Versiones 31

Director: Diego Martínez Lora

Vila Nova de Gaia - Portugal

La aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...

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Renato de Caldevilla(*)


*)

O regresso

 

Quando Júlia chegou a Portugal à vetusta aldeia transmontana de Fontes, onde nascera há vinte e cinco anos, deteve-se por algum tempo na curva de Soutos Longos, lançando um abrangente olhar pelos socalcos amarelados, um verdadeiro tapete de folhas das despidas árvores e videiras, por um Outono chuvoso, cinzento e frio, a anunciar rigoroso período invernal de neves e geadas, após terminada a actividade das vindimas, enquanto alguns homens curvados sobre as vides trabalhavam o roçado tojo que alimentaria as fontes do futuro mosto.

 

Resolvera regressar depois de abandonar Fernando, o marido, mais conhecido por "Macarrão", após uma estúpida troca de azedas palavras entre ambos, em Paris, provocada por uma questão de saias, uma frívola, conquanto elegante corista, bailarina de "cabaret" barato de Pigalle, por quem ele se interessara, num perigoso devaneio que a irritou e ofendeu, desiludindo-a numa primeira e derradeira frustração. Ao saborear aquele momento, a paisagem dourada que se lhe apresentava, uma ligeiríssima brisa vinda da serra do Marão, transportou-a por uns breves instantes para um passado ainda não muito distante, quando ela, embrenhada nos geios, a vindimar os cachos de uvas, por entre as cepas, era apalpada nas nádegas pelo então seu namorado e atrevido Fernando, durante o curto intervalo do enchimento do cesto pelas restantes mulheres que se riam, enquanto ele, entre um copo de água-pé e um cigarro feito à mão, utilizava a outra, naquele brejeiro identificar-se, de libidinosas consequências mais tarde traduzidas durante a noitada da Senhora do Viso, a festa do ano em que àquela mesma Senhora muita gente pedia o dom do juízo, virtude rara naquele atiradiço Fernando Macarrão! E de que lhe valera tudo isso, além de um casamento apressado antes de seguirem para França, não por que estivesse grávida - não calhara —, mas por desejarem efectuar aquela cerimónia litúrgica sob a benção e testemunho do padre Alves que os baptizara e conhecia desde crianças.

 

Verdadeiramente não calculava como seria recebida pelos pais, pessoas que desconheciam a separação e, como religiosos fanáticos, não aceitariam com bons olhos o regresso da filha, fossem quais fossem as razões que a isso a tivessem obrigado, nunca, mais importantes, no seu pensar, do que a continuidade do matrimónio. Essa reacção negativa dos seus maiores chegava a amedrontá-la, levando-a a duvidar se eles lhe abririam a porta da casa, quem sabe se estribados na pesada sentença ritual de "não separar o homem o que Deus uniu", podendo sentir-se cúmplices activos da separação, acontecimento em que não tinham qualquer espécie de responsabilidade. Fora este, um dos motivos por que ali parara, às portas da aldeia, meditando nisso e em tantas outras coisas que naquela altura lhe passavam pela cabeça. Tendo descido naquele local, quase adquirira a certeza dos pais já terem sido informados da sua chegada, pelos restantes passageiros da camioneta de carreira, a continuar viagem até ao centro da povoação, de que distava menos de um quilómetro do seu antecipado ponto de desembarque.

 

Ao iniciar o resto do trajecto, sopesando a modesta mala numa das mãos, lembrou-se de passar por casa do padre Alves, não para lhe pedir um auxílio que certamente não obteria, dada a circunstância da separação e os escrúpulos que ele sentiria, em servir de eventual intermediário junta dela e dos pais. Isto de mediação entre o terminar de um matrimónio e o provável início de uma vida de adultério, era situação delicada que, nem mesmo o amor ao próximo e a caridade cristã, justificariam o comprometimento a por em xeque as suas virtudes teológicas. Acrescia o facto do povo começar a pensar de imediato que, após a sua chegada, tinha-se ido logo meter com o padre! Desistiu assim de efectuar aquela visita, nem sequer se sentindo com coragem para solicitar conselho, talvez recusado por uma impossível absolvição para o seu tão grave como indesejado estado de pecado!

