Diciembre
1999 – Enero 2000
Año de
la liebre
Director: Diego
Martínez Lora
La aventura de compartir
la vida, las lecturas, la expresión...
Luís Moutinho (*)
O voo de um cão com olhos de
tigre
“-Podem duas pessoas amarem-se sem se
conhecerem?”
“-Podem.”
A resposta veio imediata,
quente e sincera,
quase como num desabafo.
Ela mordiscou o lábio inferior com os
dentes.
Tinha sido apanhada completamente
desprevenida.
Sentiu que tinha sido sincera demais.
Ele riu-se da atrapalhação dela.
O riso dele teve o condão de a acalmar.
Não era um riso de gozo ou desdém,
era também ele um riso quente e sincero,
como um convite para ela entrar na sua
esfera pessoal.
Uma porta aberta para uma maior
intimidade.
Ela olhou-o com aquele olhar com que o
tinha olhado já centenas de vezes.
Era um olhar inquiridor, que continha
quase como que um apelo incontido.
Era um olhar que perguntava porque, que
perguntava como, que perguntava quando.
O quando era agora.
“-Acho que não vale a pena dizer mais
nada, pois não?” - sussurrou baixinho como se falasse para si próprio.
Ela concordou acenando a cabeça.
Tinha baixado os olhos.
“-Falamos um destes dias?”
Ela ergueu de novo os olhos.
“-Qualquer dia é bom” - sorriu-lhe -
“-Quando quiseres.”
“-Vai ser em breve.”
“-Fico á espera.”
“-Adeus.”
“-Até á vista.”
Ela voltou para a mesa onde estava
sentada com um grupo de amigos.
Nunca tinham trocado tantas palavras.
A conversa fôra ridícula, nem sequer
pensavam no que diziam.
O importante era poderem dizer alguma
coisa, comunicar, conversar, ouvir a voz do outro.
Até agora tinham trocado apenas alguns
olás, bons-dias e boas-noites.
Palavras de circunstância, que não os
denunciavam.
Palavras estéreis que não os
comprometiam.
Não os denunciavam perante os outros.
Porque estavam comprometidos entre si.
Cada olá vinha carregado com a força de
um desejo.
Cada bom-dia com a alegria de um
reencontro.
Cada boa-noite com a nostalgia de uma
separação que não podiam evitar.
Nenhum deles sabia exactamente porque é
que olhava para o outro daquela maneira.
Sabiam apenas que viria o dia em que não
teriam que se despedir á noite.
Havia muitos meses que se conheciam.
Isto é, que se cruzavam.
Que se viam.
Ambos tomavam café todos os dias no
mesmo sitio
Ele estava acompanhado.
Ela estava sozinha.
Ela reparou primeiro nele.
Algo na forma como ele se relacionava,
como falava, como se ria.
Ele reparou nela logo a seguir.
Algo na forma sóbria de se vestir e
mostrar, que a fazia destacar ainda mais.
Como a mais bela das flores que para
realçar a sua beleza necessita apenas do verde da folhagem á volta.
Ele admirava a forma como ela fingia não
perceber as inúmeras solicitações que lhe eram dirigidas.
Permanecia na sua mesa, só, lendo ou
escrevendo, parecendo indiferente a tudo que se passava á sua volta.
Apenas ele parecia notar que alguém
bebia avidamente todas as suas palavras.
A sua acompanhante não gostava dela.
Decerto o famoso sexto sentido feminino.
De vez em quando a moça do café aparecia
no meio da conversa para um qualquer comentário depreciativo.
Ele nunca respondia.
Fingia não saber a quem se referia.
Passaram alguns meses.
Nunca se cumprimentaram.
Depois, ela passou a vir acompanhada.
Eram dois casais agora.
Ele passou a reparar mais nela.
Algo na doçura com que parecia querer
acalmar as atitudes algo bruscas do seu acompanhante.
Ela nunca deixou de reparar nele .
Era apenas mais reservada.
A sua acompanhante deixou de falar dela.
A moça do café não voltou a ser assunto
de conversa.
Passaram alguns meses.
Nunca se cumprimentaram.
Depois ele passou a ir sozinho.
Ela continuava acompanhada.
Ele fingia não reparar nela.
Ela não conseguia esconder a
curiosidade.
Nunca olhava directamente para ele.
Olhava para a cadeira ao lado da sua.
O acompanhante dela parecia não gostar
dele.
Sempre que o via chegar olhava-o com
rancor.
Ele fingia não reparar e nunca olhava
para eles.
Sentia-se estranhamente bem apenas em
estar na mesma sala que ela.
Passaram alguns meses.
Nunca se cumprimentaram.
Depois ela passou a ir sozinha.
Ele continuava sozinho.
Foi estranho ao principio.
Cada um deles se esforçava por parecer
ignorar mais o outro.
Mas nenhum deixava de ir ao mesmo sitio.
Todos os dias.
Ás mesmas horas.
Passaram alguns meses.
Nunca se cumprimentaram.
Até que um dia aconteceu.
Quando nada o fazia prever aconteceu.
Ela levantou-se da esplanada e ao passar
pela mesa dele estancou ligeiramente o passo e disse bom-dia.
Disse-o baixinho, de fugida, quase a
medo.
Ele tinha baixado os olhos para
fingir-se distraído quando ela passasse e foi apanhado desprevenido.
Quando conseguiu balbuciar bom-dia já
ela se encontrava de costas em direcção á rua.
O pequeno tremor no corpo dela
indicou-lhe que o tinha ouvido.
A partir dai passaram a cumprimentar-se
frequentemente.
Os bons-dias á chegada eram rematados
com um até-logo á despedida.
As boas-noites eram rematadas por um
até-amanha.
No entanto nunca chegaram
verdadeiramente á fala.
Parecia-lhes que todos os olhos estavam
postos neles.
Como se todas as pessoas que ali estavam
mais não fizessem do que fingir indiferença e desconhecimento,
para melhor os apanhar em falso.
Conheciam e falavam com quase toda a
gente que frequentava o mesmo café, excepto um com o outro.
Cada um parecia esperar o próximo
movimento do outro.
Como se cada um deles não quisesse ser o
primeiro a dar o passo que todas as outras pessoas lhes pareciam adivinhar.
Era o jogo do gato e do rato.
De avanços e recuos.
Era um jogo de xadrez em que cada um
deles movia cautelosamente os seus peões, alimentando o jogo,
mas de maneira a que aos outros
parecesse que o tabuleiro permanecia exactamente na mesma.
Até que um dia ela não apareceu.
Nem no dia seguinte, nem no outro.
Ele começou a vê-la entrar noutro café
na mesma rua.
Em sua substituição começou a aparecer o
antigo namorado.
Sentava-se sempre perto da janela de
modo a poder vigiar todos os movimentos dela conforme entrava e saia do outro
café.
Alternava a vigia que exercia sobre ela
com olhares rancorosos dirigidos a si.
Todos os dias ele voltava ao café na
esperança que ela viesse.
Ela nunca vinha.
O antigo namorado estava sempre lá, em
compensação.
O máximo que conseguiam era ver-se á
distância de vez em quando, quando coincidiam de entrar ou sair ao mesmo tempo.
Foi assim durante algumas semanas.
Ele finalmente ganhou coragem e
aventurou-se a entrar no outro café.
Fê-lo casualmente, de modo a não parecer
que ia lá por causa dela.
Não que ela fosse ter qualquer dúvida
acerca disso.
Começou a alternar a frequência entre os
dois lugares.
Voltou a ser estranho ao principio.
