em vez de guias) e fazer algo que realmente queira. Com "Boys", Britney grava seu "True Blue". Aguillera, sequer saiu de "Borderline". Adivinha qual das duas tem mais chance de enfrentar o seu próprio 1989? |
17.12.02 "Boys" Britney Spears 2002 1. Boys (Co-Ed Remix) 2. Boys (Co-Ed Remix Instrumental) 3. Boys (Album Version) 4. Boys (Album Version Instrumental) "Die Another Day" "Dirrty"
15.12.02 (dia livre)
10.12.02 (dia livre)
08.12.02 (dia livre)
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