Links do dia (mais de um): introdução à plunderfonia, partes 1, 2 e 3
É certo que, daqui a alguns anos, vamos observar este período
histórico que vivemos hoje com olhos semelhantes aos que nossos pais viram o período da
anistia que terminava, de forma melancólica e com um certo alívio, o torpe e retrógrado
período de desmandos militares que embruteceu o Brasil por quase vinte anos. Os Anos
Fernando (que começam com Fernando I, o Collor) não são nada mais do que uma versão
fin-de-siécle da ditadura militar que pairou ameaçadora sobre nossos anos 70. Só que em
vez de usar a violência física para coagir os incautos e permanecer no poder, a ditadura
dos anos 90 usou de outra forma, mais sutil, de repressão. A violência agora era - ainda
é - intelectual e reprimia quem fosse contra o reino de terror e virtude global,
implantado por George Bush pai à queda do muro de Berlim com o cognato de "Nova
Ordem Mundial". Como a ditadura militar, a do mercado usou do mesmo subterfúgio para
domar o povo - estabilidade econômica, pretenso período de fartura, melhora na qualidade
de serviços antes prestados pelo Estado (Brasil Grande sendo substituído por Brasil
Melhor) e o exemplo imposto pelos ianques que o padrão norte-americano era o melhor - se
não, único - que poderíamos adotar. Sob esta lógica, assistimos a banqueiros e empresários engordarem suas contas enquanto a imensa massa famélica e inculta crescia em velocidade maltusiana. Vimos o Brasil adotar uma postura arrogante e egocêntrica e mudar seu seletor de humor do Rio para São Paulo. No lugar da malemolência carioca (com todos seus prós e contras), surgiu uma postura vazia e truculenta que usava um presidente intelectual (que, com ironia involuntária, pedia para que esquecessem o que ele havia escrito em seus tempos de vaidoso acadêmico) para justificar uma agressividade idiota e vil, que media as pessoas única e exclusivamente por suas posses, deixando de lado qualquer possibilidade de sobrevivência da inteligência. Com isso, as grifes substituíram as tribos, Mano Brown virou a nova Carmen Miranda, o samba ficou quadrado, o SBT ditou o novo padrão global, a variedade brasileira foi trocada por aquilo que Luís Fernando Veríssimo batizou de "pensamento único" e o dinheiro comandava supremo. "Se você tem dinheiro, pode tudo", dizem os anos Fernando. Pode ser bonito, bem recebido, badalado, elogiado, viajar todo o mundo, viver la vida loca, cheirar estradas de cocaína e faturar tubos com a alta do dólar. Se o Brasil quebrar, você pode até ir embora. A única coisa que você não consegue comprar com dinheiro é inteligência, por isso, a cultura foi sucateada e inteligência virou acessório de mau gosto. A indústria de entretenimento seqüestrou de vez a cultura nacional e passamos a década achando que fazer bonito era faturar um Oscar ou um Grammy. O resultado, além da eleição de Lula, é o claro retrocesso intelectual brasileiro - que pode ser medido nos parâmetros que você quiser: programação das rádios, nível da TV aberta (e a fechada começa a emburrecer, vide o Saia Justa), resultados de testes inóquos como Enem, vestibular e Provão, estantes de livros mais vendidos, quantidade de itens de cultura consumidos, inaptidão generalizada de qualquer artista iniciante, portas fechadas para o novo e a lista pode ir para sempre. No lugar de inteligência, vimos a ascensão de um personagem cada vez mais presente e menos sofisticado - a celebridade. Claro que astros e estrelas não são exclusividades nem da década que passou muito menos de nosso país. Mas com a vaga aberta pela ausência da celebridade intelectual, assistimos a proliferação de subcelebridades em todas as esferas e níveis. Socialites e colunistas, starlets e DJs, médicos renomados no exterior e apresentadores de programas da madrugada, profissionais do ano e tribalistas, modelatrizes e jornalistas de bairro - todo mundo é "o famoso" não-sei-quem, que "continua brilhando e trazendo essa graça, que é você" para todos os lugares que olhamos. Talentos brilhantes, diz o comercial, adquirem-se à grana. Daí a profusão de Caras e Quens, de colunistas sociais e programas de bastidores, como se o dia virasse um eterno domingão ("essa figura humana que é um dos maiores nomes da atualidade") e a noite um interminável flash ("estamos aqui com uma das pessoas mais bonitas que eu conheço"). Jornais e revistas servem apenas para noticiar a glória e queda de celebridade fugazes, como dizem os programas da tarde da TV aberta - que, para compensar a decadência literata de seus telespectadores, são lidos em voz alta por seus abjetos apresentadores. "Todo mundo é uma estrela" - máxima de Alleister Crowley que foi adaptada pelos anos 90 com gosto, transformando literais anônimos em nomes nacionais, graças ao adubo visual proposto pela TV. Seja caindo numa pegadinha do João Kleber, sendo eliminado de um reality show ou preferindo não responder à pergunta milionária de Sílvio Santos, nosso amigo zé-povinho virava household-name. Biutifol pípol. (Esta lógica serviu, inclusive, para aumentar a paranóia de violência em grandes centros urbanos, transformando bandidinhos de meia-tigela, que obviamente contam com barões do colunato social acobertando e financiando suas atividades, em celebridades do mal, bandidos hardcore que só poderiam ter o escárnio da mesma sociedade que possibilita sua existência. Foram-se o "bom ladrão", o malandro, o Robin Hood - uma figura típica do imaginário pós-getulista brasileiro - e entraram em cena fascínoras cruéis e sanguinolentos que, como as madames, suas filhas e maridos, só queriam ver seu nome e foto no jornal). E se a ditadura militar impôs a dificuldade de importação de produtos estrangeiros como tática para favorecer a indústria nacional (quando Collor liberou as importações, foi ovacionado como o salvador da pátria pela elite então emergente que, em pouco tempo depois, ditaria as regras do novo e burro status quo), a ditadura mercadológica dos dois Fernandos impôs a dificuldade de importação de idéias. Conceitos novos, que surgiram no final dos anos 80 e se popularizaram nos anos 90 por todo o planeta chegaram ao Brasil apenas em uma pequena resistência intelectual. Das novidades dos anos 90, importamos apenas conceitos tecnológicos e mercantilistas - internet, computador pessoal, TV a cabo, telefonias digital e celular, DVD etc... Mas no campo das idéias, pouco se avançou. Paramos no Fim da História do Fukuyama e ponto. Fomos porcamente apresentados ou relembrados de conceitos (tanto teóricos como pop) fundamentais na história atual, como transgênicos, mitologia operante, mídia tática, programação neurolingüística, adbusters, copyleft, slash art, inteligência artificial, meme, hacktivismo, pedagogia da alternância, engenharia genética, psicogeografia, dinâmica espiral, doppelgagger, pensamento indutivo, mídia corporativa e independente, hermenêutica, complexo militar de entretenimento, newspeak, globalitarismo, engenharia psicológica, educação livre, fan-fiction, tecnognose, planejamento estratégico, big brother, o fim da ideologia, webjornalismo, ócio criativo, terrorismo poético, o retorno à terra, cut-and-paste, nanotecnologia, pranksterismo, teledildos, lógica P2P, ativismo digital, infotainment, conspirologia, imperialismo eletrônico, software livre, robótica e biotecnologia. Pra grande parte das pessoas, estas palavras não significam nada - quando são termos que estão revolucionando suas áreas e, aos poucos, a concepção atual de mundo. Em seu lugar, vimos conceitos vagos e populistas dominarem todas as áreas: auto-ajuda, terceira via, globalização, mercado financeiro, crossmedia, interatividade, neoliberalismo, convergência, fusão e outras bobagens, sempre distante de seus conceitos originais e usados para defender uma qualidade totalmente deturpada - a "modernidade", que em sua versão anos 90 era vazia, conservadora e pronta pra vestir. Tudo isso para falarmos de um dos conceitos de música que poucas pessoas infelizmente conhecem por aqui. A plunderfonia é uma técnica criada pelo canadense John Oswald, no meio dos anos 80, que consiste em fazer novas músicas a partir de gravações já existentes. Aos olhos do leigo, a descrição pode parecer um passo à frente do remix, mas o conceito vai muito além. Utilizando apenas aparelhos reprodutores de áudio (principalmente toca-fitas de rolo, de cassete e vitrolas), discos e fitas, Oswald desenvolveu uma música de caráter terrorista, desconstruindo e reinventando clássicos estereótipos em trechos de som revolucionários. Com a plunderfonia, ele transforma a técnica do cut-and-paste num fim em si mesmo, descobrindo aspectos dentro da canção original que seus compositores e intérpretes sequer cogitavam. Oswald inventou a técnica em 1985, depois de anos tentando, em vão, aprender a dominar um instrumento. Mas sabia que era músico e não iria deixar a inaptidão técnica impedi-lo de fazer sua arte. Como os primeiros DJs, voltou-se para os aparelhos de reprodução