Ele não queria que ela se apercebesse
que ele sabia que ela ali estava.
Por isso nunca olhava na direcção dela.
Ela não conseguia esconder a alegria que
sentia por ele ali estar.
Fazia todos os possíveis para que ele
reparasse que ela ali estava.
Ele finalmente fê-lo.
Foi um alivio para ambos.
Voltaram os bons-dias e os até-logos.
Os boas-noites e os até-amanhãs.
Mas nunca falaram realmente.
Ela tinha feito um novo grupo de amigos
e nunca estava sozinha.
Estranhamente, todos pareciam saber algo
que ele desconhecia.
Sabia isso devido á maneira como o
olhavam ou falavam dele quando entrava.
Isso incomodava-o um bocado, mas não o
fazia desistir.
Apenas o inibia mais.
Ás vezes ele não tinha coragem para se
aproximar e ficava-se pelo balcão.
Nessas alturas ela inventava sempre
alguma coisa para se dirigir ao balcão.
E então trocavam olhares.
O tal olhar.
O tal que perguntava porquê, que
perguntava como, que perguntava quando.
Que perguntava porque sentiam o que
sentiam, desta maneira, um pelo outro.
Que perguntava como era possível isto
estar a acontecer-lhes.
Que perguntava quando é que iriam fazer
algo acerca disso.
Mas tudo terminava normalmente num
até-logo ou num até-amanhã.
Foi assim durante algum tempo.
Não sentiam especialmente a falta um do
outro quando não estavam juntos.
Mas quando o outro entrava tudo o resto
perdia interesse e todos os sentidos e atenções se viravam na sua direcção para
não perder nenhuma preciosa palavra, ou gesto ou sorriso.
Como se não existisse mais ninguém no
mundo.
E aquele desejo irresistível de falar,
de tocar, de estabelecer contacto.
Um impulso tão forte que quase os fazia
saltar da cadeira e correr para o outro.
Apenas o medo os travava.
O medo do ridículo.
O medo do desconhecido.
Como era possível amar alguém que não
conhecemos?
Como é possível sabermos que aquela é a
pessoa certa se nem nunca sequer conversamos?
E o outro, sentirá ele por nós o que nós
sentimos por ele?
Era esta a dúvida que os atormentava.
Quando não conseguimos acreditar no
nosso próprio amor como é que podemos acreditar no amor do outro?
Mas nem estas dúvidas pareciam
demovê-los.
O que os queria juntar era forte demais
para ser combatido com meras dúvidas existenciais de circunstância.
Não concebiam sequer a ideia de estarem
com outra pessoa qualquer.
Na sua cabeça havia apenas uma ideia, um
caminho e uma opção.
Existiam um para o outro.
Viviam para os poucos momentos em que
estavam juntos.
Passado algum tempo conheciam
practicamente toda a gente que frequentava aquele sitio.
Todas as pessoas que um conhecia o outro
também conhecia.
Apenas eles não se conheciam.
As oportunidades de serem apresentados
eram frequentes.
Mas nunca acontecia.
A situação ameaçava eternizar-se.
Até que um dia...
Ela estava sentada numa mesa com um
grupo de amigos.
Todas as outras mesas á volta estavam
ocupadas.
Mais uma vez algumas caras se voltaram e
falaram quando ele entrou.
Mais uma vez ele se dirige para o
balcão.
Mais uma vez ela inventou qualquer
desculpa para ir ao balcão.
Mais uma vez trocaram olhares.
Mais uma vez tudo parecia ir acabar num
até-logo ou num até-amanhã.
Quando subitamente algo pareceu crescer
e irromper de dentro dele,
como que subiu das suas entranhas contra
sua própria vontade,
e sem que nada pudesse fazer para o
impedir brotou irresistível,
como se fosse dito por outra pessoa que
não ele.
E para surpresa de ambos ouviu-se dizer:
“-Podem duas pessoas amarem-se sem se
conhecerem?”
Estava quase lá.
Era uma questão de poucos metros.
De poucos segundos.
Sentiu-se estancar ligeiramente o passo.
Andar cada vez mais devagar.
Os seus passos eram cada vez mais
curtos.
O seu andar mais lento.
Mas não obstante estava cada vez mais
perto.
Por mais que fizesse não conseguia
prolongar o espaço e o tempo.
Sentiu medo.
Sentiu que tinha chegado o momento.
Era agora.
Quando atravessasse aquela porta, era
agora.
Quando o visse entrar, também ela
saberia.
Não olhariam logo um para o outro.
Olhariam para o lado para esconder um
sorriso.
Depois respirariam fundo.
Esperariam uns segundos.
Finalmente olhariam para o outro.
Sorririam.
Ambos saberiam que era agora.
O tão esperado momento.
Alimentava o sono deles de sonhos de
amor.
Povoava-o de pesadelos.
Temiam-no tanto como o desejavam.
Era um medo primário que os
aterrorizava.
Medo de falharem.
De não corresponderem.
De desiludirem.
Nenhum deles duvidava por um segundo do
amor que sentiam um pelo outro.
Estava ali.
Era real.
Enraizado.
Nem duvidavam do amor do outro.
Estava ali.
Era vivo.
Palpável.
Mas seriam eles merecedores desse amor?
Dessa paixão cega e inexplicável que o
outro parecia dedicar-lhes?
Esse era o medo que os aterrorizava.
Que os puxava para trás quando o que
mais queriam era avançar.
Que os fazia adiar uma e outra vez o
momento que mais desejavam.
Retardar o mais possível o instante em
que veriam nos olhos do outro a sombra da desilusão por todo o amor que tinha
desperdiçado ingloriamente em si.
Esse era o momento da insegurança.
Em que lhes apeteceria fugir.
Sair a meio do filme, antes de descobrir
que o final podia não ser feliz.
Ser sugados pelo chão.
Desaparecer.
Mas não o fariam.
Estariam gelados.
O seu corpo não teria qualquer tipo de
reacção.
E submeterse-iam á provação.
O coração bateria descompassadamente.
A respiração seria ofegante.
O cérebro estaria confuso.
Mas estariam lá.
Firmes nos seus postos.
Antes quebrar que torcer.
Dispostos a travar a guerra.
Sem rendição.
Nem quartel.
Até ao fim.
Quando atravessasse aquela porta
Aquela que por mais devagar que ele
andasse se dirigia para ele a uma velocidade vertiginosa.
Que o perseguia inexoravelmente por mais
que ele corresse para trás, tentando escapar-lhe.
Que parecia querer engoli-lo como uma
grande boca aberta.
Como se caminhasse nas nuvens sentiu-se
percorrer os últimos passos que o separavam do que estava escrito.
Era como se não sentisse o chão e os
seus pés pousassem em almofadas de ar.
Uma espécie de suor frio inundou-lhe o
corpo.
Sentiu-se transportar.
Quatro.
Três.
Dois.
Um.
Chegara.
Entrara.
Estava dentro.
Tinha chegado o momento.
O quando era agora.
Tinha começado o jogo.
Ela viu-o imediatamente quando ele
entrou.
Não olhou imediatamente para ele.
Teve que disfarçar um sorriso.
Soube que tinha chegado o momento.
Havia mesas á volta.
Ele estremeceu.
Dirigiu-se hesitante para o balcão.
Olhou casualmente á volta, até que os
seus olhos se cruzaram com os dela.
Sorriram.
Não se viam há dois dias.
Nenhum desviou o olhar.
Ela continuava a sorrir.
O riso mais confiante que já lhe vira.
Toda ela irradiava confiança.
