Versiones 34
Octubre/Noviembre 2000 - Año del Dragón
Director: Diego Martínez Lora
Luís
Ferro Moutinho(*):
...Uma outra
história de amor: Un estudo
A princesa era jovem e bela, combinando em si mesma, e na perfeição,
uma mistura explosiva ao aparentar ser simultaneamente sexy e inocente. Quando
falava ou aparecia em publico atraia para si todos os olhares e todas as atenções.
Ninguém conseguia permanecer indiferente ao seu charme ou á sua beleza, e a
sua presença em qualquer lugar ou acontecimento nunca passava despercebida a
quem lá se encontrava. Para os efeitos deste estudo vamos tratá-la
simplesmente por Eva.
O príncipe não era assim tão jovem. Para dizer a verdade também não era assim tão belo. Fleumático e cinzentão, a sua aparência nada tinha nem de sexy nem de inocente, situando-se antes num indefinido e etéreo meio termo entre o austero e o convencional. A sua presença em qualquer acontecimento passaria aliás perfeitamente despercebida se não fosse pela importância do alto cargo que ocupava na nação, e que o retirava do anonimato da multidão em que estaria destinado a vogar se não tivesse a correr dentro das suas veias o sangue azul e real que desde há muitas gerações governava o seu pais. Para os efeitos deste estudo vamos chamar-lhe simplesmente Adão.
A princesa não tinha nascido realmente princesa.
Aliás, nunca essa ideia lhe tinha alguma vez passado pela cabeça. Conhecia o
príncipe, que costumava frequentar a sua casa como amigo da família, desde
criança e tinha dele a ideia dourada que todas as adolescentes têm sobre um príncipe
encantado que virá para as desposar montado num belo cavalo branco, e só o
facto de o então jovem herdeiro lhe dedicar alguma pouca atenção era para ela
fonte de grande alegria e de excitação.
O príncipe recorda-se perfeitamente da surpresa
que sentiu quando a menina alegre e brincalhona que conhecera, com quem brincara
prazenteiramente quando era ainda um jovem cadete da marinha, e que não vira
durante todos aqueles anos em que tinha cumprido o serviço militar no
estrangeiro, se tinha transformado numa rapariga bonita e sensual.
Eva não cabia em si de contente e felicidade. O príncipe,
o SEU PRÍNCIPE, tinha olhado para ela, olhado realmente para ela, como uma
mulher e não como uma criança. Tinha-a, a muito custo e depois de várias
hesitações, convidado timidamente para sair, e ela tinha aceite imediatamente
quase não o deixando acabar o complicado discurso que ele tinha usado para o
efeito.
Adão também não cabia em si de contente. Tudo na sua vida se tinha transformado como num sonho. A sua jovem mulher era a coqueluche de toda a nação e larga multidões de pessoas acotovelavam-se para a verem, para a saudarem, para lhe oferecerem flores. Ele sentia-se orgulhoso da euforia que a beleza e juventude de Eva provocavam entre os seus súbditos. O reino delirava de alegria e satisfação pelo casamento de conto de fadas a que assistia embevecido. E Adão sentia-se, acima de tudo, entusiasmado pelos sentimentos que tinha conseguido provocar naquela jovem tão bela e tão terna, tão humana e aparentemente tão perfeita.
Entretanto o fascínio das pessoas e dos media
por Eva crescia em catadupa. Elegante e fotogénica, era perseguida pelos fotógrafos
em todo o lado e a todas as horas do dia, incluindo na privacidade da sua casa.
Não havia qualquer separação entre a sua vida privada e a sua vida pública.
Eva nunca tinha sonhado sequer com tamanha popularidade e mediatismo,
e sentia-se até algo intimidada e assustada com o assédio e o interesse
desmedido que as pessoas tinham por si. No entanto adorava ver a sua fotografia
publicada em todos os jornais e revistas, e gostava de ler os comentários
elogiosos a seu respeito.
Adão, por seu turno, era um homem culto e educado,
curioso por natureza, interessado pelo mundo que o rodeava, que lia muito e que
estudava a fundo vários assuntos, e diversificava o seu interesse e a sua sede
de conhecimentos pelas mais diversas áreas. Embora educado para ser uma
estrela, sentia-se muito melhor nos bastidores do espectáculo.
Já Eva não era nada assim. Provida, é certo, de
grande sensibilidade e compaixão, os seus interesses imediatos eram bem mais fúteis
e mundanos, não partilhando quase nenhum dos interesses e preocupações
culturais do marido. Gostava do esplendor e do luxo, e era uma materialista por
excelência, adaptando-se na perfeição a uma vida de estrela de cinema.
