Versiones 33

Agosto - Setiembre  2000 - Año del Dragón

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Director: Diego Martínez Lora


la aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...


Luís Ferro Moutinho(*):

Não te esqueceste de fechar a porta?


A jovem entrou no autocarro, e dirigiu-se de imediato para a parte de trás. O autocarro estava um pouco cheio, e foi com alguma dificuldade que lá conseguiu chegar. Todos os lugares estavam ocupados, claro, e teve que esperar uns bons minutos até que chegasse a sua vez de se sentar. Finalmente, um senhor idoso levantou-se ao seu lado, para sair na próxima paragem, e pode assim sentar-se. Mas valera a pena a espera. Conseguira sentar-se no seu lugar favorito.

 

Eram bancos duplos, que ficavam de frente para outro banco, este último virado em sentido contrário ao do movimento de autocarro. Existia um par destes bancos em cada um dos lados do autocarro, separados pelo corredor onde outros passageiros viajavam de pé. Ela ficara sentada na fila da esquerda, e num banco virado para a frente. Melhor, só se ficasse á janela.

 

Ao seu lado esquerdo, e junto á janela, uma senhora forte carregava alguns sacos com compras. Á sua frente, e viajando “de costas”, ia um casal de namorados. A senhora forte começou a falar com ela sobre a dificuldade cada vez maior de transportar coisas pesadas, e como isso lhe dificultava a tarefa de ir ás compras. Ela respondia-lhe evasivamente, nem a encorajando a continuar, nem querendo parecer mal educada por não dizer nada. O casal de namorados, que deviam andar na casa dos 25 anos, falavam de coisas banais, e faziam planos para o filme que iam ver nessa noite. No banco atrás do seu, dois homens de meia-idade discutiam futebol, e cada um deles carpia mágoas pelo mau desempenho das respectivas equipas no último fim de semana. De pé, e ao seu lado, duas mulheres também de meia-idade, discutiam os defeitos e virtudes dos respectivos filhos e maridos, em que as virtudes estavam todas nos filhos, e os defeitos todos nos maridos.

 

Ocasionalmente, elas dirigiam-lhe um olhar de reprovação, como se entendessem que talvez lhes devesse ceder o seu lugar, por ser mais nova que elas. «Podem esperar sentadas.» - ironizou. E sorriu com o seu próprio trocadilho. Em fundo, ouvia-se ainda uma voz de mulher, que parecia ralhar com uma criança.

 

A viagem decorreu assim durante mais uns minutos. Alguns passageiros entraram e outros saíram, mas á medida que se aproximavam do fim da linha, o seu número diminuía progressivamente. Finalmente, o seu número diminuiu até ao ponto de não haver praticamente pessoas de pé. Até as duas mulheres que viajavam literalmente encostadas a si, tinham conseguido um lugar, precisamente no banco ao lado do seu na fila do lado direito.

 

Foi quando elas se sentaram que pode identificar de onde vinha a voz de mulher que ouvira antes. Viajava de costas, no banco do outro lado, e agora ficara em frente das outras duas mulheres. Era jovem, ainda não devia ter trinta anos. Provavelmente teria aproximadamente a sua idade. Tinha um aspecto agradável, e vestia-se com gosto, mas os seus olhos e expressão apresentavam uma expressão de contrariedade.

 

Ao seu lado estava sentado um rapaz de não mais de 5 anos, vestido com roupa de marca, e um pequeno boné na cabeça. Tentava continuamente levantar-se e ir ter com as outras pessoas, e a mãe fazia todos os possíveis para o manter sossegado no seu sitio. Mas não adiantava nada. Passados alguns segundos, o miúdo levantava-se e dirigia-se como um foguete a qualquer um dos passageiros, puxando-os pelas mangas dos casacos ou das camisas, e falando alto. Várias vezes a mãe teve que se levantar para o ir buscar, quando as pessoas começavam a demonstrar o seu desagrado pela indesejada e inoportuna visita. E em protesto ele esbracejava em todas as direcções, e protestava alto, fazendo birra e ameaçando chorar. Como represália tentava atingir a mãe com as suas botas, ou ferrar-lhe as mãos quando ela o segurava.

 

Da última vez que se levantou para o ir buscar, os seus olhos cruzaram-se com os dela. Sentiu dentro de si uma enorme compaixão. Aquela mulher estava perfeitamente extenuada. Lembrou-se do seu próprio filho, um pouco mais novo do que este, mas que já algumas vezes a tinha deixado completamente desesperada e fora de si, á beira de um ataque de nervos. Muitas vezes, depois de um dia duro no trabalho, ainda tinha á sua espera uma daquelas cenas.

 

A sua simpatia pela outra jovem crescia na mesma proporção que crescia a sua antipatia pelo miúdo. Apetecia-lhe levantar-se e dar-lhe um par de estalos, sentá-lo no seu lugar, e mandá-lo estar quieto e calado. Aliás, o que lhe apetecia mesmo, era esbofeteá-lo até lhe doerem as mãos. Provavelmente, a mãe até lhe agradeceria. Ela nem sequer entendia como é que a outra se continha em faze-lo ela mesma. Ou melhor, até entendia. Pela mesma razão por que ela se continha com o seu. Na altura certa, e por mais que lhe apetecesse, não conseguia faze-lo. Como seria bom que um dia, milagrosamente, surgisse alguém que o fizesse em lugar dela. Ela ficar-lhe-ia eternamente agradecida.