Olhava-o fixa e insistentemente.
Ele conseguia ler nos olhos dela como um
livro.
« É agora, diziam eles.
Estou aqui.
Vem. »
Também ele a olhava.
« Não sei se consigo.
É difícil. »
« Coragem.
Tu consegues. »
« Tenho medo. »
« Não tenhas medo.
Eu estou aqui. »
« Não me faças isto.
Por favor. »
« Não temos escolha.
É agora.
Vem. »
Ele hesitou alguns segundos.
Sentia as pernas a tremerem.
Mas sabia que era agora.
Para o bem ou para o mal.
Era agora.
A custo conseguiu mexer uma das pernas.
Depois a outra.
Era como se tivesse calçado sapatos de
chumbo.
Um passo.
Depois outro.
E caminhou na direcção dela.
Não se apercebeu dos passos seguintes.
Foi como se fosse guiado por piloto
automático.
Como se as suas pernas tivessem ganho
vida própria.
Quando retomou consciência estava junto
dela.
As pessoas que estavam com ela
olharam-no surpreendidos.
Continuavam a olhar-se nos olhos.
Ela continuava a sorrir.
Ele continuava indeciso.
“-Não te preferes sentar?” - brincou
ela.
Ele sentou-se.
O grupo estava animado.
A conversa versara vários temas.
Todos se conheciam.
Uns melhores.
Outros piores.
Mas todos o suficiente.
Todos os outros julgavam que eles não se
conheciam.
Mas não podiam garantir que assim fosse.
Por isso assumiram que, afinal de
contas, se conheciam.
E nenhum deles tinha qualquer motivo
para suspeitar que nem nunca tinham sequer conversado.
O diálogo fora equilibrado.
Todos participavam.
Não falavam para alguém individualmente, mas para o grupo.
Tirando uma ou outra interpelação
individual.
Rapidamente apadrinhada por todos.
Ninguém sabia que para dois deles esta
não era uma conversa vulgar.
Era o primeiro passo de uma caminhada.
O principio de algo mais.
Uma prova de fogo.
O primeiro dia de vida de um sonho de
amor.
Ambos sentiam uma vontade avassaladora
de falarem um com o outro.
De se exprimirem.
De se explicarem.
De se conhecerem.
Mas resistiram á tentação de o fazer
intempestivamente.
Deixaram a conversa decorrer
normalmente.
Não se procuraram com os olhos.
Nem se abordaram directamente.
Ouviam apenas as respostas dadas aos
outros.
E como sabia bem ouvir aquela voz que
até agora apenas imaginavam.
Ou ouviam de fugida, ao longe.
Foi quando ela se lhe dirigiu.
Fê-lo naturalmente.
Sem pressas.
No seguimento da conversa.
“-Noutro dia falamos sobre o problema do
conhecimento entre as pessoas.” - provocou.
Ele percebeu.
“-Sim”- sorriu - “Ou na falta de
conhecimento entre elas.”
Ela também sorriu.
“-E como é que isso se resolve?”
“-Segundo Socrates, através do diálogo.”
“-Há! Estamos muito filosóficos hoje!”-
interrompeu outro rapaz do grupo, de tez morena -”Estamos aqui a falar há quase
uma hora e se não vos conhecesse, ainda não sabia nada de vós.”
“-Tens razão.”- anuiu uma rapariga
também morena -”Vocês são muito boas pessoas, mas aqui não se aprende nada.”
“-A culpa á minha”- corrigiu ele
-”Esqueci-me de dizer que Sócrates disse «...através de um diálogo bem
conduzido!»”.
“-O que implica necessariamente que esta
nossa conversa tem sido tudo menos bem conduzida. Devíamos eleger alguém para
fazer uma ordem de trabalhos e anotar as conclusões em acta.”- quem assim
falava era uma jovem loira e magra, de pele clara.
“-Se estás a oferecer-te para alguma
coisa, eu voto contra”- interveio um rapaz ruivo -”Antes uma conversa mal
conduzida e anárquica, do que falar de comida macrobiótica e cremes solares.”
“-Up your’s !”
Uma voz quente feminina veio pôr fim á
discussão.
“-Então como é para ti um diálogo bem
conduzido?”
Ele fitou-a.
“-Para atingir o conhecimento ou
simplesmente informal como este?”
“-Para atingir o conhecimento.”
“-Em primeiro é fundamental sabermos
sempre aquilo que queremos atingir e apontarmos nessa direcção.”
“-É óbvio.”
“-Depois o diálogo deve ser longo e
demorado, sem hora marcada para terminar.”
“-Claro.”
“-E deve ser um diálogo dirigido em
espiral.”
“-Em espiral como?”
“-Em espiral, abordando de inicio
assuntos mais gerais e aproximando-nos a pouco e pouco do que é fundamental.
Como um tubarão que nada em círculos cada vez mais apertados em redor da sua
vitima.”
“-E isso não é perder tempo?”-
interrompeu o rapaz moreno -”Porque é que não vamos logo ao que é importante?”
“-Porque o nosso cérebro não está
preparado para absorver informação fornecida dessa maneira. É preciso primeiro
fornecer-lhe uma base sólida na qual ele possa repousar, para depois alcançar o
patamar seguinte. Ele também está sujeito á inércia como o nosso corpo e os
restantes objectos físicos, e não lhe é fácil mudar subitamente de opinião.”
“-Inércia como?” - perguntou a loira.
“-Como quando vamos num autocarro e
somos puxados para a frente quando ele pára?”- perguntou ela.
“-Exactamente. Nós vamos num autocarro
sentados ou de pé, mas aparentemente parados. Estamos parados em relação ao
nosso referencial que é o interior do autocarro. Mas enquanto conjunto e em
relação a um referencial exterior movimentamo-nos todos á velocidade do
autocarro.. E é por isso que quando ele trava bruscamente o nosso corpo é
subitamente puxado para a frente, o que não é mais do que a continuação do
movimento que lhe vínhamos imprimindo enquanto passageiros do autocarro, embora
estivéssemos aparentemente parados. O corpo precisou portanto de algum tempo
para se adaptar á nova situação.”
“-E achas que o nosso cérebro também
está sujeito á inércia?”
“-O nosso cérebro além do maravilhoso e
complexo sistema de células cerebrais e impulsos eléctricos que são
responsáveis por tudo o que de emocional e intelectual existe em nós, é antes
do mais um órgão físico, e como tal sujeito igualmente á inércia.”
“-Como?”
“-Por exemplo o cérebro está envolvido
por um liquido, o liquido amniótico, que entre outras coisas é responsável pelo
nosso equilíbrio. Quando tu giras rapidamente sobre ti próprio esse liquido que
envolve o cérebro fica animado do mesmo movimento e também gira o que pode
provocar que percas o equilíbrio e caias, se rodares o tempo suficiente para
que isso aconteça. Por outro lado, quando paras ficas cheio de tonturas durante
algum tempo e tens a sensação de que vais cair e de que tudo continua a girar á
tua volta, embora já estejas parado. Isto porque quando tu paras o liquido
continua ainda a girar durante algum tempo no teu cérebro e só quando ele pára
e estabiliza é que consegues recuperar de novo o equilíbrio e a verticalidade e
te passam as tonturas e as náuseas.”
“-Isso é tudo muito bonito”- resmungou o
outro rapaz - “Mas continuo a não entender como é que para se atingir o
conhecimento como vocês dizem, não se há-de ir directamente ao assunto?”
