Luís Moutinho(*)
Versiones 30
Director: Diego Martínez Lora
Vila Nova de Gaia - Portugal
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Luís Moutinho (*):
QUANDO TROVEJA
Ele amava as mulheres.
Mais forte que esse amor, apenas o medo que sentia delas.
Não era propriamente um medo das pessoas,
mas das consequências que traziam consigo.
Fôra uma luta que travara anos a fio.
Sempre que se avizinhava o começo de uma nova relação,
não conseguia deixar de imaginar como é que acabaria.
A sua intuição parecia-lhe fazer antever todos os contratempos.
Media todas as consequências.
Pesava os prós e os contras.
Estudava a sua viabilidade.
Ás vezes o panorama afigurava-se-lhe tão negativo,
que pura e simplesmente optava por não a começar.
Fazia abortar a relação ainda antes do seu inicio.
Não que nessa altura não gostasse realmente dessa pessoa.
Podia estar até bastante interessado,
ou desejá-la-ia,
ou estaria mesmo apaixonado.
Mas não conseguia libertar-se do fantasma das imagens de uma separação iminente,
fosse esse iminente um dia,
um ano,
ou dez anos.
Conseguia visualizar as imagens de desilusão,
de frustração,
e de sofrimento,
que inevitávelmente viriam,
e escolhia poupar-se a si próprio, e á outra pessoa, essa provação.
Assim sendo saltou ao longo dos anos sobre várias ligações.
Algumas podiam até ter-se revelado bastante compensadoras.
Em compensação aceitou envolver-se noutras que se revelaram absolutamente desastrosas.
Tinha enraizado dentro de si uma vontade muito grande de agradar,
de não desiludir as pessoas,
e não suportava a ideia de que alguém,
fosse quem fosse,
pudesse ficar com uma ideia negativa a seu respeito.
Era uma estupidez, uma vêz que condicionava a sua própria actuação ao que outros pudessem pensar dela.
Por vias disso deixou de fazer um sem número de coisas que desejava de modo a não ferir susceptibilidades.
E fez muitas outras que não desejava apenas com o intuito de agradar.
Para agradar aos outros,
deixou de ser ele próprio.
Com o passar dos anos, porém, foi mudando essa maneira de pensar.
Foi uma luta interior de afirmação,
de libertação,
de aceitação.
Aos poucos foi tomando consciência que se arriscava a ser sempre uma personagem,
cujas cenas e frases se encontravam todas pré-defenidas num guião,
escrito por outro que não ele,
e que se limitaria a intrepretá-las,
melhor ou pior,
segundo o seu próprio talento natural.
Mas não chegaria nunca a ter qualquer influência na tomada de decisões quanto ao desenrolar da história.
Foi a tomada de consciência desse facto que o levou a desencadear a sua própria revolução pessoal.
Foi um longo processo de descoberta de si próprio.
Primeiro experimentou olhar-se ao espelho.
Mas não resultou.
O que via era apenas reflexo daquilo que tinham feito de si.
Teve que procurar mais fundo.
Olhar dentro de si.
Fazer uma introspecção.
Explorar-se.
Procurar-se.
Perder-se dentro de si mesmo.
Até que um dia se encontrou.
Estava perdido e encontrou-se.
Foi numa manha cálida.
Quando menos o esperava deu de caras consigo mesmo.
Ficou a observar-se durante muito tempo.
Não houve grande excitação.
Nem nervosismo.
Apenas uma sensação de segurança imensa.
De paz interior.
De realização.
Ficou horas a olhar para si próprio.
Olhou, e pasme-se, gostou do que viu.
Depois de todas as personagens que tinha tentado encarnar,
descobriu que o único caminho era ser ele próprio.
E que aquela necessidade que o atormentara durante tantos anos,
e que condicionara tantas das suas acções,
estaria ainda assim votada ao infortunio,
uma vêz que a única coisa realmente importante,
era agradar-se a si próprio.
E que apenas depois disso,
seria possivel agradar aos outros.
E se ainda assim alguns deles não gostassem,
isso também não era assim tão importante.
A partir dai começou a construir o seu próprio edificio.
Pedra por pedra.
A partir do nada.
Pôs em causa tudo o que acreditara até então.
Questionou tudo o que lhe tinham ensinado.
Procurou por si próprio novas explicações.
Umas vezes buscou dentro de si próprio.
Outras recorreu ao conhecimento dos outros.
Leu.
Viajou.
Assimilou .
Intuiu.
Alargou a sua consciência em todas as direcções.
Tentou que a sua mente fosse um grande espaço amplo,
sem paredes onde pudessem ficar aprisionados quaisquer preconceitos.
Compreendeu que tinha desperdiçado muito do seu tempo e energia,
com sentimentos tão mesquinhos como o ódio,
a raiva,
a posse,
e o ciúme,
e escolheu retirá-los da sua vida,
sempre que conscientemente conseguisse interpretá-los como tal.
Não tinha ilusões que o seu inconsciente lhe tentaria, ocasionalmente, passar essas emoções.
Mas uma vêz que tomava consciência delas, abandonava-as.
Da mesma maneira cortou as amarras que lhe tinham amarrado durante anos.
Não aceitaria nunca que lhas colocassem de novo.
Esse era talvêz o maior medo que sempre sentira das mulheres.
Quase todas, sem excepção, tinham tentado mudá-lo.
Transformá-lo em outra pessoa que não ele.
Moldá-lo de maneira a que pudessem sentir-se elas próprias mais seguras.
Ficavam fascinadas com a sua capacidade de comunicação,
e com o número de pessoas que o rodeavam.
Mas depois tentavam aos poucos afastá-lo dos seus amigos,
com a desculpa de que precisavam de mais tempo para estarem sozinhos.
Tinham sido seduzidas pela impressão fortissima que lhes causara este estranho,
que parecia saber tanto sobre elas,
desarmando-as apenas com um sorriso.
Mas depois tentavam por todos os meios impedi-lo de ter contactos com outras mulheres,
com receio de que pudesse também seduzi-las.
Admiravam a sua alegria contagiante.
Mas procuravam privá-lo de tudo o que lhe dava realmente prazer.
Adoravam a sua capacidade de fazer rir,
mesmo nas situações mais imprevisiveis.
Mas tentavam cortar-lhe todos os estimulos mentais que ele necessitava para ser feliz e que para elas não passavam de estranhos interesses que não conseguiam compreender, e que interpretavam apenas como mais uma desculpa para que pudesse estar sozinho, sem elas, mais algum tempo.
Apaixonavam-se por uma pessoa.
E tentavam transformá-lo noutra.
Era tão absurdo como alguém que comprasse uma roupa branca porque não gostasse do negro.
E aos poucos a fosse mandando tingir em tons cada vez mais escuros.
Lembrava-se muitas vezes da letra de uma canção:
"Vou transformar o teu rascunho em arte final".
Era cantada por uma mulher, claro.
Ele acabava sempre por ceder no inicio.
Mas normalmente o grau de exigência ia aumentando progressivamente,
e acabava por se tornar intolerável.
Deixava de ter prazer em estar consigo próprio.
E obviamente deixava de ter prazer em estar com mais alguém.
E acabava-se.
A maior parte das vezes não se acabava por qualquer tipo de infidelidade, ou sequer intenção disso, mas da atenção que invariávelmente recebia de outras pessoas.
Essa atenção era sempre interpretada como o prenuncio ou a confirmação de algo mais sério, e tinha por consequência o estreitar ainda mais do jugo que queriam manter sobre si.
Poucas compreendiam que ele necessitava da liberdade para tomar decisões.
Fosse qual fosse o assunto ou a opção.
E necessitava obviamente da liberdade para ser fiel.
Sempre que a ocasião surgira optara pela fidelidade na esmagadora maioria dos casos.
Sem qualquer tipo de pressões.
Mas não podia nunca ser compelido, amarrado ou forçado a isso.
Além disso ao seu espirito independente não era concebivel ter que tecer qualquer tipo de explicações apenas porque uma rapariga sorrira na sua direcção um pouco mais demoradamente.
Ou porque determinada pessoa, na qual nem sequer reparara, gravitava mais frequentemente á sua volta.
Era-lhe intolerável ser inocente e ter que provar sucessivamente que o era.
Nunca se identificara com a mulher de César.
O seu juiz era a sua própria consciência.
E inevitávelmente, acabava-se.
Não porque tivessem deixado de gostar dele.
Ou ele delas.
Mas não conseguiam conviver com a pressão que tinham criado para si próprias.
E que acabavam por lhe impôr igualmente a ele.
Actualmente, também já não fazia planos como antes.
Não pensava no fúturo.
Ou melhor, não pensava no fúturo como um obstáculo ou uma fonte de problemas.
E assim, pôde concentrar-se mais no presente.
E compreendeu algumas noções importantes.
Tinha compreendido que a felicidade não existe.
Existem sim momentos felizes.
E a nossa obrigação é tentar transformar cada momento num momento feliz.
Uma sucessão de pequenos pontos que vistos ao longe se confundem com uma recta.
E quanto mais e mais próximos forem os pontos, mais a recta se apresenta como uma linha cheia e continua.
E maior a felicidade.
Por isso passou a viver mais intensamente cada momento.
Deixou de adiar para o fúturo tantas coisas e planos que gostaria de fazer e realizar.
Adoptou uma nova filosofia de vida.
"Um dia de cada vêz."
Quanto aos problemas fúturos, também não o preocupavam.
Bons ou maus, eles viriam inexorávelmente.
Não valia a pena vivê-los antecipadamente.
Nem tomar decisões hoje que podem comprometer uma análise mais cuidada no fúturo.
Porquê abrir ou fechar portas ao que o fúturo nos pode trazer, com antecedência?
Quando lhe falavam disso respondia inexorávelmente:
"-Amanhâ veremos."
Era neste estado de equilibrio consigo mesmo que se encontrava actualmente.
Sentia-se confortávelmente instalado num patamar entre dois lanços de escadas.
Podia olhar para baixo e ver os lanços que tinha já transposto, o que lhe dava grande satisfação pessoal.
Mas olhando para cima outro lanço se afigurava desafiadoramente.
Mas neste momento o desafio parecia não surtir nele o mesmo efeito de motivação que sentira anteriormente.
Não sentia aquela ânsia de descoberta,
aquela busca do maravilhoso,
aquele desejo de se ultrapassar,
de se transcender,
de ir mais além.
Estava contente consigo mesmo.
Sentia-se em repouso.
Como se o que tivesse agora já o satisfizesse.
Como se já fosse o suficiente para ser feliz.
A percepção que tinha da Vida e do Mundo deram-lhe uma confiança ilimitada em si e nas suas capacidades.
E sentia-se absolutamente seguro em relação aos outros.
Porque muito dificilmente alguém conseguia provocar-lhe desequilibrios actualmente.
Descobrira o seu próprio Caminho.
Respeitava o Caminho dos Outros.
E não permitia que o tentassem desviar do seu.
O que o levava a questionar da utilidade das restantes escadas.
Para onde levariam?
Que surpresa reservariam para quem as subisse?
O que faltaria ainda transpôr?
Mas nem esta curiosidade latente era motivo suficiente para o motivar a prosseguir.
Costuma dizer-se que a necessidade aguça o engenho.
E a sua ausência potência o comodismo.
E assim permanecemos até que surge o obstáculo.
E o obstáculo surge fatalmente.
Pode demorar 5 ou 10 anos.
Pode demorar 50 anos.
Pode ser nesta vida ou numa próxima.
Mas o encontro está irremediávelmente marcado.
Marcado a Fogo.
E quando o Encontro acontece é uma oportunidade maravilhosa.
Uma oportunidade, que não uma garantia.
Porque existem sempre duas opções num Encontro.
Ou aceitamos que o obstáculo é intransponivel e significa o fim do caminho, e estagnamos.
