Miguel Osório(*):

Contos de Cabo Verde - II


 

        Aproximava-se mais um fim-de-semana. É curioso como, alheando-nos do modo de vida por estas insulares paragens africanas, nos apercebemos de que não existe programação de actividades baseadas na previsão do tempo. Na Europa, dizemos: “Se estiver bom tempo no fim-de-semana...”; aqui, não. De facto, os dois únicos dias de chuva em um ano e meio, vieram transformar radicalmente a paisagem da ilha de Santiago: de seca, pouco contrastada, com os seus tons variando do castanho amarelado ao ocre, passando a verde rapidamente, de tão seca que estava a terra,  em que algumas plantas chegavam a crescer mais de 2 m de altura em poucos dias! Esta estranha meteorologia, causada pelos ventos secos e quentes da região do Sahel, permitia-nos combinar o que quer que fosse, em que a única condicionante era o vento, regulador de temperatura.

 

        O Tarrafal situa-se no extremo oposto da ilha, 70 km a noroeste da cidade da Praia. Alguns kms após a Assomada, segunda cidade da ilha, no interior, a cerca de meio caminho na estrada para o Tarrafal, cuja população é quase exclusivamente negra, e de pouco interesse turístico, há que atravessar a montanhosa serra Malagueta. Tive de fazer este percurso várias vezes para poder apreciar a diversidade da paisagem, ao longo de cerca de 1h e meia de viagem. A praticamente inexistente sinalética aliada à monotonia que a paisagem transmite nas primeiras vezes em que se efectua este trajecto permite-nos, com uma boa companhia ao lado, abstrair do factor tempo. Não marcávamos horas de partida (a pontualidade e o compromisso, decididamente não existem por estas bandas) e, quando chegássemos, chegávamos.

Durante a viagem, o neófito na zona será certamente surpreendido pelas desenfreadas Toyotas Hiace (Iass, em creoulo) que, de quando em vez, se cruzam ou ultrapassam, e desaparecem, parecendo-nos por vezes mirabolantes “hovercrafts” pelo modo como, serpenteando sobre o paralelo, se deslocam pela sinuosa estrada, sem qualquer limite de lotação. Na parte da serra, os mecos delimitadores da berma eram muitas vezes inexistentes, permitindo assim uma melhor visão sobre as montanhosas escarpas (!); a experiência de uma “corrida” nestes “autocarros de carreira” constitui, definitivamente, uma viagem aconselhável a todos os amantes de desportos radicais...

Cerca de 2 a 3 Km antes da vila do Tarrafal, passamos pelos restos da antiga prisão portuguesa, hoje deixada ao abandono, onde alguns dos nossos actuais políticos por lá fizeram história, durante o antigo regime.

 

       

 

A baía do Tarrafal, a melhor praia da ilha, é muito bonita, embora possua graves lacunas turísticas infra-estruturais. Talvez parte da sua beleza se deva a isso mesmo. A praia tem duas baías, uma grande e outra pequena, com um bom areal, e com algumas pequenas vivendas para alugar por detrás do coqueiral que se estende areia fora. Após estacionar o jipe, alguns passos fazem-nos desembocar sobre a esplanada com restaurante, de onde se pode admirar a baía grande, após termos escolhido, dentre o rol de miúdos que rapidamente nos circunda, o rapazinho que nos lavará e guardará o carro até regressarmos.

O restaurante é pior que mau, desde o demorado serviço à má qualidade da comida, em conformidade com o decadente estado dos “bungalows”...

 

        A Pensão Tátá, escondida e afastada deste ponto turístico, tinha outra qualidade, não deixando de ser mais uma espelunca, no que diz respeito ao alojamento. Como que parte da mobília, um sueco reformado aí se instalou definitivamente, descendo do seu quarto pontualmente, todos os dias,  às horas das refeições. Todos diziam que era homossexual e que se entretinha com rapazinhos cuja amizade ia cativando. Sempre que fui à Tátá vi-o, sem sair da pensão, introvertido e solitário.

 

        A Tátá ficava por detrás do mercado local, constituindo este último um ponto de paragem obrigatório. Se na Praia já era interessante ir ao mercado, onde as vendedoras entendem o português, aqui falava-se “criolo di terra”, o Tarrafal era pobre e poucos falavam a língua de Camões. Apesar de menos movimentado e mais pequeno que o da capital, este mercado possuía um carisma único.

 

        No centro da vila, junto do mercado, alguns minutos após nos refazermos da viagem, sempre algo entorpecedora, e de absorvermos bem a diferente atmosfera que agora nos rodeava, tomávamos a percepção do silêncio e da tranquilidade que nos envolviam. O Tarrafal devia ter um quinto da população da Praia, o que era significativo. Todavia, era estranho o facto de vermos do alto, ou de alguns pontos da estrada, um mar de cimento térreo de uma certa dimensão constituído pelas casas do Tarrafal, e ali, no centro, parecer-nos estar numa aldeia de meia dúzia de habitantes. Dir-se-ia que 90% das casas estavam desabitadas, tal era o ambiente de calmaria que se respirava. Qualquer meio de transporte tinha de passar pelo meio da vila para chegar à baia, sendo notado por todos, devido ao abrupto corte que rasgava temporariamente a harmonia aqui existente.