“-Porque existem no Universo uma série
de Leis que não podem ser quebradas, desde o nível microscópico ao nível
macroscópico, desde o nível físico ao nível intelectual. E essas Leis não
existem para nos restringirem ou criarem qualquer tipo de obstáculo, existem
porque fazem parte da dinâmica de funcionamento do próprio Universo e são-lhe
portanto intrínsecas. E essas são Leis que devem ser respeitadas, sob pena de
se pagar um preço elevado pelo seu não cumprimento.”
“-Dessa parte não gosto”- atalhou o
rapaz ruivo- “Acho que já existem leis e regras demais, e quase todas nos
impedem de ser felizes.”
“-Eu concordo contigo”- continuou -”Mas
isso são as regras artificiais que a sociedade criou para nós próprios, e que
como tu dizes só quebrando-as conseguimos ser felizes. Mas estas de que eu falo
são tão naturais como a própria vida, como a água ou como o ar, e aplicam-se a
tudo.”
“-E são essas as leis que nos mostram
que para atingirmos o conhecimento devemos dirigir-nos em espiral?” -perguntou
ela.
“-Não.”- riu-se ele -”Mas permitem-nos
fazer uma analogia. As Leis do Universo são muito simples se as soubermos
interpretar. E através de analogias conseguimos compreender muito do seu funcionamento.”
“-E que Leis são essas?”
“-No fundo existe apenas uma Lei, que
por ser tão Absoluta pode ser analisada em cada uma das suas facetas e aplicada
a quase tudo. É uma Lei que poucos conseguiram exprimir através de palavras, e
que nos aparece visível em toda a parte através de exemplos quotidianos.”
“-E que exemplos são esses?”
“-Imagina por exemplo um mergulhador que
tenha atingido grandes profundidades. Ao subir de novo á superfície
provavelmente teria vontade de subir o mais rapidamente possível para poder
finalmente descansar e respirar ar puro. Mas ao invés sobe lentamente, agarrado
a uma corda e parando periodicamente durante alguns minutos a profundidades
pré-defenidas, e só então continua a subir até á próxima paragem. O que implica
que uma distância que ele podia facilmente percorrer a nado em poucos minutos
pode facilmente demorar uma hora ou mais dependendo da profundidade que
atingiu.”
“-E porque é que ele faz isso?”
-perguntou a jovem loira e magra.
“-Porque a pressão aumenta em profundidade
e portanto o corpo dele esteve sujeito enquanto mergulhava a pressões muito
superiores ao normal. Por isso é que ao voltar á superfície tem que fazer
várias paragens a diferentes profundidades a que correspondem pressões cada vez
menores de maneira ao corpo poder gradualmente adaptar-se. Chama-se a isso
descompressão.”
“-E se ele não fizer isso?”
“-Uma vez que o corpo esteve sujeito a
pressões elevadas e portanto comprimido, se ele subisse muito rapidamente á
superfície essa grande e repentina diferença de pressões faria com que se
descomprimisse muito depressa e o seu corpo incharia até rebentar. No fundo é
uma questão de equilíbrio entre a pressão interna do corpo e a pressão externa
exercida sobre ele.”
“-Ainda bem que eu não sei nadar”-
voltou a rapariga loira -”Dessa morte não morro eu.”
“-E surgem-nos exemplos desses em toda a
parte. È o caso por exemplo das cápsulas espaciais quando voltam á terra e
reentram na atmosfera. Não fazem a abordagem directamente em linha recta mas
antes numa sucessão de arcos ou linhas curvas para minimizarem os efeitos da
entrada na atmosfera. Uma entrada em linha recta e na perpendicular á Terra
aumentaria em muito a hipótese de poder haver uma explosão ou de se incendiarem
durante a reentrada sob a acção do nosso atrito.”
“-Mas afinal que Lei ou que Leis são
essas?” voltou o moreno.
“-Já te disse que é uma Lei simples
demais para poder ser expressa em palavras. Mas se ficássemos aqui o dia todo e
víssemos um milhão de exemplos da sua aplicação, provavelmente no final do dia
faríamos uma ideia muito mais aproximada de como ela é.”
“-Eu acho que já começo a entender essa
Lei.”- disse ela com a sua voz quente -”Deve ser a mesma Lei que faz com que
para as abelhas o caminho mais curto entre dois pontos não seja uma linha recta.”
“-Estás a querer dizer que as abelhas
também bebem?” -atacou o rapaz ruivo.
“-Já cá faltavas tu e as tuas
parvoices”- desabafou a loura -”Não ligues ao que ele diz. Continua.”
“-As abelhas conseguem voar acima dos
obstáculos e conseguem ver de onde vêm e para onde querem ir.”- continuou ela
-”No entanto, quando voam de uma flor para a outra em vez de se dirigiram em
linha recta optam por um trajecto sinuoso, descaindo alternadamente para a
esquerda e para a direita.”
“E porque é que achas que fazem isso?”-
perguntou a rapariga morena que se vinha mantendo calada.
“-Não existe nenhuma razão aparente para
o fazerem mas fazem-no”- e virou-se na direcção dele -”Estás a ver alguma
razão?”
“-Só uma.”
“-Qual?”
“-Ela vai ás curvas para gozar por mais
tempo o prazer de ir provar o sabor de uma nova flor.”
Riram-se todos.
“-Isso quer dizer que deve ser
seguramente uma abelha-macho.” disse ela.
“-Porquê?”
“-Porque é uma mentalidade tipicamente
masculina. Essa de provar o sabor de uma nova flor.”
“-Não necessariamente.”- defendeu-se ele
-”Qualquer um pode gozar em antecipação o prazer que espera vir a obter. E esse
prazer de antecipação pode ser tão grande que pode levar até a adiar ao máximo
o momento de obter o prazer propriamente dito.” -e fitou-a nos olhos -”As
coisas que nos dão mais prazer são normalmente aquelas que desejamos á mais
tempo.”
Ela corou.
Por um segundo.
Depois recompôs-se.
E olhou-o nos olhos.
Profundamente.
Os olhos dela brilhavam quando
perguntou.
“-E isso é bom ou mau?”
“-O que?”
“-O facto de deixar prolongar esse gozo
de antecipação de algo que pode ser bom.
Ainda sem saber se de facto o será.
Ás vezes indefinidamente.”
Ele hesitou antes de responder.
“-Não é bom nem mau. Aconteceu assim...”
- apercebeu-se rapidamente do seu erro -”Quer dizer é uma opção. Ou então
estava escrito, não sei. Existe uma razão para que todas as coisas aconteçam e
todas as coisas têm uma razão para acontecer.”
Pela primeira vez sentiu-se inseguro.
Os olhos dela continuavam a brilhar.
“-Não pode ser também medo?” -perguntou
ela.
“-Medo de quê?”
“-Medo de alguma coisa, sei lá. De ser
feliz ou de ser infeliz.”
“-Medo de ser feliz?”
“-Achas que não podemos ter medo de ser
felizes?”
“-Mas vocês estão a falar de quê,
afinal?” -resmungou o moreno -”Há já algum tempo que não entendo nada do que
dizem.”
Sentiram-se acordar.
Tinham-se descuidado.
Deixado levar.
A ânsia que existia dentro deles,
aproveitara a oportunidade e libertara-se.
“-Estamos a falar de abelhas.” -tentou
ele emendar.
“-Abelhas com medo de serem felizes?”
-estranhou o ruivo.
Riram-se todos.
Eles entreolharam-se de relance.
Pelo menos servira para desviar as
atenções.
Tinham escapado.
“-Esperem ai”- Interveio a loura “Vocês
não escapam com essa facilidade.”