Ou ousamos que existe Caminho para lá do obstáculo e resolvêmos transpô-lo.
E esse é no fundo o primeiro passo em qualquer conquista.
Ousar transpôr uma adversidade.
Dai o Encontro ser maravilhoso.
Porque nos permite continuar a crescer, a aprender e a prosseguir o nosso Caminho.
E também ele tinha o seu Encontro marcado.
Embora não o soubesse, o seu obstáculo afigurava-se já perante ele.
Crescia no horizonte embora ele ainda não o visse.
Viria a descobrir talvêz a única coisa que poderia causar-lhe desequilibrios.
Que poderia pôr em causa a imagem de estabilidade e segurança que tinha de si próprio.
E retirá-lo da sensação ilusória de têr já alcançado algo de definitivo.
E como em qualquer história o perigo vem sempre de onde menos se espera.
Como na fusão o inimigo era interno.
O menos provável dos perigos revelava-se.
Ele próprio.
"-Amanhã mesmo vou começar a fazer dieta." - disse ela entre duas garfadas, olhando já com ar de remorso para a mesa cheia de comida apetitosa e tentadora.
"-Ha! Ha! Ha! " - riu-se ele - "-Dieta? Dieta para quê? "
"-Dieta para quê? Para emagracer, é claro. Daqui a pouco estou gorda como uma lontra. "
"-Gorda, tu? Não digas disparates. E ademais não eras capaz de fazer isso. "
"-Se fôr para emagrecer, eu faço qualquer coisa. " - retorquiu ela peremptória.
Ele olhou para ela de soslaio.
Era um caso perdido.
Desde que se conheciam esta discussão vinha periódicamente á baila.
Sabia que havia pessoas que desenvolviam cismas e habituações em relação a determinados assuntos e que era muito dificil ou mesmo impossivel demovê-los dessa posição.
Mas o que ele não conseguia compreender no caso dela, era sequer como é que a cisma podia ter começado.
Nada nela apontava no sentido da obesidade.
Era bonita e sensual, de estrutura elegante, em que apenas o contorno das ancas e do peito pareciam contrastar com a aparente fragilidade do resto do corpo.
De resto, estatura mediana, distribuindo as formas harmonicamente ao longo do corpo, onde se destacavam umas pernas bem torneadas, que hoje afloravam por sob uma saia preta.
Agora que pensava nisso, poucas vezes a tinha visto de saia, que de resto lhe ficava a matar.
Apenas uma ou duas vezes no máximo.
Normalmente usava sempre calças pretas.
Pensou que só mesmo ele é que estava disposto a ouvir esta conversa.
Se um dia dissesse isto a uma pessoa realmente gorda decerto pensaria que estava a gozar com ela.
Encheu-se de paciência e preparou-se para lhe explicar pela enésima vêz que não era assim, tentando de cada vêz usar novos argumentos.
"-Já te disse um milhão de vezes que não precisas perder peso nenhum. Estás muito bem assim. Não mexas mais para não estragares. "
"-Não brinques comigo. Preciso de perder urgentemente dois ou três quilos. "
"-Tu nunca hás-de conseguir perder o peso suficiente para te sentires feliz.
Se atingisses o peso que pretendes ias descobrir que continuavas a ser a mesma pessoa e não ias ficar mais feliz por isso. Isto é apenas a compensação que encontraste para te esqueceres de outros problemas.
É muito mais fácil pensar que a felicidade está apenas a uns quilinhos de distância. "
"-Mas eu sinto-me gorda, sinto-me sempre gorda. Não consigo evitar. "
"-Ouve lá. Acredita em mim. Tu és uma mulher muito bonita e muito sexy. Não tens razão nenhuma para pensares que não és, e eu não tenho razão nenhuma para to estar a dizer. Entendeste? "
Ele próprio ficou surpreendido.
Nunca se tinha referido a ela nestes termos.
Embora ela de facto o fosse, não era assim que ele a via.
Ela era a amiga, a cúmplice, a confidente.
Mas ela não estranhou nada, o que o aliviou bastante.
"-Pronto, pára lá com os teus sermões.
De qualquer maneira só começo a dieta amanhâ, por isso vamos aproveitar."- e olhando para o seu copo vazio - "-Poês-me mais um bocado de sangria? "
Ele pegou no jarro de vidro e encheu-lhe o copo.
Lentamente para a fruta que boiava á superficie não escorregar.
Engraçado como quase sempre que estavam juntos bebiam sangria.
Como se estivessem simplesmente a celebrar o facto de estarem juntos.
"-Ainda estou a pensar como é que me convenceste a beber disto." -resmungou ela.
Ele riu-se.
"-Olha que não foi preciso esforçar-me muito, lembras-te? "
Ela também sorriu.
"-Isso. Pisa. Tortura. Faz-me sentir pior.
Quando eu fôr uma bola vais ficar cheio de remorsos. "
E falaram e riram.
E falaram e riram.
E falaram e riram.
Foi quando de repente veio.
Do nada.
Quando ninguém esperava.
Veio rasgando o céu,
rasgando o sol,
o azul horizonte,
rasgando uma ilusória inocência,
e veio explodir ali,
bem por cima deles,
com estrondo,
quase os ensurdecendo,
quase os cegando.
Explodiu,
ou pelo menos assim o pareceu,
contra o tecto,
e foi bater em todas as paredes,
antes de desaparecer.
No seu lugar,
apenas um rasto luminoso.
Ficaram durante uns segundos envolvidos no seu brilho.
Como uma bolha protectora.
Mudos.
Absortos.
Olharam á volta.
Todas as outras pessoas permaneciam impassiveis,
não parecendo terem dado por nada.
Apenas eles a tinham visto.
E sentido.
Olharam um para o outro.
Durante uns segundos olharam-se nos olhos.
Foi então que um estranho fenómeno aconteceu.
A iris pareceu querer dilatar-se mais,
como que permitindo que mais luz pudesse iluminar a retina,
permitindo ver mais longe,
mais fundo,
mais claro,
numa zona porventura recôndita e mal iluminada.
Nunca frequentada também.
O que viram, abalou-os.
O que sentiram, tocou-os.
Olharam e desviaram os olhos.
Várias vezes.
Para terem a certeza de que estavam ali.
Sentados ao lado um do outro.
Que aquilo que sentiam era pelo outro.
De repente não era o amigo que ali estava.
De repente era alguém extremamante atraente.
Extremamente sedutor.
E muito desejável.
Viam a mesma pessoa.
Mas sentiam-na de outra maneira.
Ele lembra-se vagamente de como o rosto dela lhe parecia mais belo que nunca.
E de como lhe parecia impossivel não querer beijar aqueles lábios carnudos e sensuais.
Ela recorda-se vagamente de como ele lhe parecia estranhamente atraente e desejável.
E de como gostaria de ser abraçada de encontro ao peito dele.
Por um momento o fantasma de um beijo apaixonado pairou no ar.
Os corpos entrelaçaram-se.
As caricias sucederam-se.
O calor era insuportável.
A pressão insustentável.
Subitamente a bolha que os protegia rebentou.
E pareceram acordar de um estado hipnótico de letargia.
Mais uma vêz olharam á volta.
Todos os outros permaneciam impassiveis.
Decerto nada se passara, portanto.
A temperatura descia lentamente.
A pressão tornava-se suportável.
Olharam de novo um para o outro.
Abriram a boca para falar.
Mas nenhum disse nada.
Guardaram-no para si próprios.
Tomaram o café em silêncio.
Ela perguntou-lhe, a voz ainda trémula:
"-Working time?"
Ele sorriu-lhe.
"-Tens razão."
Era engraçado como sempre que ela se encontrava nervosa lhe falava em inglês.
Ás vezes era para mais ninguém entender.
Às vezes era um reflexo condicionado.
Mas quase sempre era um jogo entre eles.
Com o passar dos anos tornara-se natural para eles alternarem conversas em português e inglês,
apimentando os diálogos com pequenos fragmentos de outras linguas que ambos conheciam.
Por bizarro que parecesse,
era um prazer de que ambos disfrutavam.
E que faziam questão de manterem.
Um fetiche como qualquer outro.
Ou algo mais profundo.
Um território só deles.
Durante a viagem de carro quase se esqueceram do sucedido.
Não voltaram a pensar naquela faisca que caira do céu.
Era já uma recordação distante.
Uma miragem.
Ilusória.
Fruto provavelmente da sangria.
Estavam de novo sorridentes e bem-dispostos.
O amigo voltara.
Falaram e riram com a naturalidade de sempre.
A quimica que sempre os unira funcionava como sempre.
Apenas á despedida o beijo que ela lhe deu na cara demorou talvêz mais um segundo do que seria normal.
Talvêz o carinho que ele lhe fez na face não precisasse de ser tão afectuoso.
Ou o último olhar tão lamechas.
De resto tudo normal.
"-Vê lá se desta vêz não deixas passar tanto tempo."
"-Prometo que não. Mas liga-me tu também."
"-Combinado. Adeus."
"-Adeus. Um beijo."
Eram 15.00 horas.
Tinham passado alguns minutos desde que a deixara.
Conduzia rápidamente porque sentia que estava atrasado para o seu outro encontro.
Quase se esquecera disto.
Não lhe parecia ter agora qualquer importância.
Pelo caminho foi revivendo mentalmente todos os acontecimentos que aconteceram durante o almoço.
Pena que tivesse isto combinado.
Pena que ela tivesse que trabalhar.
Pena que fossem tão amigos.
E pena que não se fossem encontrar nos próximos tempos.
Abriu a janela do carro e pôs a música mais alta.
Deixou que o vento ao bater-lhe na cara lhe devolvesse o ânimo e o bom humor.
Começou inconscientemente a cantarolar a música da rádio.
Sentiu-se imediatamente melhor.
Entretanto chegara.
Estacionou na perpendicular ao passeio e olhou o café á sua frente.
Através da vidraça viu o seu encontro.
Desligou o carro e preparou-se para sair.
Tinha já uma perna de fora quando ouviu o som metálico de dois pequenos apitos vindo do seu telemóvel.
Conhecia bem este som.
Tinha acabado de receber uma mensagem escrita.
Olhou para o relógio.
15.21 horas.
Sentiu a tentação de sair do carro e lê-la depois.
Já estava suficientemente atrasado.
Mas algo o fêz parar.
Uma intuição .
Quase uma certeza.
Mecânicamente segurou no telemóvel e carregou no botão que indicava o remetente.
O seu largo sorriso foi o único sinal exterior de que acertara.
Era ela.
Foi sem surpresa que leu o nome dela escrito no visor.
Esperou uns segundos antes de carregar no botão e ler a mensagem.
Durante esse tempo tentou antecipar o que diria.
Pensou que seria qualquer coisa como "Obrigado pelo almoço", "gostei muito", ou "até á vista".
Foi com um arrepio na espinha que leu o conteúdo.
" ACHAS QUE A SANGRIA É AFRODISIACA ? "
Voltou a entrar no carro e a fechar a porta.
O coração batia-lhe rápidamente.
As imagens do almoço percorreram-lhe o cérebro a grande velocidade.
Reviveu todas as emoções como se tivesse acabado de as viver.
Ela devia estar na mesma situação.
Pensou uns segundos antes de responder.
Não porque tivesse dúvidas sobre o que queria dizer.
Mas porque sentia que precisava ser afirmativo e súbtil ao mesmo tempo.
Ela não tinha dito nada de tão comprometedor, afinal.
Mas queria mostrar-lhe que estava sintonizado na mesma frequência.
Tinha que dar-lhe uma pista.
" HOJE TENHO A CERTEZA " -digitou.
Sabia que a resposta era subtil.
Mas ela era inteligente.
Só não entenderia se não o quisesse.
Saiu do carro e dirigiu-se para o café.
O seu encontro esperava-o de sorriso aberto.
"-Desculpa o atraso! Trabalho."
