Versiones 34

Octubre/Noviembre 2000 - Año del Dragón

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Director: Diego Martínez Lora


la aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...


 

Ana Cecília Ferri Soares(*):
O gato


Sentada naquela cadeira que ficava em frente à lareira, sob a alentejana manta branca, a ouvir os mais calmantes clássicos, lia vorazmente... Lia como se o Tempo estivesse a reduzir-se, como se não fosse dar tempo de ler tudo o que precisava ou queria. Tinha sede de ler, sentia fome de ler, seus olhos só podiam ver a paisagem, o voo de uma gaivota, o Sol, a noite, o mar e as pessoas se estas imagens lhe entrassem pelas vista através das letras. Só sabia caminhar, se fosse por uma estrada descrita num livro. Só sentia o perfume de um narciso se algum poeta o tivesse ofertado a alguma musa . Havia vivido o mais intensamente que soube, mas por mais que o tivesse feito, tudo o que fez foi pouco. Insaciável mente, ambiciosa de saber, vasculhava os livros, as letras, sondava os conteúdos, espreitava as entrelinhas. Pouco dormia para não perder minutos preciosos, o tempo era precioso, havia muito espaço em seu cérebro a ser ocupado.

Eram assim os seus dias de inverno europeu. Sentia-se como se fosse um grande génio, desses que só serão conhecidos após a morte. No seu cenário, mantinha acesas as velas para que a sua imaginação ainda mais se aguçasse, para que os clássicos da música e da literatura se sentissem mais presentes. Imaginava que a sua casa fosse uma romântica água-furtada ou que da sua janela pudesse rever as serras que inspiraram tantos poetas. A sua casa estava onde estivesse ocorrendo a acção do livro que estivesse a ler... Fazia-lhe companhia, apenas o seu gato que muito paciente com ela, lhe afagava a mão de vez em quando com uma áspera mas gentil lambidela.

Numa tarde fria, alguma coisa a incomodou os olhos, talvez o cansaço da leitura excessiva, que sabe os óculos já antigos e exaustos do esforço de aumentar as letras para que ela pudesse ver. Ela parou de ler por instantes e uma avalanche de questões inundou-lhe a mente, como se houvesse ali uma multidão de pessoas a lhe fazer perguntas que ela não conseguia responder. Sentia-se afogada, aviltada, incapaz, impotente... Escondida do mundo já estava há muito tempo mas aquelas pessoas todas invadiam-lhe agora os pensamentos, com perguntas que ela não sabia responder. Queria esconder-se de sua mente, de sua imaginação, de si mesma. E ficou nesta aflição por tanto tempo que o seu gato pregou-lhe um aguda mordida na mão: havia passado o horário de dar comida a ele. De volta à realidade mais próxima, levantou-se para servir ao seu companheiro a seu tardia merenda.

Este intervalo provocado pela fome, pelo instinto de sobrevivência daquele ingénuo gato a fez reflectir. Porque teria ela de ler tudo o que Descartes, Jung ou Platão escreveram? Porque deveria ela ler Camões, Petrarca e Dante? Que obrigação teria ela de ler tudo o que se considera clássico, tudo o que compõe o repertório das pessoas a que chamamos de cultas. E o que teriam lido estes autores? O que teriam lido Sócrates, Cristo e Buda que nunca escreveram uma linha para a posteridade mas que nela estarão para sempre?O que teriam lido os druídas? Em que livro teria aprendido o seu gato, a morder-lhe a mão para dizer que estava com fome, que já passava da hora de comer sem sequer ter aprendido a ver as horas dos relógios... Não dobrou a manta branca sem antes pensar nas ovelhas que viviam apenas para produzir aquela lã silenciosamente. Depois saiu de casa e foi para a praia e sentou-se ali para tomar a hóstia solar posta em seus olhos pela mão de Deus... E comungou com a Natureza e perdoou-se...E ali sentiu o cheiro do mar e ouviu o seu linguajar transparente. O vento veio brincar com ela a eriçar.lhe os cabelos tímidos. Deitou-se na areia, a olhar para o céu e percebeu que não havia horizonte e que podia respirar o Universo sem fronteiras e sentiu-se plena dele sem notar se tinha corpo ou cérebro. Sentiu-se parte de uma harmoniosa sinfonia universal e descansou sem se sentir só. Naquele céu, uma gaivota voou... apenas por voar... Ana Cecília Ferri Soares

Um gato...