Adão gostava de conversar longamente, trocar
ideias e pontos de vista, partilhar conhecimentos, mas não encontrava em Eva
uma interlocutora á altura, já que por falta de interesse ou por falta de
bagagem cultural, ela se mostrava sempre indisponível. Bela, sexy e com grande
sentido de humor, Eva seria seguramente uma excelente companhia para alguns
encontros ocasionais e fortuitos, mas não seria nunca uma opção válida
quando se escolhe alguém para compartilhar connosco o resto da vida. Mas disso,
e talvez pelo pouco tempo de namoro e noivado que tiveram, Adão só se
apercebeu muito mais tarde.
Após os primeiros tempos de casamento, no entanto,
os padrões de comportamento de Eva começaram a mudar radicalmente. Ela
alternava períodos de grande estabilidade emocional com outros de constantes
crises de choro e de bruscas alterações de humor, de uma forma perfeitamente
repentina e inesperada. Ao principio estes problemas foram atribuídos ao stress da vida pública e á bulimia de que a princesa sofria, mas
ao fim de seis meses era já evidente para todos de que algo de muito mais grave
se passava, e o próprio Adão não conseguia esconder a sua preocupação pela
saúde mental da sua mulher.
Preocupada com este facto, a própria rainha
convocou ao palácio todos os editores de todos os jornais, pedindo-lhes que
respeitassem, acima de tudo, a privacidade da princesa. A mensagem ficou clara
para todos: “este assunto é tabu”. O assunto nunca foi levantado.
Adão era essencialmente um homem muito ocupado.
Era o representante da sua mãe, a rainha, em muitas ocasiões e além disso era
chefe de vários regimentos militares e era o presidente e patrono de outras
tantas organizações. Alimentava além disso alguns hobbies
como o pólo e a caça. Era por isso um homem sem muito tempo, quer para si próprio
quer para a sua família, e precisava ao seu lado de uma mulher que o pudesse
compreender e amar dessa maneira, alguém que, ou por ser tão ocupada como ele,
ou por ter confiança nele e em si própria, não se sentisse diminuída á sua
beira.
Mas Eva tinha ciúmes de tudo e de todos. Tinha ciúmes da família de Adão, dos amigos de Adão, e do trabalho de Adão. Queria-o só e unicamente para si, a todo o tempo e a toda a hora. Desconfiada e insegura, vigiava-o e atribuía-lhe responsabilidades por tudo o que ela entendia que não corria bem na vida e na relação deles.
Sendo um solitário por natureza, Adão necessitava
por isso de alguns momentos sozinho consigo próprio, que utilizava para fazer
uma introspecção pessoal e também para recarregar as suas baterias. Tinha
apesar disso um grande núcleo de amigos, que tinham um papel muito importante
na sua vida, e aos quais ele dava grande valor e apreço, escutando as suas
opiniões com muita atenção. Como
tinha casado tarde, os seus amigos faziam parte integrante do seu núcleo
central de afectos, e Adão nunca pensou que poderia vir a perde-los, ou que o
casamento pudesse de alguma maneira alterar fosse o que fosse na sua rotina.
Acreditava piamente que Eva gostava dos seus amigos tanto como ele, pelo menos
assim o parecia, e imaginou que a única coisa que mudaria era que ao invés de
vir a estar sozinho com eles, no futuro estariam ambos com eles.
Com o tempo porém, Eva passou a revelar que afinal
não gostava assim tanto dos amigos do marido, e muito menos confiava neles.
Perante a surpresa e a incredulidade de Adão acusou-os de serem desleais e
pouco honestos, de não gostarem dela, de a tentarem ridicularizar, e de fazerem
todos os possíveis para se meterem no meio deles. Ciumenta como era afastou-os
um a um, tratando-os de uma forma fria e hostil, e tentou que Adão fizesse
exactamente o mesmo.
Os amigos de Adão tinham por ele uma grande estima
pessoal e intelectual, alicerçada em anos e anos de convívio e de muito bom
relacionamento. Alguns deles de facto não nutriam por Eva uma grande simpatia,
e outros não gostavam mesmo dela. Achavam que ela não era a mulher que Adão
precisava para ser sua companheira e para o fazer feliz. No entanto respeitaram
a sua decisão, e muitos esforçaram-se mesmo por tentar integrar a princesa no
seu núcleo de amigos, mas foram barrados pela sua intransigência e obstinação.