de som como um instrumento musical. Assim começava seu polêmico artigo "Plunderfônicos ou Áudio Pirataria ou Prerrogativa Composicional", reconhecido como o manifesto de sua arte, publicado no ano de sua concepção: "Instrumentos musicais produzem sons. Compositores produzem música. Instrumentos musicais reproduzem música. Gravadores de fita, rádio, toca-discos, etc, reproduzem som. Um dispositivo como uma caixa-de-música movida à corda produz sons e reproduz música. Um fonógrafo nas mãos se um artista de hip hop ou scratch, que toca um discos como uma tábua de lavar roupas (em inglês, washboard - a tábua era usada como instrumento de percussão por artistas de blues, funcionando como um reco-reco) com uma agulha fonográfica funcionando de palheta, produz sons que são únicos e não apenas reproduções - o toca-discos torna-se um instrumento musical. Um sampler, em essência, um gravador, transformando um instrumento é simultaneamente um dispositivo de documentação e um dispositivo criativo, reduzindo a distinção manifestada pelo direito autoral". O artigo continua extensamente e passa por tópicos tão controversos como "a fita vazia é derivativa", "o comércio do ruído", "quimeras de som", "o meio é magnético" e "natureza aural". E concluía, retumbante: "Toda música popular, essencialmente, senão legalmente, é de domínio público. Ouvir música pop não é uma questão de escolha. Quer queira, quer não, somos bombardeados por ela. Em seu aspecto mais vil, filtrado através de uma incessante linha de baixo, ela atravessa paredes de apartamentos e as cabeças dos transeuntes". Oswald não pregava apenas o fim do direito autoral, mas do conceito de autoria e a possibilidade de ganhar dinheiro com música. Era algo sentido por toda a parte. Embora o uso de sons não-musicais como música e reprodutores de som como instrumentos musicais é uma idéia que remete aos pioneiros da música eletro-eletrônica (John Cage, Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez), mas no meio dos anos 80, com a revolução imposta pelo DJ de hip hop, uma série de não-músicos resolveu experimentar esta possibilidade. Nomes como os terroristas sônicos do Negativland ou os justapositores Double Dee e Steinski, radicalizavam a proposta pelo fim da autoria em música. Mas Oswald ia além. Seu manifesto plunderpônico era acompanhado de um disco chamado Plunderphonic EP, que tinha quatro faixas: "Spring" (sobre trechos de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinski), "Pocket" (sobre "Corner Pocket", do band leader Count Basie), "Don't" (sobre a música homônima de Elvis Presley) e "Pretender" (sobre a versão de Dolly Parton para "The Great Pretender"). Esta última dá uma boa idéia do que esperar do trabalho de Oswald. Ouvida por cima, a música é apenas "The Great Pretender" mudando de rotação, desacelerando lentamente. O lance é que Oswald acelera o disco para a voz de Parton soar mais fina e feminina possível, e vai desacelerando até soar como a voz de um cara. O toque final é de gênio, quando, no último verso, as duas Dolly Partons (a feminina e a masculina) cantam juntos, no tempo, certinho. Mas isso era só o começo. A pirataria sônica de Oswald alcançaria seu grande momento graças a um disco lançado poucos anos depois. Inaugurando comercialmente seu conceito estético, o disco Plunderphonic, de 1989, trazia uma versão alternativa para a capa do disco Bad, de Michael Jackson, antecipando sua futura transformação em mulher branca e feia. A capa era apenas o primeiro dogma chutado. Outros viriam com o correr do disco. Em 25 microcanções, Plunderphonics nos conduz a um passeio por um parque temático sobre a história do som gravado. Mas a cada canção, surge uma versão especificamente distorcida - às vezes derretidas e sincopadas, outras viradas do avesso e picotada. Todas as músicas preservam timbres e andamentos das faixas originais, mas soam como versões surrealistas de exemplos aleatórios de música pop. Em alguns momentos, estas mudanças causam náusea; em outros, admiração. Trabalhando basicamente com recortes musicais e variações de rotação (além de superposição de ambas as técnicas), Oswald apenas leva às últimas conseqüências possibilidades abertas por pioneiros do experimentalismo na música pop, como Beatles, Beach Boys e Phil Spector. Mas sem o compromisso de ser pop e usando apenas músicas alheias, a plunderfonia proporciona uma viagem tão psicodélica quanto esquizofrênica pelo imaginário popular em inglês. De cara, "Beatles" abre