Sentada naquela cadeira que ficava em frente à lareira, sob a alentejana manta branca, a ouvir os mais calmantes clássicos, lia vorazmente... Lia como se o Tempo estivesse a reduzir-se, como se não fosse dar tempo de ler tudo o que precisava ou queria. Tinha sede de ler, sentia fome de ler, seus olhos só podiam ver a paisagem, o voo de uma gaivota, o Sol, a noite, o mar e as pessoas se estas imagens lhe entrassem pelas vista através das letras. Só sabia caminhar, se fosse por uma estrada descrita num livro. Só sentia o perfume de um narciso se algum poeta o tivesse ofertado a alguma musa . Havia vivido o mais intensamente que soube, mas por mais que o tivesse feito, tudo o que fez foi pouco. Insaciável mente, ambiciosa de saber, vasculhava os livros, as letras, sondava os conteúdos, espreitava as entrelinhas. Pouco dormia para não perder minutos preciosos, o tempo era precioso, havia muito espaço em seu cérebro a ser ocupado.

Eram assim os seus dias de inverno europeu. Sentia-se como se fosse um grande génio, desses que só serão conhecidos após a morte. No seu cenário, mantinha acesas as velas para que a sua imaginação ainda mais se aguçasse, para que os clássicos da música e da literatura se sentissem mais presentes. Imaginava que a sua casa fosse uma romântica água-furtada ou que da sua janela pudesse rever as serras que inspiraram tantos poetas. A sua casa estava onde estivesse ocorrendo a acção do livro que estivesse a ler... Fazia-lhe companhia, apenas o seu gato que muito paciente com ela, lhe afagava a mão de vez em quando com uma áspera mas gentil lambidela.

Numa tarde fria, alguma coisa a incomodou os olhos, talvez o cansaço da leitura excessiva, que sabe os óculos já antigos e exaustos do esforço de aumentar as letras para que ela pudesse ver. Ela parou de ler por instantes e uma avalanche de questões inundou-lhe a mente, como se houvesse ali uma multidão de pessoas a lhe fazer perguntas que ela não conseguia responder. Sentia-se afogada, aviltada, incapaz, impotente... Escondida do mundo já estava há muito tempo mas aquelas pessoas todas invadiam-lhe agora os pensamentos, com perguntas que ela não sabia responder. Queria esconder-se de sua mente, de sua imaginação, de si mesma. E ficou nesta aflição por tanto tempo que o seu gato pregou-lhe um aguda mordida na mão: havia passado o horário de dar comida a ele. De volta à realidade mais próxima, levantou-se para servir ao seu companheiro a seu tardia merenda.

Este intervalo provocado pela fome, pelo instinto de sobrevivência daquele ingénuo gato a fez reflectir. Porque teria ela de ler tudo o que Descartes, Jung ou Platão escreveram? Porque deveria ela ler Camões, Petrarca e Dante? Que obrigação teria ela de ler tudo o que se considera clássico, tudo o que compõe o repertório das pessoas a que chamamos de cultas. E o que teriam lido estes autores? O que teriam lido Sócrates, Cristo e Buda que nunca escreveram uma linha para a posteridade mas que nela estarão para sempre?O que teriam lido os druídas? Em que livro teria aprendido o seu gato, a morder-lhe a mão para dizer que estava com fome, que já passava da hora de comer sem sequer ter aprendido a ver as horas dos relógios... Não dobrou a manta branca sem antes pensar nas ovelhas que viviam apenas para produzir aquela lã silenciosamente. Depois saiu de casa e foi para a praia e sentou-se ali para tomar a hóstia solar posta em seus olhos pela mão de Deus... E comungou com a Natureza e perdoou-se...E ali sentiu o cheiro do mar e ouviu o seu linguajar transparente. O vento veio brincar com ela a eriçar.lhe os cabelos tímidos. Deitou-se na areia, a olhar para o céu e percebeu que não havia horizonte e que podia respirar o Universo sem fronteiras e sentiu-se plena dele sem notar se tinha corpo ou cérebro. Sentiu-se parte de uma harmoniosa sinfonia universal e descansou sem se sentir só. Naquele céu, uma gaivota voou... apenas por voar...

(*)Ana Cecília Ferri Soares, escritora luso-brasileira. Mora em Estoril.. 


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