"-Não tem importância."
Poucos minutos se tinham passado desde que chegara.
Foi quando ouviu de novo o som dos dois pequenos apitos.
Eram 15.27 horas.
Pegou casualmente no telemóvel e leu a mensagem.
Nem se deu ao trabalho de lêr o remetente.
Sabia que era ela.
" EU DIRIA MAIS ... TENHO A CERTEZA ABSOLUTA "
Com a mesma casualidade, começou a escrever a resposta, enquanto continuava a conversa.
Quem o visse diria que procurava algo na sua agenda.
" QUANDO TE CONVIDAR PARA SAIR VOU PREPARAR UM JARRO DE SANGRIA "
Sorriu quando carregou no botão para enviar a mensagem.
Agradava-lhe pensar na expressão dela ao lê-la.
Podia quase advinhar o riso franco e aberto, rapidamente transformado em sorriso enigmático.
O olhar inteligente rodopiar á volta para se certificar que ninguém podia ler-lhe os pensamentos.
Continuou a conversar durante alguns minutos.
Mas não se encontrava verdadeiramente ali.
A sua alma planava algures numa mesa sobre a praia, frente a um jarro de sangria.
Foi quando tocou de novo.
15.36 horas.
Desta vêz não conseguiu disfarçar a pressa em pegar no telemóvel.
" ESTÁS A FAZER-ME UMA PROPOSTA INDECENTE ?"
O seu coração bateu rápidamente.
Ela pedia uma confirmação.
Sentia que a brincadeira estava a tornar-se séria.
A fugir-lhes do controle.
Agora havia ainda retorno.
Haviam ainda dois caminhos.
Se assim o desejassem podiam ainda recuar.
Tudo não passaria de uma brincadeira entre dois amigos que tinham bebido demais.
Tudo estava dependente da próxima resposta dele.
Não hesitou um único segundo.
Os dedos digitaram á mesma velocidade do cérebro.
" O MAIS DECENTE POSSIVEL "
Para qualquer outra pessoa podia parecer uma resposta dúbia.
Mas ele sabia que para ela era imediata.
Com um único significado.
Sentiu também que não fazia sentido nenhum continuar ali.
Na verdade apenas o seu corpo ali estava.
O seu espirito viajava á velocidade de um trovão.
Rasgando o céu num lindo dia de verão.
Inventou uma desculpa relacionada com o trabalho e despediu-se.
Quando cruzou a porta e se dirigiu para o carro, sabia que dificilmente voltaria a estar com esta pessoa.
E isso não o preocupava nada.
Tinha conduzido até ao escritório em alta velocidade.
O vidro aberto e a música alta.
Estava extremamente bem disposto.
Sentia uma estranha alegria dentro de si.
Seria talvêz ainda a consequência de um almoço extremamente compensador.
Ou da alegria contagiante do álcool da sangria.
Ou da excitação que lhe tinham provocado as mensagens.
Fosse o que fosse, essa energia parecia querer aumentar mais e mais dentro de si, ao invés de se dissipar.
Nem a perspectiva de uma tarde exaustiva e cheia de reuniões parecia conseguir beliscar-lhe a boa disposição.
Reuniões para que estava, aliás, já um pouco atrasado.
Estacionou rápidamente o carro e voou pelas escadas.
Não passava muito tempo das 15.45 horas.
Era um atraso perfeitamente aceitável.
Do seu ponto de vista claro.
Mas ninguém pareceu ligar qualquer importância ao facto.
Depois dos cumprimentos habituais dirigiram-se para outra sala.
Tinham acabado de sentar-se quando...
15.53 horas.
Ninguém pareceu ligar qualquer importância aos dois pequenos toques que sairam do seu telemóvel.
Com a mesma naturalidade de quem pega numa caneta para escrever, empunhou o telemóvel e leu a mensagem.
Não consegui evitar um sorriso.
" BEWARE OF WHAT U DESIRE ...IT MIGHT HAPPEN "
Inglês.
Ela estava nesvosa.
Estavam a entrar num mundo só deles.
Como era óbvio ela tinha entendido a última mensagem.
Nunca o dúvidara.
Até agora tinham navegado em terreno algo pantanoso.
Mas começavam a sentir terra firme por sob os pés.
Não era imaginação deles.
Nem efeitos do álcool.
O amigo estava interessado.
Todos os seus sentidos pareciam ter-se deslocado apenas para sentir o batimento do seu próprio coração, que preenchia todo o espaço dentro da sua cabeça e parecia ecoar em toda a sala, abafando os outros ruidos.
Os outros pareciam abrir e fechar a boca, mas ele não os ouvia.
O batimento descompassado do coração parecia fazer-lhe afluir sangue ao cérebro em quantidades invulgares e contribuir para lhe redobrar os sentidos.
Para ele tudo era claro.
Ela dizia cuidado, quando queria que ele avançasse.
Dizia talvêz, quando tinha dentro de si uma certeza.
Ambos sabiam onde estavam.
E para onde iam.
Havia apenas um caminho, agora.
Ambos apontavam na mesma direcção.
Ela não pedia confirmação, mas ele ia dar-lha de qualquer maneira.
Foi quando notou que alguém parecia abrir e fechar a boca na sua direcção.
E agora?
Tinha que se conseguir concentrar.
Que voltar ao mundo.
Abandonar temporáriamente a Luminosidade dos seus Sentidos.
Desceu de onde estava e sentiu-se de novo sentado na cadeira.
Digitou rapidamente:
" MAL POSSO ESPERAR "
E respondeu rapidamente a algo que não sendo necessáriamente o que lhe tinham perguntado, lhe ocorrera fazer parte da agenda da reunião para hoje.
E esclareceu que se o referira justamente agora é porque, concentrados como estavam nos assuntos actualmente em discussão, corriam o risco de não se virem a lembrar disto mais tarde.
Todos concordaram.
16.24 horas.
Havia papeis espalhados por toda a mesa de reuniões.
Cartas abertas.
Cadernos de apontamentos.
Mas o que realmente tinha a sua completa atenção era o telemóvel igualmente pousado sobre a mesa.
Tinha recebido já várias chamadas, mas nenhuma era aquela que ele esperava.
De repente o mostrador ilumina-se e os tão esperados dois toques das mensagens escritas ecoam na sala.
Foi com sofreguidão que a leu.
" ... ALWAYS KNEW IT WOULD HAPPEN SOONER OR LATER ..."
Mais uma vêz aquela estranha energia que sentia em si sofreu nova mutação e transformou-se numa agradável sensação de câlor interior que lhe encheu o peito e reconfortou o espirito.
Sentiu uma intensa vontade de estar com ela e abraçá-la.
Ternamente.
Como se tudo dentro dele se derretesse em carinho por ela.
Pensou no que ela dizia.
Era verdade.
Se olhasse para trás com olhos de vêr, também ele podia vêr que provávelmente o que estava a acontecer agora sempre estivera latente.
Houvera pistas.
Sinais.
Reprimido dentro deles.
Á espera de uma pequena faisca que incendiasse o rastilho.
Ou de um relâmpago que explodisse o barril de pólvora inteiro.
Talvêz no fundo estivessem apenas á espera que um jarro de sangria se cruzasse na vida deles.
Numa tarde em que trovejasse.
Em plena tarde de sol.
Vindo rasgando o céu.
E novos horizontes.
Ela levantou-se da secretária e dirigiu-se a uma estante.
Fê-lo lentamente e sem pressas.
Sentia ainda a cabeça um pouco pesada da sangria que bebera ao almoço.
Não estava habituada.
Mas isso não explicava o que estava a sentir.
Sentia um estranho calôr dentro de si.
Que não havia maneira de passar.
Não conseguira fazer nada desde o almoço.
Era impossivel concentrar-se.
Agora mesmo levantara-se e dirigira-se até esta estante sem um objectivo preciso.
Manuseou casualmente alguns dos volumes como se procurasse algo.
Através dos espaços livres da estante via-se outra divisão e outras secretárias.
Olhou para a que estava mais próxima.
Separada da sua apenas pela própria estante.
Era a secretária dele.
Isto é, fôra.
Durante os anos em que tinham trabalhado juntos.
Estava lá outra pessoa, mas durante um breve segundo pareceu vê-lo de novo, sentado na cadeira a trabalhar.
Eram incontáveis as vezes que tinham falado através desta mesma estante.
Riu-se com a ideia.
Já nessa altura falavam sem se verem.
Ás vezes falavam durante tardes inteiras enquanto trabalhavam.
Ao retirar outro volume, lembrou-se de algo que a fêz sorrir de novo.
Ás vezes espiavam-se furtivamente através dos espaços livres entre os volumes.
Ela sentia que ele a observava, ás vezes.
Nunca lhe disse nada.
Será que ele se apercebera alguma vêz que também ela o espiava?
Pelo menos sempre fingira que não.
Voltou a colocar o volume no sitio e sentou-se de novo.
Segurou a cabeça com ambas as mãos.
Á sua frente, causalmente pousado na mesa, estava o telemóvel.
Ainda lhe custava a acreditar que fosse verdade.
Que isto estivesse a acontecer.
E mais ainda, que acontecesse tão rápido.
Depois de todos estes anos, que as coisas se precipitassem desta maneira.
Á velocidade da luz.
Á velocidade do raio.
Estava surpreendida com a sua própria coragem.
Tinha conseguido expressar e partilhar, sem qualquer dificuldade, sentimentos que lhe eram muito intimos.
Não tinha procurado qualquer defesa.
Nem subterfúgio.
Não encenara qualquer fuga.
E lutara pelo que queria.
Fosse o que fosse que acontecesse, lutara pelo que queria.
Tomara a iniciativa.
Fôra sincera.
E quebrara o gêlo.
Ninguém lhe podia pedir mais.
Respirou fundo.
Sentiu dentro de si uma sensação agradável.
De coragem.
De auto-estima.
De prazer de sermos nós próprios.
E aquele estranho calôr.
Aquele calôr que parecia ter-lhe invadido a corrente sanguinea.
Chegado a todas as células e a todos os poros.
Afastou com a mão o cabelo avermelhado que lhe pendia sobre a testa.
Porque é que ele demorava tanto a responder?
Estaria surpreendido?
Não, pensou.
Ele saberia que era verdade.
Provávelmente estaria também ele a reviver todas as pistas e sinais que não tinham seguido, todas as fugas encetadas, todos os sentimentos reprimidos.
Foi quando o visor se iluminou.
Um décimo de segundo antes de se ouvir um pequeno toque.
Leu a measagem.
"TAMBÉM EU.
A QUESTÃO É QUANDO ?"
Sorriu.
Nem vestigios de gêlo entre eles.
Podiam avançar.
Olhou casualmente á sua volta.
Para as outras pessoas que ali se encontravam.
Será que alguém conseguia ler-lhe os pensamentos?
17.05 horas.
Tinha vindo tomar café com um amigo.
Dentro de poucos minutos teria nova reunião que ameaçava prolongar-se por horas.
Tocou.
" SABES QUE MUITO SEXO EMEGRACE ? "
Sentiu um tremor de excitação percorrer-lhe o corpo.
Ela dissera a palavra.
Há apenas duas horas atrás despediam-se como amigos.
E agora falavam em sexo.
Não como assunto banal.
Antes, com vontade de o practicar.
E uma vêz mais com aquele seu caracteristico sentido de humor.
"Se fôr para emagrecer, eu faço qualquer coisa."
Cada vêz gostava mais dela.
Era a velha história.
Eu sei que tu sabes que eu sei.
E ela sabia-o bem.
Ele entendia sempre tudo o que ela queria dizer.
E vice-versa.
Por isso dava-se ao luxo de falar em código.
Resolveu responder-lhe igualmente em código.
Riu-se da sua própria resposta ainda antes de a enviar.