 

 

 

        Saímos do jipe e a Sónia foi cumprimentar alguns amigos. O António do Tarrafal, risonho, veio cumprimentar-me, dizendo que estava pronto para a pescaria. Contou-me que tinha conseguido apanhar uma tartaruga nessa semana. Por vezes, embora fosse raro, uma tartaruga dava à costa, gerando automaticamente uma rixa entre os cabo-verdianos que se apercebiam do facto, dado que cada um a queria para si. Embora seja chocante para quem está consciencializado com as espécies em vias de extinção, havia que respeitar a cultura do país que me hospedava. Tentei disfarçar a minha reacção de repreensão, de modo a não ferir susceptibilidades. Para além de poderes afrodisíacos e curativos, a tartaruga fornecia carne e a carcaça, tudo dinheiro saído do mar. Interrompi António, perguntando-lhe: “Quem é aquela rapariga que está a falar com a Sónia?” ao que ele me retorquiu: “Essa é a miúda de quem te falei, a Neuza!”. António era dos poucos que falava um bom português. “É essa a tal que está interessada em ti, eu disse-te para vires sozinho...”

 

        Mais uma vez me tinha arrependido. A Sónia não era nada de se deitar fora, bem pelo contrário. Mas já tinha estado com ela algumas vezes e, quando avistei a Neuza, o interesse pela Sónia desvaneceu-se. De facto, a rapidez das relações físico-afectivas contrastava com a lentidão do fluir do tempo em Cabo Verde.

Neuza não disfarçava o olhar enquanto falava com a Sónia, que estava de costas para mim. Não desviei o olhar e comecei a sorrir. Sónia voltou-se de repente, como que apercebendo-se deste jogo de sedução, e eu disse-lhe que tínhamos de ir, disfarçando. António disse-me, sorrateiramente: “Oki bu cre, es minininha é di bo”.

 

        A grelhada de peixe ia ser fantástica, e, a Neuza também vinha. Após nos termos abastecido de vinho, cerveja e gelo, dirigimo-nos para o melhor sítio do Tarrafal.  Por uma caminho de terra não delineado, chegávamos a uma praia sem areia, de rocha lisa, com uma baia lindíssima de água azul-turquesa, cuja temperatura correspondia ao sonho de qualquer português que se preze.

 

        Éramos cerca de 15 pessoas. António e mais dois amigos preparavam as espingardas e as máscaras para iniciar a pescaria, enquanto o resto do pessoal se entretinha a tomar banho ou a beber uma cerveja gelada. Pouco tempo depois, tão grande era a quantidade de peixe que frequentava estas águas costeiras, sobretudo aqui nas rochas, no seu local preferido, o peixe já tinha sido pescado, arranjado e temperado. Da grelha, emanava um cheiro fresquíssimo do saboroso peixe, que começava a concentrar o grupo, algo disperso entre as rochas mais ou menos contíguas.

 

 

        Neste entretanto, a Sónia estava a bronzear-se sob o tórrido sol do Tarrafal, enquanto eu preferi experimentar a água. Neuza desapareceu por detrás das rochas onde o grupo se tinha instalado e, quando me viu na água, chamou-me discretamente. Quando me aproximei, Neuza, com o seu olhar profundo e hipnotizador disse-me, sem disfarçar o matreiro sorriso que lhe desenhava umas sensuais covinhas na face, que não conseguia abrir o fecho do vestido para poder trocar de roupa. De repente, atrapalhei-me, enquanto ela se virava de costas para que eu a pudesse ajudar. Olhei instintivamente para ambos os lados, pensando que nunca seria demais prevenir as reacções de ciúme do bicho mulher. A consciência tinha chamado à minha mente a Sónia, por momentos. Rapidamente volvidos estes escassos segundos, Neuza disse-me: “Continua até abaixo, por favor...”

O vestido ficou aberto em dois, e Neuza puxou por uma das mangas, desembaraçando-se dele, mostrando o seu corpo como Deus a tinha posto no mundo. A provocação crescia desmesuradamente, ao ver aquele corpo desenhado sob o jogo de luzes de sol e sombra, criado por algumas partes da rocha mais proeminentes que ofuscavam a luz solar. Os meus olhos percorreram em fracções de segundo a sensualidade que Neuza transmitia,  do pescoço aos tornozelos, gravando fotograficamente cada centímetro quadrado do seu incrível corpo. De repente, virou-se, com o bikini na mão, perguntando-me quando regressaria ao Tarrafal sozinho. Disse-me que estava lá sempre, beijou-me na cara ternamente, próximo da boca, agarrando-me a cabeça com ambas as mãos , dizendo-me ao ouvido: “Acho que a Sónia te está a chamar...”

Afastou a cara começando a pôr o bikini, sorrindo, enquanto eu mergulhava, atónito, após lhe ter respondido só com o olhar.

 

        Vim a nadar debaixo da água até onde Sónia estava com o resto da gente, esforçando-me por desfazer a expressão de admiração estampada no meu rosto. Saí da água e Sónia chamou-me, beijou-me e disse-me: “Ka bu afasta di mi!”, olhando por cima dos óculos escuros, puxando-os ligeiramente sobre o nariz, como que consequência do sexto sentido feminino. Fomos interrompidos por António, que nos disse: “De que estão à espera? Não têm fome?”

 

        O ritmo lento do Tarrafal não variou, passando-se assim mais um óptimo dia. Quando olhava para Neuza, imaginava, com desejo, o meu regresso ao Tarrafal, desta vez mais discreto.

 

Terei sempre na minha mente as inolvidáveis tardes passadas neste “cantinho particular” do Tarrafal, entre amigos autóctones, que nunca deixavam que a minha garganta secasse, ao mesmo tempo que contemplava o azul turquesa das águas da baía, sob o cálido sol africano, e degustava cada pedaço de peixe grelhado, bem temperado e fresco, como nunca mais comi.


(*)Miguel Osório, escritor portugués. Mora no Porto.

 




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