 

As duas mulheres mais velhas, entretanto, olhavam para o miúdo com um misto de desconfiança e desdém, aparentando a mesma descontracção que teriam, se no banco á sua frente, estivesse pousada uma cascavel. Decerto nenhum dos seus filhos tinha alguma vez feito uma cena daquelas. Nem disso seriam capazes. Elas tinham-lhes dado uma educação esmerada. Já os maridos, quando eram novos, certamente teriam feito muitos destes escândalos. Mas, também, as suas sogras tinham feito tudo para o merecerem. Nunca os tinham sabido educar. E, ainda por cima, agora elas é que tinham que os aturar.

 

Para demonstrar bem o seu descontentamento pela situação, o miúdo resolvera amuar, apertando os lábios e fazendo inchar as suas bochechas. Mas, como ninguém pareceu fazer caso, abandonou o seu mutismo. Apontou o dedo para uma das duas mulheres, e perguntou:

«O que é isto?» - referindo-se á echarpe que ela usava, imitando pele de raposa.

«É o cachecol da senhora, filho.» - respondeu-lhe a mãe, baixinho.

«Parece mais um gato morto.» - atirou ele.

A mulher inchou e ficou vermelha como um balão, e olhou-o ainda mais desdenhosamente. A mãe também corou, e tentou remediar a situação.

«Não filho, é o cachecol da senhora, e é muito bonito.»

«Não é nada bonito» - gritou ele - «É velho e feio, e ela também é velha e feia.»

A mulher entretanto tinha-se posto como um pimento, e olhava irada e incrédula, alternadamente para a mãe e para o miúdo. A mãe sentiu em si o olhar de fúria da outra mulher, e corou ainda mais, afundando-se no seu banco na óbvia tentativa de apresentar, ao olhar de censura dos outros, a menor extensão possível do seu corpo. Era óbvio que só lhe apetecia desaparecer dali, e acabar de vez com o pesadelo. Fitou envergonhadamente as duas mulheres, como que desculpando-se silenciosamente, mas elas mantiveram sobre ela o seu olhar reprovador.

«O que é isto?» - ouviu-se de novo a sua voz estridente.

A jovem mãe tremeu de alto a baixo. Acompanhou, a medo, a direcção do dedo que o miúdo apontava á segunda mulher.

«São ...são os sapatos da senhora.» - respondeu, com voz embargada.

«Não» - berrou o miúdo - «não é isso.» - e inclinou-se no banco de maneira a apontar bem o que queria, quase tocando com o dedo as varizes que se espalhavam como riachos, pelas pernas da mulher. «Que é isto?» - perguntou de novo - «Que veias tão feias e tão saídas são estas? São mesmo feias.»

A jovem fitou, aterrada e indefesa, as duas mulheres que pareciam ir explodir de cólera a qualquer momento, as faces vermelhas de raiva e respirando com alguma dificuldade.

«Não ...não é nada, filho.» - conseguiu balbuciar a custo, e puxou-o de novo para cima, sem olhar na direcção das outras mulheres. Já não tinha coragem para olhar para o seu rosto irado, e por isso não levantava os olhos do chão. Parecia rezar interiormente para que nada mais acontecesse até ao final da viagem.

O miúdo, entretanto, pareceu sossegar por um minuto. Mas subitamente, levanta-se como uma mola, e dirige-se á mulher que estava directamente á sua frente, puxando-lhe um pesado berloque, que usava suspenso do pescoço por um grosso fio de ouro.

«Que é isto?» - guinchou, enquanto lhe puxava o berloque com toda a força. A mulher, apanhada desprevenida, acompanhou com o pescoço e o resto do corpo, o movimento do berloque, quase indo bater com a cabeça no banco da frente, enquanto berrava desesperadamente. A mãe, apanhada desprevenida, também soltou uma exclamação, assustada, enquanto a segunda mulher parecia ir sofrer, a qualquer momento, de um ataque cardíaco. Desesperada, a mãe soltou a custo as mãos que o filho tinha bem agarradas á volta do berloque, soltando finalmente uma completamente aterrorizada mulher, que ainda mal se tinha sentido livre, já se dirigia em passos largos na direcção da porta do autocarro, bufando e soltando imprecações. A outra mulher logo a acompanhou, com a mão sobre o peito e respirando ruidosamente e com dificuldade. A mãe, entretanto, agarrara com uma das suas mãos as duas mãos do miúdo, e a custo e sem grande força, deu-lhe nelas duas sapatadas.

            «Feio, ...tu és feio.» - recriminou-o.

O miúdo, entretanto, começou num verdadeiro pranto, como se tivesse sido selváticamente sovado. Berrava a plenos pulmões, ininterruptamente, e as lágrimas corriam abundantemente pelas suas faces abaixo. A mãe, que envergonhada se tinha afundado de novo no banco, não tinha sequer coragem de levantar os olhos do chão, e encarar os outros passageiros. A sua expressão angustiada parecia revelar a tensão que a acometia, e somente a ideia de que apenas duas ou três paragens os separavam do término da linha, e do fim deste pesadelo, a poderia eventualmente animar. Isso, ou a fraca consolação de que, a partir de agora, já nada poderia correr pior de que o que tinha corrido até aqui. O miúdo olhou para ela rancorosamente, os seus olhos totalmente vermelhos, e as faces ainda cheias de lágrimas.

«Tu é que és feia» - cuspiu vingativo entre soluços, e com ar superior - «Vou dizer a toda a gente que tu metes a pilinha do papá dentro da tua boca.»


(*)Luís Ferro Moutinho, escritor portugués. Mora no Porto.


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