" ESTÁS A CHAMAR-ME GORDO OU A PROPÔR-ME UM TRATAMENTO ?"
Pagou o café e voltou para o escritório.
Já devia ter gente á espera.
17.41 horas.
A reunião durava já mais de meia hora.
Tinham combinado entre todos desligar os telemóveis.
Para não serem constantemente interrompidos.
Excepto ele.
Argumentara que esperava uma chamada urgente.
Só atenderia se fosse a chamada que esperava.
Os dois pequenos toques não chamaram a atenção de ninguém na sala.
" PROPÔE-SE TRATAMENTO .
AVISO: EFEITOS SECUNDÁRIOS .
RISCOS DE HABITUAÇÃO E DEPENDÊNCIA ."
Teve que engolir em sêco.
A sua vontade,
todo o seu instinto,
era levantar-se neste preciso instânte,
ir têr com ela,
beijá-la e abraçá-la.
Mas não teve coragem.
Sabia que não era possivel
Não agora.
Hesitou durante alguns segundos.
Depois respondeu.
" DOCE HABITUAÇÃO E DEPENDÊNCIA .
WILL I BECOME A JUNKIE ?"
Ao enviar a mensagem sentiu dentro de si uma sensação de vazio.
Conhecia-a bem, de há alguns anos atrás.
Era a sensação que sentem as pessoas que não realizam os seus desejos.
18.57 horas.
Estava sentada no comboio, a cabeça encostada ao vidro.
Conseguia ver a sua própria imagem, reflectida como num espelho.
Haviam passado já várias horas sobre o almoço.
Outras tantas sobre o jarro de sangria.
E aquela estranha sensação continuava.
Uma sensação que a inebriava,
que a confundia,
que não a deixava pensar.
Normalmente era ponderada, inteligente e calculista.
Mas hoje não.
Apenas agia.
E reagia.
Tinha as emoções á flôr da pele.
Era guiada pelos sentimentos.
Movida pelo instinto.
Sentia-se eléctrica.
Sentia-se desejada.
Sentia-se mulher.
Sentia-se capaz de conquistar o Mundo.
De conquistar um homem.
Levá-lo para a cama.
Um homem a quem já não via há vários meses.
Com quem almoçara hoje.
Bebera sangria.
Um amigo.
O seu melhor amigo.
E isso parecia excitá-la ainda mais.
Talvêz porque há desejos que não devem ser contidos.
Normas que devem ser quebradas.
Medos que só existem se nós escolhermos ter medo deles.
Hoje, algo a libertara de tudo isso.
Hoje, escolhera não ter medo.
Sentia-se livre.
Solta.
E excitada.
Em todos os sentidos.
Uma excitação dificil de defenir.
Da cabeça aos pés,
tudo estava em ebulição.
Começando pelas pernas.
Passando pelos genitais.
Pelo ventre.
Pelos seios.
Pelo pescoço.
Pelos lábios.
Pelo cérebro, abrigo de todas as fantasias.
Olhou de novo para o reflexo no vidro.
E viu a imagem de uma mulher sensual.
Sem qualquer receio de exprimir a sua sensualidade.
As suas fantasias.
O seu desejo.
Não sabia era o que teria provocado toda esta revolução.
Não fôra o almoço.
Nem fôra a sangria.
Fôra talvez aquele estranho sonho que tinha tido?
De um relâmpago que surgira do nada?
Que viera rasgando o céu?
Em plena tarde de sol?
Nesta altura estava capaz de acreditar em tudo.
A imagem dele voltou a cruzar-lhe o pensamento.
"Doce habituação e dependência"
Sorriu.
Era o preço a pagar pela cumplicidade ao longo de todos estes anos.
Sabia tocar-lhe as cordas certas.
Fazê-la vibrar.
Pegou no telemóvel e enviou uma mensagem:
" NÃO TENS NADA MELHOR PARA FAZER DO QUE PROVOCAR-ME ,
EM PLENO ESTADO SEMI-ALCOÓLICO ,
E INERENTES CONSEQUÊNCIAS ?"
Nem dois minutos se passaram até chegar a resposta.
" NADA .
VÊ-SE MELHOR ATRAVÉS DAS BRUMAS DO ÁLCOOL .
LIBERTA O ESPIRITO.
QUE CONSEQUÊNCIAS ?"
Voltou a olhar de novo para o espelho.
Por um breve instante não estava sozinha.
Por um breve instante alguém estava com ela.
Por um breve instante a sombra de um homem curvou-se sobre ela.
E por um breve instante o câlor de um beijo aqueceu-lhe o rosto.
E aqueceu-lhe o coração.
E aqueceu-lhe a Alma.
19.43 horas.
Ele conduzia em direcção a casa.
O dia fôra longo.
E conflituoso.
Conflituoso na medida em que não fôra homogéneo.
Atravessara já hoje várias sensações.
Começara pelo convivio.
Pela alegria e cúmplicidade.
Passara a descoberta e desejo.
Depois acalmia.
Curta.
E enganadora.
E depois em escalada.
Sucessiva e avassaladora.
O câlor.
Aquele câlor, intenso e crescente.
A tensão. A espera.
A antecipação. A resposta.
O jogo.
As emoções, soltas e desabridas.
A ternura.
O carinho.
O desejo, de novo.
Ao contrário do que seria natural, não se sentia cansado.
Todo o seu corpo irradiava, antes, energia.
Os seus sentidos estavam em alerta máximo
Toda a tarde estivera em estado de tensão e ansiedade.
Não conseguia relaxar.
Nem desviar a atenção por um segundo.
Estava envolvido.
E o que parecia envolvê-lo, parecia obsecá-lo.
Possui-lo totalmente.
Virá-lo do avesso.
Como numa quase alucinação.
Pensava nisso quando o telemóvel apitou.
Leu ávidamente a mensagem.
Não tinha ainda chegado ao fim quando um suor frio lhe invadiu o corpo.
Sentiu o coração parar de bater durante um breve segundo.
Durante esse segundo sentiu que não tinha um controle completo sobre si próprio e sobre o veiculo.
Imagens difusas cruzaram-lhe o cérebro.
E estacionou lentamente na berma da estrada.
Esperou uns segundos antes de reler a mensagem.
" CONSEQUÊNCIAS ?
AS PALAVRAS QUENTE E HÚMIDA DIZEM-TE ALGUMA COISA ?"
O coração que parecia ter parado, batia-lhe agora descompassadamente.
As gotas de suor frio, pareciam agora arder e queimavam-lhe a pele.
A tensão atingia niveis agora insuportáveis.
O calôr transformara-se em febre.
Tudo em si parecia arder.
Estava em chamas.
Sentia-se ele mesmo uma chama.
Um archote humano.
E ela sabia-o.
Sabia que ele se sentiria assim.
Não o fizera apenas para o provocar.
Antes para gozarem o momento.
Deixarem emergir o desejo.
Sem toque.
Nem contacto.
Á distância.
Mas ainda assim quente e intenso.
Ardente e vivo.
Duro e crú.
As chamas pareceram invadir-lhe o cérebro e possuir-lhe a Alma,
e nem um só dos seus sentidos ou percepções estava presente,
quando escreveu, febril, a resposta.
" DIZEM DA NECESSIDADE URGENTE DE MENOS ESPAÇO ENTRE 2 CORPOS .
E A PALAVRA TESÃO DIZ-TE ALGUMA COISA ?"
20.06 horas.
Estava deitada na cama.
O quarto estava em silêncio.
Em semi-obscuridade.
Tentava ordenar as ideias.
E os pensamentos.
Pensar friamente.
Mas não conseguia.
Aquela estranha energia continuava dentro dela.
A sensação de calôr no rosto não abrandava.
Em seguida iria tomar um banho frio.
Podia ser que resultasse.
Embora duvidasse.
Aquilo parecia nascer de dentro dela.
Como um vulcão.
Passou a mão lentamente pelas meias de ligas estendidas na cama.
Não sabia bem porque as tinha retirado da gaveta.
Havia muitos meses que não as usava.
Talvêz anos, mesmo.
Mas agora fizera-o.
Quase inconscientemente.
Ao receber a última mensagem dele, fê-lo.
Lembrou-se delas e foi buscá-las.
Estavam onde se lembrava que estariam.
Debaixo de tudo o resto.
Estendeu-as na cama.
E estendeu-se ao lado delas.
Acariciava-as lentamente com as mãos.
Passava-as por entre os dedos.
Sentiu-lhes uma suavidade quase esquecida.
Uma delicadeza inaudita.
Sabia que em pouco tempo teria que desligar o telemóvel.
Quando muito, teria tempo para enviar uma última mensagem
E mais importante, receber outra.
Depois, teria que esperar pelo dia seguinte.
Não podia perder tempo.
Acordou do marasmo, e digitou a mensagem.
" ESTÁS A DIZER QUE TE ESTOU A EXCITAR ?
DECERTO CONSIGO FAZER MUITO MELHOR AO VIVO E COM LINGERIE PRETA "
Sorriu ao enviá-la.
Pousou o telemóvel na cama e voltou a deitar-se.
Pegou de novo nas meias e levou-as ao rosto.
Inalou profundamente.
Sentiu o cheiro do seu próprio perfume.
Abafado pelo tempo.
Ficou ali um bocado.
A sentir o prazer do seu próprio cheiro.
Foi quando ouviu o apito.
O brilho do ecrâ pareceu iluminar todo o quarto.
Sentou-se de um salto e pegou no telemóvel.
Sentiu o coração voltar a bater rápidamente.
A pulsação descompassada.
" NÃO TENHO DÚVIDAS DISSO .
E O MÉRITO NÃO SERIA DA LINGERIE .
DE RESTO, NÃO A IRIAS USAR POR MUITO TEMPO . "
Sorriu.
E desligou o telemóvel.
Não foi fácil dormir nessa noite.
O cérebro estava demasiado desperto para poder aceitar o repouso.
Reviviam uma e outra vêz as incidências do dia.
Cada palavra.
Cada imagem.
Cada sensação.
Os dois corpos reviraram-se na cama vezes sem conta.
Não conseguiam dormir.
O calôr apertava.
Estavam separados.
E queriam estar juntos.
Ia já alta a noite quando,
vencidos finalmente pelo cansaço,
os pensamentos recolheram a zonas mais recônditas,
cedendo lugar aos sonhos,
e permitindo que os dois corpos exaustos repousassem enfim.
The day after.
Acordara practicamente com uma mensagem dela.
Decerto a primeira coisa que fizera de manhâ.
Fôra enviada ás 6.00 horas.
Um horário inimaginável para ele.
Respondeu-lhe de imediato.
Ainda antes do banho e do pequeno almoço.
E assim continuaram ao longo do dia.
Era já de tarde.
Ela estava mais triste hoje.
Qualquer coisa relacionada com o trabalho.
Enviara-lhe uma mensagem melancólica a dizer-lhe isso mesmo.
Ele perguntara se podia ajudar em alguma coisa.
Ela respondeu que sim.
Foi quando surgiu o convite.
" VENS TOMAR UM CAFÉ COMIGO ?"
Ele não respondeu logo.
Hesitou.
Não porque não quisesse.
Sabia que este momento viria.
Era inevitável.
E ansiava por ele.
Mas faltava-lhe coragem para o enfrentar.
E para a enfrentar a ela.
Não sabia bem como é que iam reagir.
Isto é, depois do que tinham dito.
E sentido.
Pensou nisso durante muito tempo.
Mas depois concluiu que não valia a pena pensar mais.
O que teria que acontecer, aconteceria.
Fosse o que fosse.
A vida é como um rio.
Não adianta criar-lhe diques.
Se a deixarmos fluir ela levar-nos-á sempre a algum lugar.
E dar-nos-á o que estiver reservado para nós.
Escreveu por isso as exactas palavras que lhe ocorreram ao pensamento,
no preciso instante em que lêra as dela.
