Versiones 31

Director: Diego Martínez Lora

Vila Nova de Gaia - Portugal

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Ana Cecília Ferri Soares


Ana Cecília Ferri Soares(*

O CURIOSO

 

Assíduo frequentador de Igrejas, o curioso João Couto, ouvira o Padre Aloysio, dizer durante a missa, que com a ajuda dos amigos da Paróquia, finalmente os bancos seiscentistas haviam sido restaurados e estariam a ornamentar a Igreja por ocasião dos festejos tradicionais.

João Couto, também apreciador de obras antigas, mal podia esperar para ver os bancos... Ele próprio era antigo!

Na Paróquia do Padre Aloysio, havia um altar, onde eram depositadas as peças de cera dos pedidos ou pagamento de promessas. Eram cabeças, mãos, pernas, corações de várias tamanhos e cores.

Uma das tradições das festas da Paróquia era enfeitar os altares com muitas flores: verdadeiro trabalho de arte!

No esperado dia da Festa, lá estavam.... Um Altar inteiro em orquídeas a cair como fossem uma cachoeira perfumada. Outro, inteirinho forrado de antúrios vermelhos a lembrar o Manto Sagrado. O de cravos vermelhos evocava efusivamente a Liberdade de Abril... As rosas sob a Nossa Senhora de Fátima, faziam-na flutuar novamente com se fosse um nova aparição! A Nave Central estava forrada de gladíolos e no piso, havia um carpete de pétalas de flores variadas, a formar um cálice dourado que sustentava no ar a sustentar a Sagrada Hóstia. Até as escadas que levavam ao Órgão e as dos Púlpitos estavam enfeitadas .

João Couto mal podia esperar para ver tanta beleza e principalmente a novidade dos bancos seiscentistas. Mal amanheceu o dia, vestiu-se classicamente, com seu facto azul-marinho, sapatos brilhando de tão limpos, gravata impecável por baixo do colarinho perfeitamente adaptado ao pescoço. Era um homem elegante, perfeccionista, curioso... Não tomou o pequeno almoço pois queria comungar naquele importante e solene dia.

Chegou à Igreja na exacta hora da Missa. Tomou lugar bem perto do Altar Mor. Certificou-se mais uma vez de que havia trazido moedas para as esmolas de praxe. Conferiu todos os fiéis presentes, como era de seu costume, notando a falta da Dona Maria Amélia e isso o incomodou: "O que terá acontecido? Será que está doente? Ela nunca falta... alguma coisa grave estará se passando?"

 

Assistiu à Missa, com aquele aspecto compenetrado que convém ao bom praticante, respondendo automaticamente e antes um pouquinho dos outros para deixar claro que era grande conhecedor do Serviço Eclesiástico, a denunciar também que havia sido coroinha.

Abraçou emocionadamente os irmãos, no momento em que todos devem cumprimentar-se, chegando às lágrimas...

Dever cumprido e comungado, mal podia esperar o término da missa para revistar os altares e principalmente a grande novidade: os bancos seiscentistas restaurados.

Dada a benção final, João Couto apressou-se em ir olhar todos os altares. Fotografou-os um por um. Espiou por trás das armações. Espantou-se em voz alta quando a beleza de algum deles chamou-lhe mais a atenção. Parecia não se dar conta de que outra Missa já havia começado e que a Igreja estava superlotada. Fazia perguntas a algumas beatas: "Mas como é que fizeram isto?", "estas flores não são tingidas, pois não?" "Parecem artificiais..."

Finalmente deparou-se com os bancos seiscentistas!

Olhou-os demoradamente. Admirou-se com os entalhes recobertos de folhas de ouro: " Que maravilha!" Tentou saber de que madeira eram feitos... procurou a assinatura da obra...

Ao passar pelo do altar das promessas, onde se colocam aqueles objectos das promessas, não percebeu que estava forrado de flores. Não estavam ali as costumeiras mãozinhas, pernas, cabeças de cera... João Couto estava muito mais preocupado em ver minuciosamente os bancos...

Sentou-se num deles, sentiu-se cortesão seiscentista recostado sobre a talha dourada.. Ouviu o Coro por instantes, apreciou o som do órgão.

Outra Missa já seguia calma, o seu ritmo normal. Todos muito compenetrados, muito concentrados. A Igreja estava muito cheia.

Voltando à realidade e ao momento actual, sem querer, correu a mão sobre o banco e verificou que era oco! Sem resistir, saltou dali e imediatamente abriu a tampa que formava o assento do banco. Era um "banco-baú"! Ao abrir, fez-se um enorme rangido, despertando a atenção dos que assistiam à missa.

João Couto, curioso, maravilhado com a sua descoberta, começou a mexer nas coisas que ali encontrara: mãos, pernas, cabeças! Curioso, a ler as inscrições feitas em cada uma daquelas partes de gente, para saber de quem eram...

 

Uma senhora com seu véu preto, terço e missal, imediatamente levantou-se e aproximando-se disse em voz bastante alta: "Esta é a perna do Joaquim!" Não podia estar ali!

Outro senhor também aproximou-se e começou a procurar a mãozinha de sua neta e outros vieram e mais outros, cada qual a procurar os pedaços dos parentes e amigos que deveriam estar no altar.

Quase todos os participantes da missa vieram procurar suas "partes" ou vieram para ver o que se passava, enquanto o Padre Aloysio tentava acalmar a situação pedindo ao coro que cantasse mais alto, a tentar abafar as discussões que já começavam sobre a utilização dos bancos: "Então era para sentar em nossas promessas?" "Se era para esconder a fé da gente, eu não ajudava na restauração!" E iam por aí...

Armado tamanho pandemónio, João Couto achou melhor sair "à francesa", com a desculpa de ir ver se Dona Maria Amélia estava passando bem. Nem reparou que ela estava ali mesmo, mais saudável do que nunca, a procurar o braço do marido....


(*)Ana Cecília Ferri Soares, escritora brasileira-portuguesa. Mora em Estoril.