Fitaram-na sobressaltados.
“-Porquê?”
“-Porque já entendi porque é que um
mergulhador faz descompressão.
E como é que as cápsulas reentram na
atmosfera.
Também já entendi porque é que sinto
tonturas.
E porque é que as abelhas andam ás
curvas de flor em flor.
Mas ainda não entendi porque é que para
atingir o conhecimento não havemos de ir directo ao assunto.”
Respiraram de alivio.
Tinham mesmo escapado, afinal.
Ele sorriu-lhe.
Voltava a pisar terreno firme.
“-Porque dentro de nós, do nosso cérebro
e da nossa mente, existem duas partes, uma consciente e uma inconsciente.
E dentro do inconsciente existe o ego.
E o ego é uma coisa muito complicada
para se lidar.
E mais ainda para nos libertarmos dele.”
“-O ego é uma espécie de vaidade, não
é?” -perguntou a loira.
“-È muito mais do que isso.
É a imagem idealizada que temos de nós
próprios.
Uma imagem em que todos os defeitos são
minimizados e todos as virtudes exponenciadas.
Uma imagem em que aparecemos como seres
quase perfeitos.”
“-E dai?”
“-Dai que o nosso cérebro, com excepção
de mentes mais evoluídas, não está motivado para absorver novos conhecimentos.
Não porque não tenha capacidade.
Ante porque o nosso ego nos diz que
somos perfeitos, e estamos portanto bastante satisfeitos com nós mesmos,
com o que somos, e com o que já sabemos,
e não sentimos portanto necessidade de
aprender mais.
Ora a insatisfação é a base de todos os
progressos e avanços.
O ego procura manter-nos no status quo.”
“-Já entendi.” -interveio ela -”O que
estás a querer dizer é que o ego funciona para nós como a pressão para o
mergulhador ou o atrito para a cápsula. E assim como temos a descompressão e a
sucessão de arcos para ultrapassar esses problemas, o diálogo em espiral é de
alguma maneira a solução para ultrapassar o ego, não é?”
Ele olhou para ela.
Era inteligente.
O que lhe agradava sobremaneira.
“-Exactamente. Pelo menos de o
contornar.
Sempre que surge algo que ponha em causa
o status quo o ego reage com desconfiança.
Sente-se ameaçado.
E reage violentamente.”
“-Mas qual é a ameaça? Porquê tanto
medo?”
“-O ego convive muito mal com o
fracasso.
E quando surge alguma nova ideia,
existem duas possibilidades, qualquer delas inaceitável para o ego.
Uma é não termos qualquer conhecimento
ou opinião formada sobre o assunto.
Nesse caso demonstramos ignorância sobre
algo, o que contraria a nossa imagem ilusória de perfeição.
O ego não lhe dá assim qualquer
importância, desacreditando-a ou zombando dela.
«Não tenho tempo para perder com coisas
dessas.» -defende-se.
A outra é termos de facto conhecimento
do assunto e a nova ideia vir contrariá-lo frontalmente.
E pior ainda se com provas concretas a
sustentá-la.
Nesse caso estamos ERRADOS.
O que é inaceitável.
Completamente intolerável.
O ego reage e combate-a violentamente.
E quanto maior importância tiver para
nós a noção agora provada errada,
e mais tivermos fundado sobre ela alguns
dos pilares da nossa vida,
mais violenta e injustamente
combateremos a nova.
Podendo atingir os limites da
perseguição e do ostracismo.
Que o digam homens como Sócrates,
Copérnico e Galileu.”
“-Mas como é que o ergo nos consegue
passar essas informações?”
“-Ardilosamente.
Muito ardilosamente.
Funciona na retaguarda, desde o
inconsciente.
O ego transmite-nos as suas ideias em
forma de pensamentos.
Baralha-os.
Mistura-os com os nossos.
De maneira que nós recebemos os
pensamentos dele como se fossemos nós a pensar, e agimos em conformidade.
Não da maneira que agiríamos por nós
próprios.
Mas da maneira que o ego queria que nós
agíssemos.”
“-Mas então não temos hipóteses. Estamos
encurralados.” -voltou o ruivo -”Como é que podemos alguma vez distinguir os
nossos próprios pensamentos daqueles que o ego nos transmite?”
“-Com atenção.
Prestando muita atenção.
É essencial aprendermos a conhecermo-nos.
Se conseguirmos olhar para nós próprios
e nos virmos como realmente somos, será mais difícil o ego enganar-nos.
E aos poucos vamos identificando cada um
dos pequenos truques e ilusões que usa para nos dominar.”
“-E que truques são esses?” -perguntou a
loura, com avidez.
Ele sorriu da impaciência dela.
“-O ego age durante uma vida inteira,
sabes?
É paciente.
Sabe que o tempo joga a favor dele.
No fundo é um processo de domesticarão.
Faz-te esquecer de ti mesmo, para depois
aparecer em teu lugar.
Dominando-te.
Condicionando-te.
E condicionando as tuas atitudes.
Por isso é que toda a vida, perante os
mesmos estímulos, temos sempre as mesmas reacções.
Independentemente de nos termos já
arrependido delas em situações anteriores.
E pagado por isso.
São os reflexos condicionados.
Armazenamos nos nossos cérebros uma
relação directa.
Para determinado estimulo, determinada
reacção.
E estamos condicionados.
Aprisionados num ciclo vicioso.
E o ego, inteligente, ainda nos acena
com todas as vantagens de estar nesta gaiola dourada.
A segurança de sabermos sempre como
vamos agir em todas as situações.
A impressão que a nossa personalidade
forte causa nos outros.
Haverá situação mais cómoda do que não
ter que pensar?
E as pessoas acomodam-se, lentamente.
Desistem de si mesmas.
E esquecem-se do que, um dia, já foram.
É isto o que o ego faz de nós.
Apenas mais um dos cães de Pavlov.”
Durante uns segundos ninguém disse nada.
Depois foi o rapaz ruivo que quebrou o
silêncio.
“-Mas isso não acontece sempre, faças tu
o que fizeres?
Quer dizer, qual é a vantagem de
dirigires o diálogo em espiral em direcção ao que pretendes demonstrar,
se no fim o ego vai acabar por negar
tudo isso?
Qual é a diferença? Será que o resultado
não é o mesmo?”
“-Seria, se nós não continuássemos
vivos, soterrados por sob o ego.
Nós nunca desaparecemos, estamos apenas
adormecidos e submetidos.
E se através de um diálogo bem
conduzido,
nos formos aproximando suave e
lentamente do que pretendemos,
a cada curva da espiral nos encontramos
mais perto da verdade,
e mais longe da ilusão.
E a partir de determinado ponto,
as informações que o nosso ego foi
deixando passar,
por inofensivas,
vão entrando em contradição com
determinadas noções que julgávamos estarem correctas.
Lentamente, a principio.
Mas depois com o acumular de informação,
aumenta também a contradição,
até que somos levados para uma tal
mescla de contradições,
que já não podemos, pura e simplesmente,
fechar os olhos a isso.
Está criada a dúvida.
E o nosso cérebro desperta.
Preguiçoso e indolente, primeiro.
Mas depois cada vez mais desperto e
acutilante,
cada vez menos condicionado,
e conseguindo já vislumbrar para além da
cortina de ilusões em que o ego o tinha envolvido.
Até que somos capazes de afirmar,
de peito aberto e sem qualquer tipo de
mágoa:
«Estava errado»,
e dirigimo-nos alegremente para o centro
da espiral,
em busca do verdadeiro conhecimento.”