" SE TENS CORAGEM DE ME OLHAR NOS OLHOS ,
EU TAMBÉM VOU TÊR CORAGEM DE TE OLHAR A TI .
COMBINADO . "
Estacionou em frente ao emprego dela.
Dentro de um minuto ela estaria ali.
Veria o carro dele e desceria.
E então olhar-se-iam.
Desta vêz de uma maneira diferente.
Continuava sem saber o que se iria seguir.
Mas tinha resolvido seguir a corrente.
Deixar-se levar pela levada.
Sentir-se um junco.
Ao sabor da água.
Tinha largado da nascente.
Ultrapassado já o meio do rio.
Sentia-se chegar á foz.
Desembocar no delta.
Mal podia esperar para ver estender-se diante de si,
numa imensidão infinita,
sem principio nem fim,
o vasto azul do oceano.
Ela aproximou-se da janela e viu o carro.
Respirou fundo, enchendo o peito de ar.
Nunca pensou que chegasse tão depressa.
E por outro lada parecia-lhe que nunca mais chegava.
Tinha-lhe ligado após a última mensagem.
A primeira vêz que ouviam a voz um do outro.
Isto é, depois do almoço de ontem.
Há pouco mais de 24 horas.
Tinham dito tudo o que tinham dito, sem trocarem uma única palavra.
Talvêz por isso lhes soara tão estranha a voz do outro ao telefone.
"-Estás muito longe?"
"-Nem por isso."
"-E vais demorar?"
"-Vou a caminho."
Não disserem mais nada.
E agora chegara.
Chegara também o momento de olharem um para o outro.
De se olharem nos olhos.
Sem fingimentos.
Sem máscaras.
Pegou na carteira e guardou o telemóvel.
Inconscientemente passou a mão pelo cabelo para conferir o penteado.
Afastou as madeixas que lhe caiam sobre a face.
Sentiu-se pronta.
Respirou de novo profundamente.
Encheu de novo o peito de ar.
Dentro de si, sentia ainda parte daquela estranha energia de ontem.
Sentiu-se forte.
Estava pronta.
"-Queres ir a algum lugar em especial?"
Ela sorriu.
Esta pergunta era normalmente desnecessária.
Iam sempre ao mesmo sitio.
Agora, já sabia que hoje não iriam lá.
"-Vamos a um sitio qualquer."
Ele sorriu.
Também ela não queria ir lá.
Queriam estar sozinhos.
Onde não fossem conhecidos.
"-Então vamos tomar café á beira-mar."
Guiou rápidamente em diracção á praia.
Estiveram em silêncio.
Olhavam para a frente.
Foi ele que quebrou o silêncio.
"-Não sabia se ia ter coragem de olhar para ti, sabes?"
Riram-se os dois.
"-Eu também não."- disse ela -"Senti que ia morrer de vergonha."
"-Nunca tinha feito isto antes."- continuou ele -"Sabes, ...aquilo de ontem.
Nunca me tinha acontecido isto.
Passei uma tarde absolutamente febril.
Só conseguia pensar em ti."
"-Eu sei. Senti o mesmo. Não me saias da cabeça."
Entretanto chegaram á praia.
Ele estacionou.
Á sua frente e sobre a praia, uma pequena estrutura.
De madeira, formando uma esplanada.
Estava um lindo dia de sol.
Ficaram em silêncio durante uns segundos.
Ele sentiu-se desconfortável.
Tinha coisas dentro de si para dizer e revelar.
Não tinha coragem.
Sentia que devia tomar uma iniciativa.
Não conseguia.
Então escolheu o caminho mais fácil e esboçou um caminho de fuga.
"-Vamos?"- perguntou ele.
"-Vamos."- respondeu ela.
Ele desligou o carro.
Ela pousou a carteira no chão.
Ele pegou no telemóvel.
Ela retirou o cinto de segurança.
Ele estendeu o braço para a porta.
Ela inclinou-se para ele.
Beijou-o.
Ardentemente.
Num impeto.
Ficou tão surpreendido que não lhe respondeu logo.
Demorou uns segundos a aperceber-se.
Depois beijou-a também.
Ardentemente.
Finalmente, o beijo.
Tão doce, como qualquer primeiro beijo.
Mais doce ainda pela espera que o precedeu.
Não sabem exactamente quanto tempo se beijaram.
Beijaram-se o suficiente para libertar toda a energia de um relampago.
O suficiente para esvaziar um jarro de sangria.
Para apagar o fogo.
Olharam-se finalmente nos olhos.
Já conseguiam olhar abertamente um para o outro.
Ela sorriu.
"-Agora, já podemos ir tomar café."
Ele riu-se.
Depois acariciou-a na face.
"-Ainda bem que és mais corajosa do que eu."- disse ele -"Eu não ia conseguir."
"-Eu sei."- riu-se ela.
Sairam do carro e foram para a esplanada.
Então falaram longamente.
Falaram longamente em poucos minutos.
Porque não é preciso muito tempo para dizer o que é importante.
E disseram-no.
Compreenderam-se.
Entenderam-se.
Não conseguiam olhar um para o outro sem sorrirem.
Sem se tocarem.
Sem trocarem olhares cúmplices.
Como crianças que partilhassem uma brincadeira proibida.
Um jogo secreto.
Ele olhou para ela uma outra vêz.
Resplandecia ao sol,
por sob a sua cabeleira avermelhada.
Deixou o olhar deslizar preguiçosamente pelo branco areal da praia.
Á sua frente,
meio testemunha, meio cúmplice,
espreguiçando-se indulgente na sua imensidão infinita,
sem principio nem fim,
estendia-se o vasto azul do oceano.
Era o Dia de S. Valentim
Ele enviara-lhe uma mensagem á noite para ela só a lêr de manhâ.
"O QUE QUERES PARA O DIA DOS NAMORADOS?
SEXO OU DOCES ?"
Quando ele acordou de manhâ já tinha a resposta.
A única possivel.
"A QUE TIVER MENOS CALORIAS."
Foi num dia em que não almoçaram.
Foi num dia em que se escaparam.
Foi num dia em que se isolaram.
Foi quando se beijaram.
Foi quando se abraçaram.
Foi quando ele a despiu a ela.
Foi quando ela o despiu a ele.
Foi quando ele descobriu que ela usava meias de ligas pretas.
Foi quando lhes sentiu a suavidade.
De uma delicadesa inaudita.
Foi quando se debruçou sobre ela.
Foi quando ela rodou sobre ele.
Foi quando disseram coisas sem pensar.
Foi quando se tocaram.
Foi quando fizeram amor.
E foi quando se amaram.
Era sábado de manhã.
Ia começar a parte mais penosa da semana, os dias em que não podiam estar juntos.
Ela tomava o pequeno almoço numa confeitaria.
O miúdo rodopiava em alta velocidade entre a mesa e o balcão, e do balcão para todas as outras mesas.
Ela seguia-o atentamente com os olhos, nunca o perdendo de vista.
Tinha há muito desistido de o mantêr quieto, optando por o controlar á distância.
Quando a sua mãe lhe dizia que ser mãe era uma ocupação a tempo inteiro ela não se acreditava.
Mas agora sabia que era verdade.
Lembrou-se dele e apeteceu-lhe ligar-lhe.
Mas decerto ainda estaria a dormir.
Pensou no pouco tempo que ainda tinham para estar juntos.
A vida por vezes consegue ser madrasta.
A viagem, aquela viagem por que tanto tempo ansiara,
pela qual tanto lutara,
e na qual depositara tantas das suas esperanças,
dos seus sonhos,
que tão cuidadosamente planeara para que nada pudesse falhar,
que era a sua estrada para a liberdade,
para a independência,
para um recomeço de vida,
e até talvêz para alguma felicidade,
era agora para si uma fonte de sofrimento.
A simples lembrança da sua proximidade angustiava-a.
Como é que alguém poderia adivinhar que as coisas se passariam desta maneira?
Sabia por experiência que a vida não era justa.
Mas desta vêz tinha conseguido ser cruel.
O miúdo aproximou-se, correndo.
"-Mamâ, quero um chupa! " -exclamou com voz melosa.
Ela sorriu, e ajeitou-lhe o chapéu na cabeça.
"-Pede ao senhor do balcão que a mamâ dá."
Tornou a virar costas e saiu disparado para o balcão.
Ela ficou a observá-lo, orgulhosa.
Recordou-se duma conversa tida alguns anos atrás.
Numa outra confeitaria.
Muito longe dali.
Uma das muitas que tinham tido.
Ela contava-lhe que planeava ter um filho.
Ele sorriu-lhe condescendentemente.
Ambos sabiam que ela não era feliz.
Nunca o fôra.
"-Isso não te vai adiantar nada, sabes?"
"-O quê?"
"-Teres um filho. Um filho nunca conserta um casamento.
Quando muito é capaz de o aguentar mais um par de anos, mas nunca resolve nada."
Ela olhou-o nos olhos.
"-Eu sei." -disse.
Sabia que ele tinha razão.
E sabia que estava a ser absolutamente sincero.
No fundo ela pensava o mesmo.
Como aliás se veio a comprovar.
Mas também sabia que tinha que tentar.
Arriscar o tudo por tudo.
E agora sabia também que o seu filho era a melhor coisa que tinha na vida.
Era o que lhe dava ânimo.
O que ainda lhe dava forças.
.
Sábado.
Era o principio da tarde.
Estava numa esplanada.
Como sempre tomava o pequeno almoço tarde.
Apetecia-lhe ligar-lhe, mas não sabia se ela estaria sozinha.
Era incrivel como o tempo se tinha passado rápidamente.
Parecia que apenas ontem se tinham conhecido.
Corria já há algum tempo a noticia de que uma colega nova estaria prestes a chegar.
Sabiam apenas que era recém-casada e estava em lua-de-mel.
Deixara o emprego anterior para vir trabalhar na mesma cidade do marido.
Mas nunca esperara que se viessem a dar tão bem e tão rápidamente.
Tinham havido algumas pequenas zangas e afastamentos, que ele próprio não conseguia entender o porquê.
Mas norma geral eram amigos inseparáveis.
Pelo menos para isso se esforçavam.
O que nem sempre era fácil.
Mesmo que nenhum quisesse admiti-lo houvera sempre algo suspenso no ar.
Á espera de uma oportunidade para se revelar.
E essa oportunidade poderia até nunca ter surgido se não fosse aquele telefonema de um antigo colega.
Convidara-o para um café e no meio da conversa deixara escapar que ela tinha anunciado que iria voltar ao seu antigo emprego e á sua antiga cidade.
Ele não acreditara ao inicio.
Se assim fôsse decerto ter-lhe-ia dito alguma coisa.
Porquê uma mudança tão radical?
Há meses que não se viam e sentiu saudades dela.
Da maneira como se riam juntos.
Telefonou-lhe quase de imediato.
"-Não acredito que te vás embora e não te despeças dos amigos."
Ela reconheceu-o imediatamente.
"-Achas que eu me ia embora sem me despedir?" -riu-se ela.
"-E estavas á espera de quando para me avisar? Se bem me lembro ainda te devo um almoço."
"-Não te preocupes que eu não me esqueci. E aliás só me vou embora daqui a três meses."
"-Então está bem. Queres ir almoçar amanhâ? Pômos a conversa em dia. Deves têr muitas coisas para contar."
"-Está combinado. Almoçamos amanhâ. E olha, tenta não te atrasar."
"-Prometo." -mentiu ele.
Ela fingiu que acreditou.
E foram almoçar.
E foi a oportunidade que o Destino precisava.
Depois do que lutaram para negar a atracção que existia entre eles, foram apanhados com a guarda em baixo.
Quando julgaram que a guerra já estava definitivamente ganha, foram vencidos.
E renderam-se finalmente um ao outro.
Parecia-lhe agora absurdo todo o esforço que tinham feito para fugir de algo que era evidentemente inevitável.