o disco com o acorde fúnebre que encerra o clássico disco de 1967, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. O acorde (um misão) era tocado em três pianos ao mesmo tempo, usando todas as notas mi, si e lá bemol (as três notas que formam o mi maior) e foi a idéia que John Lennon teve para encerrar o crescendo da orquestra no final de "A Day in the Life". Na versão de Oswald (que também é conhecida como "Btls"), o acorde é empilhado com outras gravações dele mesmo, criando uma maçaroca de som que cresce à medida em que muda de tom, até mutar-se em outro acorde beatle, o sol com quinta que abre a faixa e o disco "A Hard Day's Night". É apenas uma introdução, um "senta-que-lá-vem-história". "Dab" entra em seguida, chutando tudo para o alto. Composta por microtrechos de "Bad", do Michal Jackson, a faixa vai acelerando a velocidade como se os gritinhos, chiados e tosses secas do Jacko fossem beats num drum'n'bass em rotação 45 RPM. "Way" faz algo parecido, mas respeitando a velocidade original, com "Strawberry Fields Forever". "Replica" usa trechos instrumentais do disco Trout Mask Replica, do Captain Beefheart, reinventando a esmo a base para o vocal intacto da faixa "Lick My Decals Off, Baby", do mesmo capitão, mas de outro disco. "White" distorce a versão clássica de Bing Crosby para "White Christmas", com o vocais derretendo como neve em dia de sol. O final, soberbo, recorta um quarteto de cordas tocando tango e põe ao lado de pigmeus africanos cantores. O resultado soa como se fosse Natal na lua de Endor, o lar dos Ewoks. Elvis Presley canta sua "Don't" sobre um piano dissonante, até que sua voz se divide em duas, três, quatro... e o piano assume o controle da canção, destruindo sua auto-estimo. "Pretender" é a já citada operação sexual de Dolly Parton. E por aí vai: "Black" transforma James Brown numa metralhadora de gritos tocada num CD com defeito de leitura - e sem perder o ritmo. "Birth" 'é "Birthday" dos Beatles, em versão instrumental - e é como se assistíssemos os Stray Cats virarem Frank Zappa. "Pocket" é um exercício de cut-and-paste sobre uma big band, limpando todos os clichês em prol da festa de timbres. "Net" transforma o Metallica num grupo de free thrash - pesado e cheio de improvisos no andamento. Ainda há free jazz, world music, Anton Webern, Judy Garland, Glenn Gould, Beethoven, Public Enemy... Todos picotados e reorganizados, música velha subitamente nova, de novo. É esse o intuito e é essa a grande qualidade da plunderfonia: remixar nosso passado musical com os ouvidos do presente. É uma espécie de historiografia sonora, metapop, especialização em audição aplicada, discologia analítica. Algo que tantos os DJs quanto os terroristas sonoros estão descobrindo aos poucos, e que foi proposto por um não-músico há mais de dez anos. Quando Plunderphonics saiu, foi alvo de um pequeno buxixo de crítica. Grande o suficiente para chamar atenção dos advogados de Michael Jackson, que conseguiram banir o disco - recolhendo suas cópias e destruindo as fitas originais. O trabalho de Oswald continuou incomodando, sempre pelo mesmo motivo: infringindo direitos autorais. Só em 1995 que um artista reconheceu o pioneirismo do artista, quando o Grateful Dead entregou mais de cem horas de shows para que o canadense as transformasse num imenso espetáculo instrumental. O resultado é o disco Black Star, lançado naquele ano. Aos poucos, o talento de Oswald foi sendo reconhecido e os tempos, mudando, conseguiram absorver sua mensagem - tanto que ele reeditou sua aula básica de plunderfonia com outro nome, 69 Plunderphonics 96, em que continuava na mesma linha do trabalho de 1989. Agora, se você está estranhando todo esse papo de fazer música com músicas dos outros, mexer na rotação de música alheia e chamar isso de arte, usar trechos de músicas que não lhe pertence apenas para uma traquinagem sonora de um sujeito que nem sabe tocar um instrumento, não me culpe. Culpe os anos 90, que trancou os brasileiros em 1989. |
19.12.02 Plunderphonic John Oswald 1989 1. Beatles 2. Dab 3. Way 4. Replica 5. White 6. Dont 7. Pretender 8. Black 9. Brown 10. Fab 11. U1 12. Prelude 13. Net 14. Birth 15. Pocket 16. Mirror 17. Mist 18. Ten4 19. Tune 20. Spring 21. 7th 22. U2 23. Aria 24. Rainbow 18.12.02 (dia livre) 17.12.02 16.12.02 15.12.02 (dia livre) 14.12.02 13.12.02 12.12.02 11.12.02 10.12.02 (dia livre) 09.12.02 08.12.02 (dia livre) 07.12.02
05.12.02 |
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