“-Mas diz-me uma coisa.”- perguntou ela
-”Tudo o que disseste até agora implica que, pelo menos um dos participantes do
diálogo saiba bem mais do que os restantes sobre o assunto em questão, e possa
assim ajudá-los a chegar ao nível de conhecimento dele, não é?”
“-Exactamente.”
“-O que implica que houve pelo menos
alguém que conseguiu chegar lá sozinho. Sim, porque há sempre o primeiro em
tudo. Essa pessoa tem que ser por isso muito especial.”
“-São as tais mentes evoluídas de que eu
já falei. São pessoas que tiveram a disponibilidade mental para pensar e
aceitar coisas novas, e a coragem de as apresentar e defender mesmo contra a
opinião dominante. Pessoas que num determinado momento das suas vidas tiveram a
inspiração para perceber algo que ninguém tinha ainda percebido, ou de
aperfeiçoar o trabalho de alguém que esteve lá perto, mas nunca chegou
realmente lá.
As tais mentes insatisfeitas que fazem
avançar o Mundo.”
“-Mas....”- voltou ela -”..tudo isto
começou de um mal entendido.”
“-Porquê?” -admirou-se ele.
“-Porque quando te falei do
conhecimento, referia-me mais ao conhecimento entre as pessoas, e não
propriamente ao conhecimento de outra qualquer noção.”
Ele sorriu-lhe.
“-E não me podias ter dito isso antes?
Tinhas-me poupado muita saliva, e a vós a chatice de me ouvirem.”
“-Nem penses nisso”- retorquiu ela
-”Estava a gostar de te ouvir.”
“-Ele também estava a gostar de se
ouvir.” -atirou o rapaz moreno carrancudo.
Teve a sensação de que ele não gostava
muito de si.
Sempre se tinham dado bem, mas hoje
parecia sentir-se incomodado com a sua presença.
Como se o ameaçasse de alguma maneira.
«É engraçado o que o ciúme faz a uma
pessoa» - pensou -«Faz-nos inclusivamente ver defeitos em que nunca tínhamos
reparado até nos nossos melhores amigos.”
Não lhe levou a mal por isso.
Era a mais humana das reacções, a de
tentar guardar para nós aquilo que amamos.
Ainda que o que amamos seja uma pessoa,
e não possamos portanto reivindicar a sua posse.
Ou que não tenhamos sequer qualquer tipo
de compromisso.
Ou que essa pessoa ame inclusivamente
outra.
Ainda assim, tentaremos sempre
reivindicar posse.
Ainda assim, tentaremos sempre um qualquer
subterfúgio para tentar inverter a situação a nosso favor.
Ainda que tenhamos que trair, mentir ou
conspirar.
Estava absorvido nestes pensamentos
quando ouviu de novo a voz dela:
“-E nesse caso como é que adaptas a tua
teoria ao conhecimento entre as pessoas?
Quando duas pessoas se conhecem estão,
em principio, em pé de igualdade.
Nenhuma sabe mais sobre a outra do que a
outra sobre si.
Nenhuma pode guiar a outra.”
“-Estás enganada!”- retorquiu ele - “Vê
por exemplo os sociólogos e os psicólogos.
Não sabem ao principio nada sobre os
seus pacientes.
Mas como têm o conhecimento dos dilemas
humanos, vão-nos ajudando a descobrirmo-nos a nós próprios.
Provavelmente um pouco depois de eles
próprios o terem feito.”
Ela olhou para ele nos olhos, com um
sorriso nos lábios.
Não era fácil lidar com ele.
Sabia perfeitamente ao que ela se
referia.
E fugia da resposta por todos os meios.
Escorregadio como uma enguia.
Mas ela não era de desistir.
Se ele queria que ela o encurralasse,
ela fálo-ia.
“-E entre duas pessoas absolutamente
normais que não se conhecessem?”- insistiu -”Eu e tu, por exemplo. Vamos supor
que nós não nos conhecemos. Vamos supor até, por absurdo, que nem nunca sequer
tínhamos falado antes.”- e o seu sorriso abriu-se de par em par ao pronunciar
estas palavras, que apenas eles entendiam -”Como é que podíamos atingir o
conhecimento um do outro? “
Ele olhou para ela, dividido entre o
divertido e o assustado.
Os olhos dela brilhavam de triunfo.
“-Tudo depende da empatia que se estabelecer
entre as pessoas.”- disse ele - “E do grau de honestidade que consigam imprimir
ao que mostram sobre si próprios.”
“-Porquê é que não haviam de ser
honestos?” - perguntou o ruivo.
“-Voltamos outra vez ao ego.” retorquiu
ele, e ia prosseguir mas ela antecipou-se-lhe:
“-Nós temos sempre tendência a não nos
mostrarmos exactamente da maneira que somos.
Mostramos o bom e escondemos o mau.
E se queremos agradar a alguém, ainda
mais, não é?- perguntou -”Então como é que é possível conhecermos realmente uma
pessoa, e sabermos que é ela, e não a imagem que o ego quer transmitir?”
“-Não é nada fácil, sabes? Se o fosse
não haveria tantas relações falhadas. Eu entendo o teu medo e a tua dúvida.”
-disse com voz profunda -”Muitas vezes apaixonamo-nos não por o que a pessoa é
mas por o que ela nos quer mostrar ser.”
Ela corou ligeiramente.
Alguém perguntou: “Quem é que falou de
amor?”.
Mas ele prosseguiu indiferente.
“-E mesmo aqui um pode guiar um outro.
Não precisa de ser o mais corajoso dos
dois.
Nem o mais inteligente.
Basta que naquele preciso momento tenha
a coragem necessária para se mostrar como na realidade é.
E se tiver havido empatia entre os dois,
é muito provável que o outro retribua do mesmo modo.
É uma questão de confiança que se cria
entre as pessoas,
que nasce por vezes do nada,
que é ás vezes quase ilimitada,
e difícil de explicar racionalmente.
Por isso é que ás vezes contamos os
nosso maiores segredos, a quase completos estranhos.”
“-Então tu achas que se eu me abrisse
espontaneamente contigo, haveria uma maior hipótese de tu retribuíres do mesmo
modo comigo?”
“-Se optarmos por acreditar nas pessoas,
sim.”
Ela gostou.
Gostou sobremaneira.
Mas sabia também dos perigos .
“-Já te deves ter magoado algumas vezes
a agir dessa maneira, não?”
Ele sorriu-lhe.
“-Algumas, sim. Por isso é que é
importante que exista antes algo entre as pessoas.”- ele sorriu-lhe
-”...chamemos-lhe empatia.”
Ela também lhe sorriu.
“-Mas sabes que, mesmo com toda a boa
vontade e honestidade que possamos ter,
não é nada fácil conseguirmo-nos mostrar
a outra pessoa.
Não porque não tenhamos vontade.
Não porque não consigamos ultrapassar o
ego.
Apenas porque há sentimentos que não se
conseguem traduzir por palavras.
É preciso vivê-los e senti-los para os
entender.”
“-Eu sei o que queres dizer”- respondeu
ele -”Para conhecer realmente alguém não basta apenas ouvi-lo falar,
é preciso também vê-lo agir.”
E há outra grande dificuldade em nos
conseguirmos mostrar.
Nós somos muito mais do que imaginamos.
Dentro do nosso inconsciente existe todo
um Universo que desconhecemos e a que não temos acesso.
Temos apenas alguns lampejos, através de
sonhos, premonições ou pressentimentos.