Esforçavam-se árduamente para não serem felizes.
Ocorriam-lhe especialmente as imagens do último encontro que tinham tido como colegas.
Era o último dia de trabalho dele naquela empresa.
Sentia um misto de alegria e de tristeza.
Alegria pela vida nova que se estendia á sua frente.
Tristeza pelo ciclo que se fechava e por tudo o que deixava para trás.
Ele levara-a ao comboio.
Mas antes pararam para lanchar.
Fôra a última vez que beberam sangria antes deste último almoço.
Nenhum deles estava obviamente muito bem.
"-Tens a certeza que fazes bem em ir-te embora? Aqui pelo menos o teu lugar é seguro." -disse ela.
"-Eu também vou ter saudades tuas." - retorquiu ele rindo-se. E depois mais a sério -"Mas tenho que ir. Até agora tenho-me aguentado. Gosto do que faço e das pessoas e tenho ficado. Mas agora com o casamento tenho que ganhar mais dinheiro e esta é a altura ideal para mudar."
Ela ficou em silêncio uns segundos.
"-Ainda não acredito que vais casar."
"-Então porquê?"
"-Não sei, acho que simplesmente não te consigo imaginar casado."
"- ...com outra." - completou dentro do seu próprio pensamento.
Sentia já dentro de si o calôr do álcool.
Sentia-o no corpo e sentia-o na alma.
"-E não é só isso." -arriscou-se a dizer.
"-Então?"
"-Nós damo-nos tão bem... !
Nunca encontrei ninguém com quem me desse tão bem.
Sabes que ás vezes penso que se nos tivessemos conhecido há mais tempo, provávelmente tinhamos casado um com o outro?"
Ele riu-se.
Um riso triste.
"-Tu já vieste para mim casada ..." -respondeu lacónicamente -"...Uma semana antes de nos conhecermos. "
Ela tocou-lhe ao de leve na mão.
"-Pois foi...mas se eu não tivesse casado nós nunca nos tinhamos conhecido, não é?"
Foi a vêz dele ficar em silêncio.
Uma célebre frase biblica cruzou-lhe o pensamento.
"Insondáveis são os designios do Senhor."
Ela estava sentada em cima dele.
As pernas dobradas sobre os joelhos.
As mãos apoiadas no peito dele.
Ambos os corpos estavam suados.
Respiravam ainda com dificuldade.
O ritmo do coração acelerado.
Ele conseguia ver-lhe o rosto.
Estava rosada.
Cansada.
Mas feliz.
Inclinou-se para ele e beijou-o docemente na boca.
"-Adoro-te."
"-Eu também te adoro."
Quando ela se mexeu ele sentiu o seu sexo acompanhar o movimento dentro dela.
Ela não queria largá-lo.
Ele também não queria sair.
"-Não penses que escapas." -disse ela.
"-E quem é que quer escapar?" -disse ele.
"-Quero ficar assim toda a vida."
"-E comer e beber?"
"-Mandamos trazer ao quarto."
"-Eu não estou em posição de usar talheres."
"-Eu levo-te a comida á boca."
"-E como é que abrimos a porta á empregada?"
"-Com muita entreajuda..."
Ele desatou a rir.
Ela estava incrivelmente bela.
Estendeu o braço até ao rosto dela e afastou com os dedos o último residuo de lágrimas junto aos olhos.
Logo a seguir ao orgasmo chorara.
A cara irradiava felicidade, mas os olhos choravam.
Puxou-a de novo para si e beijou-a nos olhos, docemente, sentindo as pálpebras ainda húmidas.
De novo a estranha sensação do seu sexo acompanhar o movimento dela.
Ela olhou para ele e de novo uma lágrima lhe escorreu pela face.
"-Então...?" -disse ele.
"-Desculpa." -desculpou-se ela.
"-Desculpa por quê, bela?"
Ele sabia por que é que ela chorava.
"-Eu choro de alegria." -disse ela.
"-É só isso?"
"-De alguma tristeza também.
Nós temos tão pouco tempo para estarmos juntos.
Agora que nos encontramos vamos ter que nos separar."
"-Não chores. E não vale a pena estares a pensar nisso.
Vamos aproveitar todo o tempo que temos para estar juntos.
Viver um dia de cada vêz."
Ela inclinou-se de novo sobre ele e beijou-o repetidas vezes, na boca e nas faces.
"-Tu não imaginas o que eu gosto de ti. Eu..."
Ele levantou o indicador e pousou-o sobre os lábios dela.
"-Shhhuuii!" - disse -"Não vale a pena estarmos a usar palavras muito complicadas.
Nem a pôr-mos rótulos nisto.
Vamos só dizer que gostamos muito um do outro."
"-Muito, muito, muito, ..." - riu-se ela.
Ele não pretendia desencorajá-la.
Mas sabia que havia sofrimento a enfrentar mais adiante.
Muito em breve.
E queria prepará-la para isso.
Ajudá-la a lidar com a situação o melhor possivel.
O que acontecera entre eles fôra muito forte.
A entrega fôra total.
Mas temia por ela.
Ela era forte, muito forte.
Mas seria suficentemente forte?
Independentemente de toda a sua inteligência e racionalismo, estaria ela em condições, carente como estava e depois de tudo aquilo por que tinha passado, de se reerguer e ter forças para continuar?
Claro que em breve teria o apoio de toda a sua familia.
Mas, aqui e agora, só ele a podia ajudar.
Mas, pensou, talvêz a melhor maneira não seja tentar controlar os sentimentos e as emoções.
Tentar mantê-las a niveis aceitáveis e dentro do controle.
Isso seria adulterar a a sua Pureza e só podia trazer-lhes insatisfação e frustração.
E ia contra tudo o que ele acreditava.
Decidiu então deixar correr livremente as emoções.
E entregar-se completamente.
"-Eu sei porque choras."
"-Claro que sabes. Eu já te disse."
"-Não. Eu sei mesmo porque choras."
Ela não disse nada.
Limitou-se a sorrir.
Mexeu ligeiramente o corpo.
Sentiu de novo o seu sexo acompanhá-la.
"-Sim?"
"-Não adianta negarmos os nossos próprios sentimentos.
Só enfrentando-os e trazendo-os á luz do dia é que podemos superá-los.
Tu não choras só de tristeza e alegria.
Choras de incerteza, choras de frustração, choras de desperdicio.
Choras pela sensação de querer e não poder,
de perder antes de ter.
Choras pela ironia de nos conhecermos só na hora da despedida."
Ela não disse nada.
Limitou-se a menear ligeiramente a cabeça.
Os seus cabelos, que quase lhe tapavam o rosto, acompanharam graciosamente o movimento.
Ele afastou-os com a mão.
Outra pequena lágrima aflorava já.
Limpou-lhe os olhos com o dedo.
"-Se pensares bem não temos razão nenhuma para chorar.
Costumamos chorar quando perdemos algo.
Mas nós não perdemos nada.
Apenas acrescentamos algo.
Lembra-te sempre de uma das mais importantes leis da Fisica :
"Na Natureza nada se perde, nada se desperdiça.
Tudo se modifica."
Aquilo que se passou entre nós nunca se perderá.
As sensações não se diluem, pura e simplesmente.
Elas sobrevivem.
Ninguém te pode roubar o que tu já viveste.
Mesmo que nós não as consigamos vêr de momento, elas estarão sempre algures, em uma outra forma, á espera que nós as encontremos de novo."
Ela esboçou um pequeno sorriso.
"-... encontremos de novo? Isso quer dizer que nos vamos continuar a ver, não quer?"
"-Acho que sim."
"-Achas ou tens a certeza?"
"-Tenho a certeza."
"-E como é que vamos fazer? Vais lá tu ou venho cá eu?"
Ele riu-se alto e beijou-a nos lábios.
A resposta saiu imediata.
"-Amanhã veremos."
Era um fim de tarde.
Estava a preparar-se para se ir embora.
Como sempre fazia antes de sair, tinha acabado de aceder á Internet.
Procurou no servidor por novos e-mail’s.
Houve um que lhe chamou imediatamente a atenção.
Enviado do seu antigo emprego.
Em ficheiro confidencial.
Nesse instante o seu telemóvel tocou e recebeu uma mensagem escrita.
Era dela.
A mensagem constava apenas de três letras soltas.
Não conseguiu evitar um sorriso.
Digitou as letras no computador e o ficheiro abriu-se imediatamente.
Começou a lê-lo, descontraidamente ao inicio.
Mas depois as palavras calaram fundo dentro de si e não conseguiu continuar.
Teve que recomeçar desde o inicio.
E quando acabou leu-o outra e outra vêz até o interiorizar e quase o saber de cor.
Era a outra realidade.
A realidade dela.
A mesma verdade sentida por outro coração.
O reflexo para lá do espelho.
Como se o espelho se reflectisse em nós, e não nós nele.
"Conheço-te desde sempre.
Ou pelo menos desde o século passado.
Arrisco a dizer que éramos amigos.
Passávamos o dia inteiro juntos.
Fazias-me rir.
Pegavas-me ao colo para eu perceber que não era gorda.
Obrigavas-me a comer cheesechake e bolo de bolacha.
Íamos às compras.
Algumas vezes zangaste-te comigo.
Não me falavas.
Eu sofria imenso com isso.
Depois passava e continuava-mos amigos como dantes.
Um dia achei que essa cumplicidade toda era perigosa.
Achei que era uma questão de tempo, antes que acontecesse alguma coisa.
Afastei-me de ti.
Sei que te magoei.
Deixaste de falar comigo.
Custou-me imenso.
Casaste-te.
Toda a gente ficou super contente.
Menos eu.
Odiei a ideia. Não percebi bem porquê.
Foram todos ao casamento, menos eu.
Fiz birra. Inventei uma desculpa qualquer que não convenceu ninguém.
Nem a mim própria.
Vi-te poucas vezes depois disso.
Não senti muito a tua falta.
Achei que devias estar muito feliz.
Um dia soube que estavas a divorciar-te.
Por um lado fiquei com pena.
Achei que devias estar a sofrer imenso com isso.
Não queria que sofresses, não mereces.
Por outro, fiquei contente.
Desculpa a sinceridade.
Não sei porquê, mas fiquei contente.
Há pouco tempo pediste-me para te dactilografar uns textos.
Uma frase que me chateou à brava.
"...E fizeram amor como se não houvesse amanhã..."
Não me apeteceu ler o resto.
Odiei aquela mulher.
Não sei bem porquê.
Convidaste-me para almoçar.
Já tínhamos almoçado juntos milhares de vezes.
Fiquei contente. Vesti uma saia!
Não sei bem porquê.
O almoço correu bem.
Bebemos Sangria.
Bebemos Sangria a mais.
Falámos imenso, como sempre.
Rimos imenso, como sempre.
Atendeste um telefonema.
Mandaste um beijo a alguém.
Não gostei nada. Não sei bem porquê.
Despedimo-nos. Com dois beijos. Como sempre.
Tive vontade de te beijar.
Beijar a sério.
Tive vontade de te abraçar.
Não sei bem porquê.
Devia ser da Sangria.
Lavei a cara com água fria.
Não adiantou nada.
Continuei com aquela sensação estranha.
Tive vontade de fazer amor contigo.
Era definitivamente por causa da Sangria.
Fiz uma nota: Nunca mais beber Sangria.
Enviei-te uma mensagem.
Por impulso. Nem pensei no assunto.
"Achas que a sangria é afrodisiaca?"
Não pensei que fosses responder.
Quanto muito, achei que ias brincar com o assunto.
Respondeste.
"Hoje tenho a certeza que sim. "
Corei. Suei. Lavei outra vez a cara. Água fria.
Enviei-te outra mensagem.
Respondeste novamente.
Quis parar. Ignorar-te.
Não consegui. Maldita Sangria!
