Ana Cecília Ferri Soares(*)
Natal, 24 de dezembro de 1999.
Meu Pai ,
Este dia para a nossa família, foi
como todos os 54 dias de Véspera de Natal que já vivi nesta minha Vida.
Levantei-me muito cedo e escovei os dentes, fazendo
círculos para massagear a gengiva, como tu achas que deve ser. Tomei o banho
frio que tu recomendas para activar a circulação e sentei-me à tua mesa para o
pequeno almoço, na tua casa tão farta.
Logo em seguida, preparei as rabanadas, de acordo
com a tua receita . reguei o jardim, pois como tu dizes “as plantas e os bichos
não sabem que é feriado!” Verifiquei a instalação eléctrica das luzes da nossa
árvore de Natal. Está linda... como tu gostas!
A Mamãe está como sempre preparando a magnífica
ceia: os doces estão prontos desde ontem mas guisados, ela os está a fazer
agora, como tu gostas. O Tio e eu estivemos a rir ontem quando lembramo-nos
muito do tempo em que tu tinhas que embebedar o peru e brincavas: “é o único
que morre nas vésperas!” As tuas netas estão arrumando os presentes sob a
árvore e preparando as brincadeiras que aprenderam contigo, para divertir os
mais velhos. O teu neto, ensinado também por ti, vai ser a estrela da festa com
as mágicas. Já verifique que o toca discos está em ordem e também separei os
discos com as músicas de Natal . As roupas de Pai Natal estão passadas e as
barbas postiças bem penteadas como tu sempre recomendas.
Está tudo pronto para esta noite do último Natal
deste Século!
Como vês, toda a tua família faz todas as
coisas de acordo com o teu jeito, sempre seguindo as tuas sábias orientações,
até nos mínimos detalhes, nas nossas rotinas, não apenas de Vésperas de Natal
que sempre comemoramos, mas em nosso dia-a-dia.
Quando percebi o quanto as nossa atividades diárias
contém os teus ensinamentos, pus-me a reflectir sobre isto e então resolvi
escrever-te esta carta, que é o meu presente de Natal para ti, com todo o meu
amor!
Sabes, conhecemos tanto um ao outro... pois a tua
capacidade de compreender é imensa, que sempre pudemos entender-nos só com
olhares, sem precisarmos falar. Sabemos tão bem e tão sinceramente o que
pensamos, como reagimos, como sentimos as coisas... que não há mais nenhuma
nossa que possa surpreender-nos. O nosso amor é tão intenso e tão seguro, tão incondicional,
que jamais nos preocupamos sequer em sentir medos, desconfianças, inseguranças.
Temos sido antes, o porto mais seguro um do outro e o temos podido ser para
todos os nossos familiares.
Com o mesmo carinho que tu davas-me o banho, quando
eu era recém-nascida, ensinaste-me a dá-lo nos teus netos. Aprendi contigo as
maneiras de fazer com que os miúdos comecem tudo... com tuas histórias de
avionetas... Angares de bigode... Como tratar das feridas das quedas das
bicicletas... Os deveres de escola... as explicações. Como resolver o problema
com daquele menino do vizinho que gostava de bater em todas os outros... Nunca
senti medo de estar contigo, nas ondas do mar, nem sempre calmas, por que tu
ensinavas-me a nadar. Nunca deste-me um tapa. Como tens sido tolerante!
E depois, na adolescência, as confissões sobre os
namorados, as tuas recomendações, a tua compreensão sem o egoísmo dos outros
pais. A tua paciência com os longos telefonemas... A escolha do curso universitário,
tão difícil... como amparastes-me naquela fase, dizendo-me: “espera até
saberes, não te apresses!”
As noções da moralidade moderna e sem preconceitos,
porém firmes que sempre transmitistes. As nossas conversas filosóficas sobre a
Verdade, a Fraternidade, as Religiões, sobre a Vida enfim... Falamos sobre tudo
sempre... chegávamos juntos a todas as conclusões e decisões importantes ... às
vezes sem precisar falar...
Os teus conselhos, para as minhas horas de algumas
indecisões ficaram gravados em mim, que nem preciso mais perguntar-te...já sei
o que vais dizer. Nunca tolhestes a minha liberdade e sempre respeitastes a
minha individualidade, mas o teu conhecimento das coisas, a tua Sabedoria de
vida o teu grande amor estão gravados no meu modo de ser. Às vezes não sei bem
se sou eu ou tu a aconselhar minhas filhas. E elas têm comigo a mesma
intimidada, a mesma cumplicidade que eu tenho contigo.
No começo do ano passado, aos 86 anos de idade,
sofrestes o derrame cerebral que te inutilizou a parte motora. Esquecestes
muitas palavras, mas não perdestes a tua lucidez, a tua modernidade, e
principalmente a tua compreensão da Vida. Fostes perdendo o controle da urina,
a capacidade que tinhas de escrever findou-se... Depois foste perdendo a visão.
Fostes ficando dependente de nós para quase tudo... E nós aprendemos a cuidar
de ti da melhor forma que soubemos aprender...
Mas tu te sentistes humilhado por tua
condição física precária, tivestes a consciência clara de que a tua doença não
era fatal mas irreversível...
Chamaste-me naquela tarde e sentei-me ao pé de ti e
me dissestes: “ Ensinei-te tudo o que pude. Toma agora o meu lugar. Assim eu
não quero mais! Posso ir-me?” Um turbilhão de coisas passou-se em minha mente.
Uma devastadora avalanche penetrou meu coração antes que eu pudesse
responder-te e tu fixastes o teu olhar no meu e ficastes esperar a minha
resposta. Ai, como eu quis dizer-te que não! Como eu queria poder proibir-te de
partir. Mas estavas tão sereno, tão consciente e pedias o meu consentimento . O
teu olhar paciente esperava a minha
resposta. O meu coração chorava, mas os meus olhos não queriam revelar-te
tamanha dor.
A tua calma venceu-me e finalmente pude
responder-te: “Podes ir...”
Pediste-me para deitar-te,
deste um beijo em minha mão e a encostastes no teu rosto. Fechastes os olhos e
partistes para a tua grande viagem... ensinando-me a mais bonita de suas
lições: morrer...
Partistes para levar o teu corpo para o descanso
merecido no ventre da Mãe Terra, no colo da Natureza que tanto defendestes e
amastes. Nunca nos deixastes... Nunca precisei tomar o teu lugar, como
pediste-me...
Nunca sentimos vontade de chorar-te, porque
a tua alegria ficou em nós... por que estás em nós sempre... em nossos
conceitos... em nossa forma de pensar e sentir... presente em nosso dia-a-dia e
em nossa Feliz Noite de Natal
(*)Ana Cecília Ferri
Soares, escritora brasileira/portuguesa. Mora em Lisboa.