Aos poucos foram percebendo que a sua presença não era desejada, e Eva tinha
uma maneira muito especial e desagradável de lhes demonstrar que de facto assim
era. Aperceberam-se facilmente de que Adão tinha sido completamente
ultrapassado pela situação, e que a presença deles só contribuía para lhe
criar maiores problemas a ele, e aumentar o clima de mau estar e de permanente
clivagem em que viviam. Pese embora todo o carinho que tinham por ele,
afastaram-se discretamente para não serem eles o pomo de discórdia entre ele e
Eva.
Adão era de todos o mais surpreendido. A mulher
autoritária, ciumenta e possessiva que tinha diante de si, em nada se parecia
com a jovem terna e afectuosa com que se tinha casado há tão pouco tempo.
Optimista e apaixonado, atribuiu á juventude e imaturidade da mulher algumas
das suas atitudes bruscas e irreflectidas, e pensou que com o tempo e com a
confiança que o amor dele lhe daria, Eva iria compreender que de facto conviver
e falar com outras pessoas para além dela, era tão indispensável para ele
como comer ou respirar. Esperançado nesta hipótese, e para agradar á mulher
que queria ver feliz, Adão não só se afastou dos seus companheiros de sempre,
como até do núcleo duro dos seus amigos íntimos. Para a satisfazer
completamente e com o coração despedaçado, Adão separou-se inclusivamente do
mais fiel e antigo de todos os seus amigos, um cão labrador
que Eva detestava sem nenhuma razão aparente, ou talvez por representar, também
ele, uma ligação ao passado que ela não conseguia suportar.
Eva porém nunca parecia satisfeita. A cada exigência
que lhe era satisfeita, ela subia gradualmente o nível da fasquia. As vitórias
que conseguia atribuía-as á sua própria força e personalidade. As cedências
que Adão lhe fazia, atribuía-as á fraqueza dele. Não se apercebia que Adão
recuava estrategicamente apenas para lhe dar tempo a que ela pudesse mudar o seu
comportamento, compreender que não estava a agir correctamente com ele, e assim
sendo ela pensava que o tinha sob o seu completo domínio e que seria apenas uma
questão de tempo até o seu controle ser total e definitivo.
Adão sempre pensou que com o tempo lhe conseguiria
fazer entender que o afecto e carinho que sentia por outras pessoas em nada
interferia com o amor que sentia por ela. Muitas vezes lhe tentou explicar que o
amor não era algo que pudesse ser medido aos quilos como se fosse fruta, nem
sequer quantificado como sendo algo de finito. Ela parecia não querer entender
que os afectos são infinitos e que portanto, e ao contrário do que ela
julgava, ele não tinha apenas 10 quilos de amor para distribuir por todos, e
que portanto se desse 1 quilo que fosse á totalidade das outras pessoas que o
rodeavam, não ficariam apenas os outros 9 quilos para lhe dar a ela.
Eva no entanto via as coisas de uma maneira um
pouco diferente. Não acreditava nada nessas histórias de partilhar afectos que
Adão inventava para a enganar. Ela sabia perfeitamente que só haviam 10
quilos, e para ela só haviam portanto duas alternativas: ou tinha os 10 quilos
todos para ela, ou então não queria nenhum.
Ao longo do casamento, Eva foi vista por muitos médicos
e psiquiatras, e quase todos chegaram á conclusão de que nada poderiam fazer
para a ajudar. Ela sofria de sérios distúrbios de personalidade, motivados
pela sua própria fraca auto-estima e consequente dificuldade de relacionamento
com as outras pessoas. Os seus gritos, histerias e comentários sarcásticos
tornaram-se conhecidos e temidos por todo o palácio, e era evidente para todos
os que os rodeavam que Adão era tão vitima destas cenas como qualquer um dos
seus empregados.
Habituado
a lidar com pessoas calmas e equilibradas, Adão sentia-se completamente perdido
e confundido no meio das tormentas e ciclones criados pela histeria e
descontrole de Eva. Necessitava acima de tudo de estabilidade, e não suportava
as oscilações diárias e ás vezes horárias de Eva, que viravam do avesso
todo o seu mundo, habitualmente tão tranquilo. No entanto, preocupado pela saúde
mental da mulher, deixou de a culpar por muitos dos seus actos irracionais, e
preferia manter-se afastado.