Estive todo o dia à espera das tuas mensagens.
De cada vez que respondias, sabia que não havia retorno.
Estava a acontecer qualquer coisa.
Não dormi nada.
Resolvi não escrever-te mais.
Pura e simplesmente ignorar-te.
Já tinha passado o efeito do álcool.
Não consegui.
Marcámos um encontro. Café.
Pensei que não conseguisse olhar para ti.
Quanto mais falar contigo.
Estávamos nervosos. Via-se ao longe.
Aquela mesma sensação.
Vontade de te beijar.
Beijei-te.
Não pensei ter coragem para o fazer.
Tive receio que me dissesses que não.
Que parasse com aquela parvoice toda.
Não o fizeste.
Beijaste-me.
Adorei.
Não senti culpa nenhuma.
Já passaram quase dois meses.
Vêmo-nos quase todos os dias.
Sei que fazes enorme esforço para poder estar comigo todos os dias.
Marcas reuniões à hora do almoço.
Desmarcas reuniões.
Continuamos amigos. Mais íntimos, agora.
Continuas a fazer-me rir.
Sei que não é só uma questão de sexo.
Ou atracção física.
Tratas-me melhor que ninguém.
Fizeste amor comigo numa suite com piscina e sauna.
Casal Garcia e morangos.
Podias ter-me levado a um mísero quarto de hotel.
Não o fizeste. Achaste que merecia melhor.
Apaixonei-me por ti nesse dia.
A primeira coisa que faço de manhã é ler as tuas mensagens.
Passo o dia todo à espera que me escrevas.
Passo o dia todo à espera do tempo que passamos juntos.
O simples toque das tuas mãos na minha pele faz-me gemer de prazer.
Há imenso tempo que não sentia nada disso.
Constipei-me. Compraste-me xarope para a tosse. Apaixonei-me por ti outra vez.
Tenho ciúmes de todas as mulheres que já amaste.
Sei que é completamente irracional. Mas odeio-as, a todas.
Não suporto a ideia de fazeres amor com outras mulheres.
Prefiro não pensar no assunto.
E agora?
Alguém disse que "a amizade não depende de coisas como o espaço e o tempo. "
Custa-me saber que não te vou ver todos os dias.
Tento não pensar nisso.
Dói-me, pensar nisso.
Sinto qualquer coisa a sufocar-me. Custa-me respirar. Tenho vontade de chorar.
Nunca chorei à frente de nenhum homem.
Revejo os meus planos futuros e defino prioridades. Não posso voltar atrás.
Devo-o a mim própria.
Tento não ser egoísta.
Sei que não me deves qualquer espécie de fidelidade afectiva.
És jovem, bonito, inteligente e, especialmente, muito livre.
Eu não.
Não posso nem devo dizer para esperares por mim.
Não vamos ser amantes eternos!
Ambos sabemos que é só uma questão de tempo até se resolver o assunto.
Quando isso acontecer, vais ser a primeira pessoa que vou procurar.
Até lá, espero que não encontres a mulher da tua vida.
Se encontrares, prefiro não saber.
Mas desejo, do fundo do coração, que sejas feliz.
Entretanto estás convocado para uma reunião a dois.
Semana que vem.
Vamos fazer amor. Como se não houvesse amanhã. "
O caderno estava aberto á sua frente.
Segurava a caneta na mão.
A folha estava ainda em branco.
Ideias várias e contraditórias passeavam pelo seu cérebro.
Um turbilhão de pensamentos pareciam cruzar-se e chocar entre si.
Não havia ordem possivel.
Não havia qualquer raciocinio.
Nenhum método.
A mente estava bloqueada.
Completamente confusa.
Incapaz sequer de traçar uma linha coerente de pensamento.
Respirou fundo.
Tentou dispersar todas as ideias, concentrando-se apenas na sua respiração.
Ficou assim durante um minuto.
Pareceu resultar, uma vêz que a sua mente se desanuviou lentamente.
Tinha que vir do coração, pensou.
Não adiantava tentar racionalizar.
Tinha que tentar ouvir a voz do seu coração.
E para isso só havia uma solução.
Pegar na caneta e escrever.
Escrever para a frente e não pensar.
Ao ritmo da sua pulsação.
Ao sabor da pena.
A caneta começou a navegar sobre o papel.
Leve e solta.
Ágil e nervosa.
Como se o seu coração estivesse directamente ligado á sua mão.
E esse fosse um circuito independente ao resto do seu corpo.
Independente a si próprio.
E ele apenas assistisse como espectador ao desfiar dos seus próprios sentimentos.
Aquela sensação maravilhosa em que deixamos de existir e em que o coração nos invade e nos inunda em toda a sua plenitude e emoção e o nosso braço não passa de um apêndice ou de um implante que não controlamos minimamente e que obedeçe apenas a impulsos que apreendemos como externos e que no fundo não podiam nunca ser mais internos.
E em que a Verdade flui com a naturalidade da respiração.
"Isto não é uma carta.
Nunca foi minha intenção escrevê-la.
E muito menos enviar-ta.
É um diálogo comigo mesmo.
É talvêz a única maneira de fazer para mim próprio alguma luz sobre este assunto.
Nunca tenho que te dizer nada.
Sei que tu consegues sempre saber aquilo que eu sinto e penso.
Não me perguntes como, mas sei que o consegues.
E é exactamente isso que eu quero agora, mostrar-te o que eu sinto.
Mas em mim reina a confusão.
São tantas as ideias que se degladiam que não consigo vêr para lá da poeira que elas levantam.
Como se várias forças me puxassem em diferentes direcções e ainda assim eu não me mexesse um milimetro.
Não consigo dar um passo ou tomar uma decisão.
São tão densas as percepções que todas juntas se assemelham ao vazio.
Sinto ar dentro de mim.
Não se extingue nem se expande.
Antes fica na mesma.
E é por isso que hoje em vêz de olhar com os olhos da mente vou antes tentar olhar com os olhos do coração.
Para me tentar entender a mim mesmo.
E para to poder mostrar.
Porque sei que depois de eu próprio saber o que sinto, tu também o saberás.
Em primeiro lugar é importante que saibas que tomaste a única decisão que podias tomar.
Como tu própria o disseste devia-lo a ti própria.
É o teu Caminho e tens que o seguir.
Ninguém o pode percorrer por ti.
Tudo o resto é secundário.
Incluindo eu.
Eu não te peço nada.
Nunca te pediria nada.
Não quero que faças nada por mim.
Nem era justo sequer da minha parte pedir-te alguma coisa.
Nunca devemos fazer nada pelos outros.
Não neste campo.
Ou não é o egoismo uma forma de auto-estima?
O que quer que faças fá-lo por ti.
Por ti, apenas.
Não suportaria nunca que pudesses olhar para mim um dia com dúvidas dentro de ti.
Com mágoa ou com arrependimento.
Com remorsos no teu olhar.
Não quero dentro de mim o peso do teu remorso.
Não posso nunca aceitar essa responsabilidade.
Tu é que traças o teu próprio Destino.
De ti.
Por ti.
E para ti.
Tens na tua mão a tua Vida.
As tuas escolhas.
As tuas decisões.
Caminha o teu Caminho.
E o Caminho que traçares para ti pode até um dia vir a cruzar-se com o meu , quem sabe...
Cruzar-se, mas com a naturalidade das coisas simples.
Nunca apoiar-se.
Nem fazer depender disso qualquer escolha ou decisão.
Porque a dependência é o pior veneno que pode infestar uma relação.
Agora e para sempre estariamos sempre amarrados a esta situação.
Eu seria o homem pelo qual tu largaras tudo o que tinhas.
Tu serias a mulher pela qual eu arriscara uma vêz mais sair dentro de mim próprio e dividir-me com alguém.
Estariamos obrigados a ter sucesso.
Obrigados pelo peso da escolha.
Pela responsabilidade da decisão.
Nossa e do outro.
E por tudo o que deixáramos para trás.
Que trocaramos para têr esta relação.
Mas o sucesso não pode nunca ser imposto.
O Amor não pode nunca ser uma obrigação.
Ele constrói-se por si próprio.
Naturalmente e sem pressões.
Também não podemos construir uma casa sobre as fundações de outra que foi demolida.
Teriamos que recomeçar tudo de novo.
Destruirmos completamente as bases em que assentamos esta relação.
Voltarmos a ser amigos.
Conhecermo-nos de novo.
Descobrirmo-nos de novo.
Apaixonarmo-nos de novo.
E então começarmos a namorar."
Parou de escrever por um momento.
Era como se a cada palavra que escrevia, a cada frase que conseguia articular, sentisse a cabeça mais leve e a mente cada vez mais Clara e mais Luminosa.
Como se o Verbo funcionasse como terapia.
E como se cada pensamento que passava ao papel fosse imediatamente entendido e apreendido pela mente dela.
Mas a cada ideia que conseguia transpôr logo outra surgia em catadupa.
Como a uma barragem a quem abrissem as comportas, e toda a água da albufeira se precipitasse para poder participar em primeiro lugar da viagem mágica e vertiginosa da queda em cachoeira.
Voltou a escrever frenéticamente.
"Valeu a pena.
Costuma dizer-se que tudo vale a pena quando a Alma não é pequena.
Mas não é esse o caso.
Valeu realmente a pena.
Por si só.
Pelo seu valôr intrinseco.
Por tudo aquilo que vivemos.
Por tudo o que sentimos.
Pelo que demos e recebemos.
E por isso não é sequer mensurável em função dos frutos que possa produzir.
Porque nem que daqui nada venha a resultar.
Nem que no futuro não passe de uma recordação boa, mas longinqua.
Nem que nada mais advenha, valeu a pena.
O que tivemos foi autêntico.
Foi real.
E mais importante foi espontâneo.
Quantas pessoas tiveram a sorte de terem um dia uma relação tão forte,
tão natural,
tão primitiva e autêntica,
que aconteceu por si própria porque pura e simplesmente tinha que acontecer?
Como uma combustão espontânea?
Tão humanamente animal que todos os conceitos são desajustados?
Valeu a pena conhecer-te como mulher.
Não deixamos de ser, como tu própria o disseste, essencialmente amigos.
Mas agora numa outra dimensão.
Temos um do outro um conhecimento muito mais profundo.
Mais intimo.
Como familia.
Sinto que somos quase como familia.
Ainda que nunca mais nos vissemos, onde quer que estejas, sinto que tenho familia.
E não falo em familia como laços de sangue ou parentesco.
Familia no mais Belo conceito da Amizade.
Aquele que nos ensina que a Familia são os Amigos que Deus nos oferece.
E que os Amigos são a Familia que nós próprios escolhemos. "
Fêz outra pausa para descansar.
Mesmo enquanto estava parado sentia as ideias e as palavras a fluirem através do seu braço em direcção á mão como uma torrente, como se estivessem elas próprias impacientes para serem passadas ao papel, para ganharem forma e ganharem vida.
O intervalo foi por isso mais curto do que o que desejava.
"Nunca acreditei muito naquela história do Amor da nossa Vida.
Acredito mais que durante a Vida passamos por vários Amores.
E que um deles, por razões várias pode chegar a definitivo.
Claro que se o definitivo fôr logo o primeiro então se calhar podemos falar em Amor da nossa Vida.
Ou se em toda a Vida só encontrarmos uma pessoa que consigamos amar.
Nós conhecemos durante a Vida imensas pessoas.
E podemos relacionarmo-nos com muitas delas.
Mas apenas um número muito reduzido consegue efectivamente tocar-nos no mais fundo do nosso Ser.
No Âmago da nossa Alma.
Sentirmos que, se não somos completos, pode ser aquela a parte que nos falta.
Eu pessoalmente não conheci mais que duas ou três.
E não acredito que venha a conhecer muitas mais.
Mas tu podes sêr uma delas.
Sinto que és uma das poucas pessoas que podem eventualmente completar-me.