 

Nunca se sentira tão só e abandonada na vida, tanto mais que o destino não lhe concedera um filho, possível razão para Fernando não ter sido tão leviano e dela, por outro lado, ter podido aceitar melhor, embora a custo, aquela provação, perdoando-lhe a aventura com a bailarina que os levara até ao desquite. Contudo, sem filhos, quanto não valeria agora a sua liberdade?

 

Um automóvel parou ao eu lado. Era conduzido pelo professor Xavier, seu antigo mestre de primária a oferecer-lhe uma boleia até ao centro da aldeia. Quis recusar o convite mas o professor, com uma teimosia canina pegou-lhe na mala e quase a empurrou para dentro do veículo. Intrometido, quis logo saber a razão do seu regresso a Fontes. Admirou-se de Fernando não a acompanhar, perguntou por ele e muitas coisas mais. Júlia, com elegância conseguiu iludir uma resposta, admitindo um breve período de férias a que o marido não pudera aderir, por questões profissionais.

 

Júlia não gostava de mentir e, sempre que era obrigada a fazê-lo, corava dos pés à cabeça, sensação desagradável como a que lhe estava a acontecer.

 

A viagem foi curta, ela despediu-se do professor e começou a subir a pequena ladeira que ligava o lugar do Cruzeiro à casa dos pais. A mãe, dona Rosa, quando a viu à esquina do caminho, entrou pelo umbral da porta com ligeireza, assim como uma vizinha com quem conversava no exterior. À sua chegada a pequena rua estava completamente deserta, a não ser um lazarento cão a rosnar à sua passagem. Como a porta estava no trinco, Júlia empurrou-a e entrou. A mãe. De costas, ateando o fogo da lareira. Do pai, nem sinais. Com uma voz trémula pediu, como era habitual, a benção de D. Rosa. Ela voltou-se com uma lentidão premeditada, aproximou-se de cenho carregado e a abanar a cabeça envolta num lenço escuro para exclamar entre dentes:

 

"- Que vens aqui fazer, minha cabra!"

 

Júlia começou a chorar enquanto se sentava num banco corrido da preguiceira colocada frente ao fogo da casa. As palavras que a mãe proferira entre dentes e marcadas por um profundo desgosto associado a uma ira mal-contida, fustigaram de uma maneira atroz o espírito da pobre rapariga. Durante longos instantes nada disse, apenas limpando os olhos à manga da camisola, hirta e sem coragem para replicar o que quer que fosse. A mãe, entretanto, como a não lhe dar grande atenção voltou-se de novo a espevitar os dois tições de lenha, a imprimirem um tom vermelho-infernal ao ambiente carregado de censuras ainda caladas, mas prestes a saírem em catadupa.

 

O senhor Manuel, o pai, estava a trabalhar na enterra do tojo, pelo que só chegaria à noite. Procurando serenar o espírito para, de uma forma lúcida poder contar à mãe a traição do marido, a discussão originada pelos seus devaneios a redundar no subsequente afastamento e desprezo, tanto mais temer Júlia um futuro e eventual contágio pelo vírus da Sida, flagelo a não se poder menosprezar hoje em dia e muito diferente de uma antiga blenorragia, uma das antigas formas de se contrair a sífilis, doença agora perfeitamente curável o que, em relação à praga do século XX era, irremediavelmente, a morte a curto prazo, além dos padecimentos horríveis que a antecederiam. A dona Rosa quereria entender e aliar-se às razões que a filha lhe apresentava contudo, um inominável sentido de respeito humano e de temor religioso, coibiam-na de se passar para o lado de Júlia, embora a sua ira inicial tivesse abrandado e ela compreendesse um pouco melhor a situação.