E mesmo essas mensagens vêm codificadas.
Têm que ser interpretadas.
Por isso como havemos de conseguir
mostrar algo que desconhecemos que temos?”
“-E já agora, porque é que os sonhos nos
aparecem todos codificados e têm que ser interpretados?” - perguntou a loira
-”Porque é que não falam uma linguagem que possamos entender?”
“-Os sonhos são a forma como a nossa
Alma entra em contacto connosco. E se são codificados é para conseguirem
ultrapassar o ego, que mesmo durante o sono se mantém vigilante. Qualquer
mensagem directa seria interceptada, mas não encontra ameaça de maior nesta
linguagem simbólica. O estudo e interpretação dos sonhos é no fundo um estudo
profundo sobre nós próprios.”
“-Assim como a associação de ideias.”-
interrompeu-o ela empolgada -”Li um artigo interessantíssimo sobre isso. É
incrível como através da nossa resposta ao ordenamento sequencial de um determinado
número de situações, é possível tirar conclusões da nossa personalidade.”
Ele sorriu.
Tentou que passasse despercebido, mas
ela notou.
“-Que foi?”
“-Nada.” -disse ele.
“-Que foi, diz lá?” -insistiu ela.
Ele hesitou ainda um segundo.
Mas depois decidiu-se.
Tinha escolhido jogar o jogo.
Jogá-lo-ia até ao fim.
“-É engraçado que fales disso”- disse
ele -”Um amigo fêz-me uma experiência dessas, e fiquei completamente aturdido.
Respondi-lhe inocentemente ás perguntas
que me fez.
Não fazia ideia nenhuma do que se
pretendia.
E no final fiquei boquiaberto.
Não pela experiência em si.
Mas pelos resultados.
E de como depois de os interiorizar, me
identifiquei completamente com eles.
Passei a entender-me melhor a partir
desse dia.
E a entender melhor os outros em relação
a mim.”
“-Conta lá como é que foi.”
“-Não sei se deva”- retorquiu ele
-”Contado é quase ridículo.”
“-Agora não nos vais deixar sem saber,
pois não?”- insistiu ela.
“-Está bem, mas depois não se riam no
fim.
Foi importante para mim na altura.”
Respirou fundo ante de prosseguir.
“-Estavamos a falar e esse amigo
disse-me que tinha um jogo bom para mim.
E eu disse-lhe que adorava jogos,
principalmente quando ganhava.
Então ele perguntou-me:
“-Diz-me quais são os três animais que
gostas mais.”
Olhei-o surpreendido.
“-É isso?”
“-Vamos, responde-me.”
Pensei durante algum tempo na resposta.
Havia tantos animais.
E gosto de animais..
Não queria esquecer-me de nenhum
importante.
Por fim decidi-me.
“-O tigre, a águia e o cão.”
“-Por essa ordem?”
“-Sim.”
“-Então diz-me, o que vês em cada um
deles?”
“-Como assim?”
“-Diz-me aquilo que te vem á cabeça
quando pensas em cada um deles.”
“-Bem, no tigre os olhos, a cor, a
agilidade, ...”
“-Não, não . Em referia-me mais ás
qualidades que lhes associas.”
“-Queres dizer as qualidades
intrínsecas?”
“-Exactamente. O que associas á imagem
do tigre?”
“-Ao tigre, associo a beleza, ...o
poder,...a força, ...o predador, ...um solitário.”
“-Muito bem. E a águia?”
“-Á águia a liberdade, ...a ânsia de
voar, ...a beleza...de se elevar aos céus, ...a solidão.”
“-Então e o cão?”
“-O cão é a amizade, ...o
companheirismo, ...fidelidade, ...brincadeira, ...carácter.”
“-Então vamos fazer um jogo para
esclarecer-mos essa tua personalidade dividida, está bem?”
“-Adoro jogos. Principalmente quando
ganho.”
“-Neste perdes sempre e só ganhas ás
vezes.”
“-Perco sempre? Como assim?”
“-Perdes sempre porque és obrigado a
confrontar-te com algumas das falsidades que o teu ego fabricou acerca de ti
próprio. E isso pode ser muito penoso. Ganhas algumas vezes quando consegues
superar e admitir isso e ganhas maior conhecimento de ti próprio e da tua
relação com os outros.”
“-Então podemos começar?”
“-Muito bem. O primeiro animal que
disseste, o tigre, é como tu te queres apresentar ás outras pessoas.”
“-Como assim?”
“-Tu queres que os outros te vejam
forte, belo, poderoso e inexpugnável.”
“-Ou seja, quero que me vejam como um
tigre?”
“-Exactamente. Essa é a imagem que
queres que tenham de ti.”
“-E o segundo animal, a águia?”
“-A águia é como as outros te vêem na
realidade, a imagem que têm de ti. Vêem-te solto, livre, distante, ás vezes
distante demais, quase inacessível. Com alguma beleza também.”
“-Então eu quero ser um tigre e eles
vêem-me como uma águia?”
“-Exactamente. Ou por defeito na
transmissão ou por defeito na interpretação.
Se calhar um bocado de cada uma.
Ou provavelmente nem de uma nem de
outra.
Quando tentamos personificar o que não
somos, a imitação nunca sai perfeita.”
“-E o terceiro, o cão?”
“- Bem, o cão é o que tu és e como te
sentes na realidade.”
“-Então eu no fundo sou um cão?”
“-Claro que sim. Não só és como ainda te
sentes.
Amigo, carinhoso, brincalhão e carente.
Sempre á espera que te façam festas ou
te dêem atenção, para poderes retribuir com ainda muito mais.”
E não fui capaz de lhe responder mais
nada.
Ficaram todos em silêncio durante algum
tempo.
“-E foi esta a história do jogo.”-
concluiu ele.
Voltaram a ficar em silêncio.
Depois ela falou:
“-Então aquilo que eu vejo não corresponde
exactamente aquilo que me queres mostrar?
“-Exactamente.
Há um hiato entre aquilo como cada um de
nós se quer apresentar ás outras pessoas e aquilo que elas vêm na realidade.
Esse hiato é em mim a diferença entre a
águia e o tigre.
E existe uma diferença ainda maior entre
o que realmente és e os outros dois.
Essa é a diferença entre o que queres
transmitir e o que interpretam dessa transmissão, para aquilo que realmente há
de mais Puro e Profundo na tua Alma e no teu Ser.
“-Então tudo o que nós vemos são apenas
projecções de imagens?”
“-Exactamente.”- disse sorrindo-lhe -”Eu
atiro-me a ti como um tigre, e tu vês-me chegar como uma águia.”
Todos se riram.
Apenas ela entendeu.
Bem, quase todos.
O rapaz moreno apenas esboçou um sorriso
amarelo.
Foi o primeiro a levantar-se.
Parecia agastado.
“-Não tenho tempo para perder com isto.”
-desabafou.
Saiu murmurando apenas um lacónico “Até
amanhâ”.
A conversa durou apenas mais alguns
minutos.
Pouco a pouco todos se levantaram e
saíram .
Primeiro a rapariga morena.
Depois o rapaz ruivo.
“-Até amanha, tigre.” -atirou.
Finalmente a rapariga loira, que lhe deu
várias palmadinhas na cabeça.
“-Good dog, sit.”
Até que ficaram sós.
Ficaram finalmente sós.
Era estranho.
Não lhes parecia minimamente estranho estarem
sós.
Era como se fosse absolutamente normal.
Como se se conhecessem há anos.
E esta fosse apenas a continuação de uma
conversa iniciada muitos anos atrás.