E o melhor é que não acontecendo, ainda assim não ficamos a perder.
Porque desde muito antes, até muito depois, existe a nossa velha amizade.
Tudo o que venha para lá disso pode ser encarado como um bónus.
E isso permite-me encarar a situação sem qualquer tipo de pressão ou insegurança.
Sem qualquer obcessão.
Sem ânsias.
Também porque me assustas.
Não tu em especial.
Mas qualquer mulher que me faça sentir o que tu me fizestes sentir.
Aquela estranha sensação de pertença.
De partilha.
De podermos gostar de alguém como de nós próprios.
Porque nessa altura me torno vulnerável.
Tendo para os compromissos.
Fujo das rupturas.
Em suma, tento alcançar o meio termo entre o que eu sou e o que tu és.
E o que me assusta mais, faço-o voluntáriamente.
Mesmo sabendo que não posso ser feliz assim.
Mesmo sabendo que me afasto do estado de equilibrio que atingi comigo mesmo.
Mesmo sabendo, pelo passado, que é apenas uma solução a prazo.
Sei que só sendo eu próprio em todas as ocasiões, posso ser feliz.
Sem ter que mudar as minhas opiniões ou comportamentos.
E isso passa, numa relação, por encontrar alguém que possa encaixar em mim dessa maneira.
Que, tal como eu, tenha as suas necessidades especificas.
Que por ter as suas, compreenda as minhas.
Que por precisar do seu próprio espaço, respeite o meu.
Em suma alguém que não me peça para mudar.
Que me aceite exactamente como eu sou.
Nem que seja apenas para também eu não lhe pedir que mude.
E o mais engraçado é que nunca me pediste nada.
E se calhar nunca o farias.
Mas se mo pedisses eu fá-lo-ia..
Sentir-me-ia compelido a isso.
Mesmo depois de tudo o que te disse atrás.
Ainda assim o faria.
O que claro, reverte o problema para o meu lado.
O problema se calhar não está nas mulheres que me provocam este sentimento.
Está antes na reacção que eu tenho perante elas.
E perante esse sentimento.
Provávelmente por ser tão raro quero a todo o custo tentar mantê-lo.
Tenho mêdo de o perder.
Fico inseguro.
E transformo todo esse mêdo e essa apreensão numa tentativa ridicula de tentar agradar a todo o custo, evitar problemas e criar consensos ainda que á custa do meu próprio espaço."
Ele parou de escrever surpreendido.
De falar consigo mesmo.
Era verdade e atingiu-o como um raio.
Estava agora a aflorar a verdadeira raiz do problema.
No fundo até agora não tinha feito mais senão transferir para outros a responsabilidade das suas próprias acções.
Culpava as mulheres por lhe exigirem que mudasse completamente a sua personalidade e a sua maneira de agir, e que o tentassem moldar para um ideal mais convencional e menos sui generis.
E para obstar a esse facto tinha encetado uma longa luta de conhecimento e afirmação pessoal.
Que de resto, e em boa verdade, tinha dado frutos e o tornavam de alguma maneira ímune a essas tentativas.
Mas absolvia-se a si próprio quando, motivado pelo desejo ou pela paixão, era ele próprio quem voluntáriamente hipotecava o seu próprio Caminho e se privava de ser ele mesmo.
Sabendo ele melhor que ninguém que esse era apenas o primeiro passo para o insucesso.
A imagem de um patamar e de dois lanços de escadas cruzou-lhe a mente.
Via agora claramente para onde se dirigia o lanço ascendente.
E sentia o seu chamamento mais intenso do que nunca.
Amanhâ mesmo ia começar a escalada.
Compreendeu que tinha até agora realizado a parte mais fácil da subida.
Tinha-se conhecido.
E ao conhecer-se tinha aprendido a impôr-se e a defender-se dos outros.
Mas faltava impôr-se ainda defenitivamente perante si próprio.
E aprender a defender-se dos seus próprios fantasmas, dos seus mêdos, dos seus receios.
Evitar cair na tentação de escolher o caminho mais fácil, que é o da cedência e do compromisso fácil.
Dar-lhe forças para entender que um Amor que nos exige sacrificios não é um Amor Verdadeiro.
E não sendo Verdadeiro importa mais acabá-lo rápidamente que alimentá-lo artificialmente de concessões várias.
E compreendeu que aquelas escadas se dirigiam ainda mais profundamente para o conhecimento de si próprio.
Aquele que não lhe iria permitir trocar-se a si próprio pelos caprichos de outra pessoa qualquer.
Nem que gostasse muito dela.
Olhando para baixo via já algum caminho percorrido.
Mas muito ainda havia ainda para percorrer á sua frente.
Muito para evoluir.
Para crescer.
Para amadurecer.
Mas com isso iria preocupar-se a partir de amanhâ.
Porque dentro de si continuavam a fluir ideias em catadupa.
Retomou rápidamente a escrita.
"Agora que te foste, todos os dias me lembro de ti.
Por uma razão ou por outra.
Por paixão ou amizade.
Por alguma coisa importante.
Ou por uma insignificância qualquer.
Ás vezes penso apenas se estarás bem.
Nós nunca esquecemos a familia, não é?
Há sempre algo que nos recorda.
E mais engraçado, nada tenho que te invoque.
Tudo o que tenho teu são uma foto digital e um e-mail.
Nada fisico.
Nem uma carta nem uma lembrança.
Tudo o resto foram mensagens.
Sinais dos tempos talvêz.
Tempos houve em que as cartas eram uma instituição.
Em que os casais idosos revelavam aos filhos e aos netos, em convivios cheios de nostalgia e revivalismo, as cartas que trocavam entre si.
E lá apareciam elas, as velhas cartas amarelas e bolorentas, mas guardadas e mostradas como autênticos tesouros.
Como gigantes que resistissem ao passar dos anos.
Que Tempo nenhum poderia destruir.
E então parecia que eles renasciam.
Reviviam as emoções do passado.
Lembravam-se do Amor que sentiam pelo outro.
Esse amor tantas vezes esquecido pela rotina e pelo passar dos anos.
E sentiam-se de novo jovens e fortes.
Nessa noite apaixonavam-se de novo.
Tão felizes que ficavam até indiferentes á chacota dos mais novos.
Ao sorriso meio divertido, meio benevolente.
Coitados dos velhos, que também já amaram um dia.
Esta era a tradição das Cartas de Amor.
Aquelas de que nos fala Fernando Pessoa.
Cartas de amor, quem as não tem?
As tais que todos acham ridiculas.
E no entanto quem é que nunca escreveu Cartas de Amor?
Acho que apenas nós dois.
Um ao outro.
Mas o que eram no fundo as nossas mensagens senão Cartas de Amor?
Em que nos declaravamos?
Em que nos conheciamos?
Em que nos desafiavamos?
Em que faziamos planos?
Gosto de pensar que também tu me escrevias Cartas de Amor.
Não uma por semana.
Mas antes dez por dia.
Claro que nunca amarelecerão guardadas dentro duma qualquer gaveta para serem lidas mais tarde.
Nunca poderão servir de testemunho de que já fomos jovens e amamos.
Antes se desvanecerão, perdidas no Etér.
Mas viverão dentro de nós.
Onde nunca ficarão amarelas nem ganharão bolor.
Ainda me lembro de quase todas as mensagens que me enviaste.
E nunca, mas nunca, me esquecerei das primeiras.
E por ser algo que nunca poderemos partilhar com ninguém, permanecerá ainda mais nosso.
Como já te disse uma vêz, ninguém te pode roubar o que já viveste. "
Virou outra página do caderno.
Tinha já escrito um sem número delas.
É incrivel como os nossos pensamentos ocupam espaço uma vêz que os passamos ao papel.
Por vezes temos a sensação que nada temos para dizer.
Mas isso é porque não abrimos a porta ao coração.
Amordaçamo-lo e não o deixamos falar.
Porque senão ele encher-nos-ia um caderno inteiro todos os dias.
E se o escutarmos não nos desviaremos do nosso Caminho.
Continuou a escrever rápidamente.
O seu coração ainda não tinha acabado.
"Mas acho que o que te quero mesmo dizer é no fundo aquilo que tu já sabes.
No fundo acho que sempre o soubestes.
Não é segredo o que sinto por ti.
E quando te foste senti profundamente a tua falta.
Depois habituei-me, como tudo na vida.
Mas o que queria mesmo era que aqui estivesses e pudessemos continuar juntos.
Se viesses se calhar não ia saber o que fazer contigo.
Como haveria de te encaixar na minha vida.
Ou se sequer haveria espaço para ti.
Mas isso só o tempo o diria.
E como tal, nem sequer me preocupo em pensar nisso.
Como já te disse, em qualquer situação, nunca ficamos a perder.
O que nos leva a outro assunto.
A minha maneira muito pessoal de encarar o Mundo e a Vida.
E as influências provocadas nela pelas cicatrizes da minha vivência até á data.
O que para ti também não é qualquer novidade.
Existem dois seres dentro de mim.
Um anseia amar e ser amado.
O outro deseja a libertinagem.
Um anseia o compromisso e a estabilidade.
O outro aspira e procura o mais puro estado de Liberdade.
Um deseja dar-se do mais fundo do seu Ser.
O outro não mais se quer expôr.
Um quer mergulhar no turbilhão de Emoções Puras de um Amor Verdadeiro.
O outro sabe que esse é o mais puro estado de Dependência e Vulnerabilidade.
Um não tem receio de se entregar de Corpo e Alma.
O outro esconde-se atrás de máscaras.
Um anseia encontrar alguém que possa amar como a si próprio.
O outro jurou que não voltará a sofrer.
E é nestas águas que eu navego.
Separado entre dois fogos.
Dividido por um mar de dúvidas.
Emparededo entre o que sou e aquilo que quero ser.
E no entanto pareço conseguir vislumbrar, e se calhar só mesmo eu é que consigo, uma linha de coerência no meu percurso entre estes dois mundos.
Não caio no exagero de dizer que é uma linha recta e linear.
Mas nem todas as linhas têm que ser rectas.
E para todos os efeitos é a minha linha.
O meu Caminho.
E sendo meu será sempre necessáriamente, como eu próprio, um pouco confuso. "
Enquanto escrevia ouviu-se o som metálico de dois pequenos toques vindos do seu telemóvel.
Era ela.
Pousou a caneta sobre o caderno para lêr a sua última mensagem.
Sorriu do conteudo e respondeu-lhe.
Voltou a pegar na caneta para escrever, mas súbitamente percebeu que o fluxo parecia ter-se esgotado.
Como se toda a água da albufeira tivesse já atravessado a comporta e despenhado na cachoeira.
Tinha já dito tudo o que queria.
Ou pelo menos tudo o que se lembrara.
Sentiu a cabeça estranhamente leve.
A sua mente relaxada e solta.
Agora já sabia o que pensava.
Logo também ela o saberia.
Pousou o caderno e ia levantar-se quando uma última ideia lhe ocorreu.
Voltou a pegar na caneta e virou a página.
Mesmo a tempo.
Era a última.
"E se tivesse que responder um dia de uma só vez a todas as tuas mensagens, algo que pudesse sintetizar em poucas frases tudo aquilo que sinto dentro de mim, não o poderia fazer de outra maneira, senão através das imortais palavras de Kahlil Gibran, o Profeta, para a sua amada de uma vida inteira Mary Haskell.
Numa Carta de Amor, evidentemente.
"Lendo as tuas doces e queridas cartas,
sinto-me como uma planta que cresce em direcção á luz.
E esqueço as minhas próprias sombras.
Acredita, Mary, que um dia eu serei o homem para quem essas cartas são escritas.
Eu quero ser esse homem que tu pensas que eu sou
- com toda a força do meu Coração e da minha Alma.
(*)Luís Moutinho, escritor portugués. Mora no Porto.