Versiones 34
Octubre/Noviembre 2000 - Año del Dragón
Director: Diego Martínez Lora
Renato
de Caldevilla(*):
A pequena e
resoluta Maria
Esta é uma pequena estória que poderia apenas ser fruto de uma imaginação portentosa mas, infelizmente uma narrativa verdadeira, conquanto muitos que não tenham vivido os anos da década de quarenta, possam considerá-la uma pura ficção, ou pelo menos duvidar que tudo isto se tenha passado.
Os acontecimentos têm a sua origem numa aldeia do concelho de Mesão-Frio que assistiu ao nascimento da protagonista, filha de mãe solteira, uma das muitas trabalhadoras rurais contratada à jorna e que , se um pouco atraentes, chamavam a atenção libidinosa de todos aqueles que por perto a seduziam, começando, naturalmente, pelo patrão.
Protegendo a verdadeira identidade, vamos conhecê-la por Maria, nome vulgar mas suficiente na circunstância.
Começando a vida num ambiente muito pobre que os tempos da segunda guerra mundial ainda pioravam mais, cedo se viu, na disputa com os irmãos, no pedaço de sardinha salgada de barrica que lhe tocaria, porquanto sempre lhe sobrava a cabeça, parte do peixe menor e menos comestível, assim como a acompanhar o irmão a pedir à porta da padaria e da loja da mercearia, esperando, cheia de fome, sobrar-lhe um naco de pão de milho, já que pedir a envergonhava, sendo diferente do irmão e incapaz de, como ele, ir aos ovos das galinhas da vizinhança.
Com sete anos de idade, Maria acompanhava a mãe à Régua, transportando ambas à cabeça, feixes de carqueja que iria ser negociada na feira, produto utilizado no acender de fogões de lenha daquela época e que, com muito e penoso trabalho era roçado nos montes, quantas vezes sob forte chuva ou abundante nevão. Aterrorizava-se quando, ao passarem perto de um olival, eram perseguidas por uma saraivada de pedras, atiradas por entre estrepitosas e sinistras gargalhadas e um esquisito cheiro de azeite estragado, enquanto a mãe lhe dizia: “—Não ligues, as meninas querem brincar connosco!” E seguiam para a feira, o certo é, nenhuma das pedras alguma vez as atingiu.!
Bem cedo foi obrigada a servir, numa abastada casa de uma aldeia localizada no sopé da serra do Marão. Maria deveria ter por essa altura dez anos e a guerra já acabara.
O trabalho daquela casa era muito variado, desenvolvendo-se desde as habituais lides na cozinha, à lavagem, limpeza e passagem ao ferro de carvão das peças de roupa, ao labor das actividades rurais, como dar de comer à vaca e à cabra, tratar do porco e das galinhas, acarretar da fonte até à residência os canecos de água, abrir os regos nos campos para a rega, empreitada levada a cabo na comunidade a horas certas do dia ou da noite, executar a vindima desde o corte das uvas ao seu transporte até ao lagar da casa. Como Maria era forte de músculos, ainda que de estatura meã, o seu patrão colocava-a com um cesto de uvas pesando mais de cinco arrobas, à frente da fila dos homens rogados para aquele duro trabalho, afim dela lhes dar o exemplo de como os fracos se podem transformar quando a necessidade assim o reclama! E lá ia ela com o seu metro e quarenta de altura, cesto de maior tamanho de cogulo, num menear de ancas característico e motivado pelo exagerado peso da carga. Agora, uma coisa era certa, a fome desaparecera e Maria não tinha de continuar a antiga luta pelo lombo de uma sardinha salgada de barrica!
Certo dia, uma senhora da cidade aliciou Maria para deixar a aldeia e seguir com ela para o Porto. O sonho acalentado de viver numa grande metrópole e ver o mar que nunca conhecera, acabaram por seduzi-la e fazer com que ela abandonasse as suas duras ocupações, rumando para a capital do Norte.
Não foi diferente a sua sorte, da da mãe. O filho da senhora haveria de seduzir Maria, com o pretexto de a ensinar a ler. Mil promessas levaram-na ao engano e a seguir o mau exemplo da mãe, engravidando. Expulsa e internada num lar de mães solteiras, depressa Maria se deu conta do “menino” da casa não se responsabilizar pelo que havia feito, na cumplicidade da mãezinha e de mais outras tantas pessoas, para quem a diferença social justificava tão sinuosa atitude.
Maria arrastou a sua ignorância e o seu orgulho ferido pelos caminhos de um destino penoso e difícil, arrostando a partir daí com a responsabilidade dupla de uma mãe e de um pai. Acabou por triunfar na sua tenacidade de boa cepa transmontana, trabalhando sempre com honestidade para nada faltar á criança que gerara e passara a ser a alegria e o enlevo da sua vida.
Hoje Maria visita com saudade a aldeia onde carregava os cestos de uvas sobre a sua frágil cabecita e, sem odiar aquele lugar, sente que já não conseguiria, com a actual idade de sessenta e três anos, readaptar-se a uma existência semelhante à dos seus verdes anos. Subitamente lembrou-se de “Estrelita”, a cabra que lhe dava marradinhas de carinho nas pernas e duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelos olhos esverdeados.
(*) Renato de Caldevilla, poeta e escritor português. Mora no Porto.