 

Como a filha, o que naquela altura mais a afligia, era a reacção do marido quando chegasse a casa. Por ela, tudo se começava a compor, apesar do perigo que envolvia a aceitação de Júlia na casa paterna.

 

Não veio a ser tão má a posição assumida pelo senhor Manuel, após a sua chegada, completamente exausto, mas de ouvidos já cheios pelos comentários dos companheiros de trabalho, uns bêbados atirados a sabichões e a moços de sacristia, agarrando-se a soezes e abomináveis comentários, procurando uma forma de protegerem o infeliz do Fernando, abandonado pela mulher lá nos confins de uma misteriosa França, país de intensa labuta e de imenso respeito, onde a dona Amália tinha sido tão bem recebida no conhecido Olimpya, assim como o conhecido treinador Artur Jorge, quando tomou conta do paris Saint Germain. Homens a protegerem-se, irmanados num machismo de brutais contornos, sem curarem de saber qual o reverso daquela medalha e que dizia respeito à filha do colega de trabalho que, de menina muito querida de todo o povo, passara a mulher após o casamento com o Fernando e, naquela nova condição, objecto de obediência absoluta ao marido, não importando as circunstâncias.

 

Claro que haveria durante algum tempo um longo período de mexericos. Mas de que valeria isso, em contraponto com o amor que Manuel tinha à sua pequena Júlia? Sentando-se ao lado da filha passou-lhe o braço à volta do franzino tronco e, ao dar-lhe um beijo, arranhou-a com a barba por fazer ou desfazer, como afirmava um colega muito dado à boa dissecação linguística e ao perfeito construir das frases. Outro não poderia ser senão o professor Xavier...

 

Transformadas em beijos as antecipadas e previstas "lambadas" do pai, Júlia não só se espantava, como se encolhia, agora envergonhada com o que lhe poderia acontecer nos subsequentes dias, semanas e meses em Fontes, nos olhares reprovadores de tanta beata de igreja quando ela fosse à missa dominical, na atitude compungida e alheia do padre Alves que, como a avestruz, haveria de procurar um qualquer buraco para esconder a cabeça.

 

Teria de resistir às solicitações libidinosas de muito macho que, julgando-a um objecto fácil de prazer, não deixariam de lhe fazer a corta para uma relação fácil e passageira. Júlia recolheu ao antigo quarto, ainda na mesma como quando era solteira, agradecendo à providência a maneira amorosa, conquanto rude, como o pai havia encarado o problema que a afligia. Afinal talvez até ela estivesse a fazer um mau juízo do padre Alves, quando este viesse a tomar uma posição menos drástica e mais consentânea com a caridade devida à ovelha tresmalhada que viesse a ser encontrada pelo Bom Pastor!

 

Já deitada, sob um grosso cobertor de lã, escutando a forte chuva no exterior, Júlia meditava antes de ser tomada pelo sono, na afinidade verdadeiramente extraordinária entre pai e filha, sempre traduzida, como desta vez, por uma sagrada compreensão e os juízos errados que a tinham assaltado, numa desconfiança rude mas encoberta por uma ternura perene e discreta, por detrás de uma espessa barba que tão bem lhe soube, acompanhada por aquele primeiro beijo, estando os dois sentados na preguiceira, frente às labaredas ígneas que bailavam num fulgor de aprovação e nunca num infernal anátema de sentimento de culpa.

 

Entretanto em Paris, a noite apresentava-se excelente. As luzes rebrilhavam em Pigalle, o "champagne" esvaziava-se das taças, as bailarinas sentavam-se ao colo de homens boémios que as adoravam, entre sorrisos, charutos e cigarros. Fernando, um pouco bebido e inebriado pelos seios da companheira onde se encostara com displicência efervescente e glorioso daquela "mademoiselle" cujo nome já lhe escapara, saltitando, como uma borboleta de flor em flor, entre Michéle, Jackeline e Veruska enquanto, no seu péssimo francês, tentava cantar o último êxito de Charles Aznavour!


(*)Renato de Caldevilla, jornalista e poeta portugués. Mora no Porto.

 


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