-Estou a pensar numa coisa”- disse ela
-”Naquele principio da retribuição. Sabes, ...quando há a tal empatia?”
“-Sim.”- disse ele.
“-Acho que aquilo que disseste não foi
nada fácil, sabes?
Principalmente em público.
Gostava de retribuir.
Gostava de te dizer quais são os meus
animais.”
“-Sabes que agora já não tem tanto
valor, não sabes?
A partir do momento em que sabemos para
o que é, o ego começa logo a pensar em associações agradáveis.”
“-Eu sei, mas posso tentar fazer um
esforço para ser honesta.”
“-Então diz lá quais seriam os teus
animais.”
“-Acho que o primeiro animal seria a
garça.”
“-Ha! Muito bem. Elegância,
...sensibilidade, ...beleza.
Muito bem escolhido. E o segundo?”
Ela pensou um segundo.
“-Seria obviamente, ....a garça.”
Ele soltou uma sonora gargalhada.
“-Muito modesta, sim senhor. Tenho que
aceitar.
Elegância, ...sensibilidade, ...beleza.”
Ela também sorriu.
“-Só não sei se duas garças estão aqui
bem seguras ao lado de uma águia e de um tigre.”
“-Lembra-te sempre que, no fundo, no
fundo, não sou nenhum dos dois.”- disse ele -”Por isso nunca te assustes.
Se um dia vires o tigre com a boca
aberta não te preocupes.
Estende o braço e eu venho lamber-te as
mãos.
Se um dia vires a águia com as garras
lançadas não te assustes.
Estende o braço que eu pouso
devagarinho.”
Ela olhou para ele.
“-É bonito, isso que disseste.”- disse
com um riso enigmático -”Não me vou esquecer.”
“-Mas, então e o terceiro?”
“-Qual terceiro?”
“-O terceiro animal.”
“-Ha, claro. O terceiro seria...”-
pensou uns segundos -”... uma mulher.”
“-Uma mulher???”- perguntou
surpreendido.
“-Sim, uma mulher.”- respondeu ela -”Nós
também somos animais como os outros, ou não?”
“-Sim, claro.”- balbuciou ele -”Mas não
esperava que desses essa resposta, só isso.”
Ela levantou-se e pegou na sua sacola.
“-Mas não uma mulher qualquer, claro.”-
continuou ela.
“-Então uma mulher, como?”- perguntou
enquanto ela se curvava sobre ele e lhe depositava um beijo na face, por entre
o queixo e os lábios.
“-Uma mulher, ...”- rematou ela já de pé
e com a sacola ao ombro -”...feliz proprietária de um pequenino cachorro.”
E piscou-lhe o olho, saindo pela porta
fora.
Ela dirigia-se para casa.
Resolvera ir a pé, para apanhar ar
fresco.
Estava alegre.
Leve como uma pena.
Parecia-lhe incrível como isto
acontecera.
Conhecia-o.
Sentia que o conhecia.
Não que pensasse que o conhecia de
facto.
Havia decerto ainda milhões de coisas a
descobrir acerca dele.
Mas compreendera a essência do seu ser.
O código que decifrava o seu
comportamento.
As raízes da sua Alma.
Ela sorriu para si própria.
Era tão fácil, afinal.
Tão claro que parecia impossível não o
ter visto.
Aproximara-se o tigre.
E ela apenas percebera a águia.
Sem nunca sequer se aperceber do cão.
Sentia uma sensação nova dentro de si.
Desaparecera o medo.
Desaparecera o nervosismo.
Ficara apenas a paz.
Uma estranha sensação de paz e
tranquilidade.
Como se nada pudesse agora correr mal.
Apenas uma outra sensação parecia caber
dentro de si.
Que ao invés de romper a paz, parecia
ainda querer acrescentá-la.
Era uma necessidade premente de
descoberta.
Já não precisava de o fantasiar.
Já não precisava de o idealizar.
Precisava, isso sim, de o descobrir.
Era real, e existia por si.
Sorriu de novo para si mesma.
As palavras dele ainda ecoavam dentro
dela.
Sabia que o espirito indomável do tigre
nunca deixaria de o levar a caçar na selva.
E sabia que a ânsia de liberdade da
águia nunca deixaria de a elevar aos céus.
Mas entre o salto de tigre e o vôo da
águia, havia espaço ali para um pequenino cachorro.
Como é que ele dissera?
Amigo, carinhoso e brincalhão.
Sempre á espera de atenção para poder
retribuir.
Com ainda muito mais.
Á espera de ser descoberto para
permanecer, durante mais tempo, cão.
Sentia-se capaz de o descobrir.
Sentia-se capaz de lhe dar essa atenção.
E aceitar essa retribuição.
E dar-lhe de novo atenção.
Em permanente retribuição.
Sentia-se com força para amar o cão.
Sem trela.
Nem coleira.
Por entre o salto do tigre e o vôo da
águia.
Ele ficou sentado ainda durante uns
minutos depois de ela sair.
Sentia-se em descompressão.
Após um longo mergulho.
Dentro de si próprio.
Estava cansado.
Completamente esgotado.
Só agora se apercebia do esforço que
fizera.
Só agora se apercebia da angústia que
sentira.
E do esforço que fizera para se tentar
manter natural e controlado.
E de como isso o extenuara.
Mas aos poucos essa sensação de cansaço
foi-se transformando noutra.
Que afastava dentro de si qualquer
contrariedade.
Uma sensação de júbilo.
De euforia, quase.
O sonho era real, afinal.
Não era apenas uma ilusão.
Sonhavam ambos o mesmo sonho.
E não é possível deter o caudal de dois
rios quando eles confluem.
Qualquer barragem será transbordada.
Qualquer barreira ultrapassada.
E a viagem rio abaixo é impagável.
Foi com esse pensamento que se levantou
e saiu.
Estava um lindo dia de sol.
Primavera, e os dias eram longos.
Alguns pássaros voavam no céu.
Um deles levava algo pendurado no bico.
Decerto algo para forrar o ninho.
Passou rapidamente sobre a sua cabeça,
perdendo-se na distância.
Era curioso.
Á medida que estava cada vez mais longe,
e a sua imagem mais pequena,
era capaz de o imaginar cada vez maior.
Quem o visse agora á distância,
transportando a sua carga,
poderia facilmente confundir a sua
silhueta com outro pássaro bem maior.
Uma ave de grande porte, carregando
também consigo algo bem maior.
Uma cegonha, por exemplo.
Vinda directamente de Paris.
Transportando no bico um saco com um
bebé.
Sorriu para si próprio.
Estava bem disposto.
Voltou a mirar a silhueta do pássaro á
distância.
E no fundo, no fundo, pensou,
porque não uma garça?
Transportando o mesmo saco?
Com um cachorro lá dentro?
Deu consigo a rir alto na rua.
Que estranha mensagem queria o seu
cérebro transmitir-lhe.
O eco das suas sonoras gargalhadas
acompanharam o seu caminho até casa.
O homem voltou-se curioso, mas não viu o
que pretendia.
Tinha acabado de sair de uma loja e
ouvira rir alegremente na rua.
E no entanto não via ninguém.
A rua estava completamente deserta.
Nem vivalma por perto.
Enfim, pensou, foi impressão minha.
E prosseguiu.
Não ligou qualquer importância ao pequeno
cachorro, que se cruzou consigo, saltitando alegremente.
No céu uma garça voava graciosamente em
círculos, acompanhando o seu caminho.
(*)Luís Moutinho, escritor português.
Mora em Matosinhos.