Mas
Eva, entretanto, parecia ter entrado numa espiral de violência. Por várias
vezes, após discutirem, Eva pegava em objectos cortantes e mutilava-se a si própria,
ou arrancava o cabelo com as próprias mãos enquanto berrava compulsivamente,
em actos perfeitamente animalescos e irracionais. Já habituado aos seus gritos,
Adão tinha criado uma couraça dentro de si próprio, e as tentativas
irracionais de Eva para chamar a sua atenção, apenas o afastavam dela cada vez
mais.
Então,
e como retaliação, começaram as infidelidades. Adão não era um marido
minimamente ciumento, e dava portanto a Eva toda a liberdade de se movimentar.
Mas quando ocasionalmente os seus conselheiros e amigos lhe comunicavam que
determinada pessoa deveria ser dispensada, fosse ele um motorista ou um
guarda-costas, Adão não fazia qualquer tipo de perguntas. Afinal, era apenas
mais um dos affairs de Eva de que ele
só muito mais tarde tomava conhecimento.
Nesta história, e em como quase todas as histórias
de amor existe ainda uma terceira pessoa. Esta pessoa era uma mulher, uma antiga
amiga e namorada de Adão, a quem ele não via nem falava há já vários anos,
e durante todo o seu casamento, mas a quem recorreu numa hora de dificuldade e
de desespero, e que quando ele estava á beira do abismo o escutou e lhe
estendeu um ombro amigo. Para os efeitos deste estudo vamos chamá-la
simplesmente Madalena.
Eva depressa se apercebeu da existência de
Madalena. Despeitada por o marido a ter trocado por uma mulher muito mais velha
e mais feia, embora já não o amasse, decidiu vingar-se deles, e defender
simultaneamente a sua posição. Hábil e manipuladora, e fazendo-se valer da
imagem imaculada que as pessoas tinham de si criada pelos media,
e ainda da sua capacidade inata de perceber aquilo que tocava as pessoas e o que
deveria dizer para as fazer sentir-se bem, criou uma autêntica cortina de fumo
sobre o assunto, ajudada ainda e sempre pelos media
que pretendiam continuar a aproveitar a sua imagem de princesa infeliz para
ganhar dinheiro. Ficou conhecida no que a esta história diz respeito como sendo
a «vitima».
Adão encontrou finalmente, longe de Eva e ao lado
de Madalena, a tranquilidade e felicidade de que necessitava. A sua atitude foi
criticada por todos e foi ridicularizado nos jornais e na opinião pública por
trocar uma princesa tão jovem e tão bela, tão admirada e tão amada por
todos, por alguém tão antipática e tão pouco apropriada para si como
Madalena. Abnegado e com grande sentido de estado, Adão sofreu em silêncio
todas as humilhações, e nem uma única vez tentou defender-se de todas as
acusações e insultos que lhe dirigiram, ou sequer atacar Eva. Acima de tudo
era a mãe dos seus filhos e fora a sua mulher, e tinha que defender a sua
imagem quer pessoal quer como símbolo que fora da família real. E além disso
a sua própria felicidade estava ali ao virar da esquina, na pessoa de Madalena.
Mas no âmbito deste estudo ficou para sempre conhecido como o «vilão».
Madalena era uma mulher de meia idade, feia e de
aspecto antipático, com um casamento anterior e filhos desse mesmo casamento.
Tinha sido namorada de Adão há muitos anos atrás, mas o romance não tinha
tido seguimento porque foi considerada pela família real como sendo pouco
apropriada para consorte do príncipe herdeiro. Mas apesar do seu aspecto, era
de facto uma pessoa muito sensível e carinhosa, e os seus sentimentos por Adão
eram genuínos. Também ela foi acusada, gozada e ridicularizada nos jornais e
na opinião pública, e foi usada como estereotipo da mulher megera,
interesseira e infiel. Também ela nunca falou nem se defendeu. Mas o seu papel
ficará para sempre conhecido nesta história como sendo o da «vaca».
Eva acabou por falecer num acidente infeliz, na
companhia de um dos seus namorados. Por ironia tentando escapar dos seus eternos
inimigos e aliados, os repórteres. A sua enorme fama e popularidade enquanto
viva, acabou por a transformar num mito depois de morta. Figurará daqui a
muitos anos ao lado de figuras míticas como James Dean, Marilyn Monroe ou Jim
Morrison. A sua imagem continua a ser um exemplo de amor e de dedicação.
Adão e Madalena continuam a ser o «vilão» e a
«vaca».
(*)Luís Ferro Moutinho, Escritor portugués. Mora no Porto.