Versiones 35
Diciembre 2000 / Enero 2001 - Año del Dragón
Director: Diego
Martínez Lora
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Luis Ferro Moutinho:
OLHO, SURPREENDIDO ...
Olho, surpreendido, para a
jovem que está ao meu lado
e descubro, horrorizado,
mas também sem qualquer espécie
de dúvidas,
de que aquilo que eu sentia
dentro de mim
era de novo aquela sensação
que eu esperava nunca mais vir a sentir,
aquela sensação mesquinha de
angústia, de incerteza, de dúvida,
aquela sensação viscosa,
desagradável, desprezível,
que eu julgava, muito
sinceramente, e se calhar muito ingenuamente,
que a minha idade, maturidade
e experiência
me tivessem posto já a salvo
e a coberto de cair,
uma vez mais,
nas suas teias ardilosas e
subtis.
Contra toda a minha vontade
não pude deixar de admitir
que aquela sensação que me atormentava
não podia ser outra senão
aquele velho inimigo que eu
julgava ter há muito soterrado dentro de mim,
e que ressurgia agora,
inesperadamente,
com uma nova vitalidade
avassaladora:
o ciúme.
É uma lei inquestionável da
Física que
um corpo não pode estar em
dois sítios diferentes, ao mesmo tempo.
Da mesma maneira é também
inquestionável que
dois corpos diferentes não
podem nunca ocupar o mesmo espaço, ao mesmo tempo.
Mas sendo igualmente uma lei
inquestionável do Amor que pode, de facto,
existir Amor sem ciúme,
é também inquestionável que
não pode nunca
existir ciúme sem Amor,
um qualquer tipo de Amor,
seja ele qual for,
ainda que doentio e esmagador.
O que só me podia levar a uma
única,
e muito preocupante,
leitura da situação.
O ciúme que eu sentia, não
podia nunca ser confundido
com algo inócuo e sem
significado.
Eu tinha que sentir por ela
um qualquer tipo de Amor,
fosse ele qual fosse,
o que excedia em muito as
minhas expectativas em relação a ela,
ultrapassava todas aquelas que
eu entendia serem as minhas necessidades imediatas,
e porque não dize-lo,
contrariava mesmo frontalmente
a minha vontade.
Ela prosseguia, alegre e
jovial,
inadvertida dos meus mais
profundos pensamentos,
e continuava a falar-me,
despreocupadamente,
dos mais variados e triviais
assuntos mundanos.
Não, não havia qualquer tipo
de engano.
A mentira só nos pode cegar
enquanto continuamos na ignorância.
E, ás vezes, uma qualquer
pequena coisa,
por mais insignificante que
seja,
abre-nos a visão,
o pensamento,
a consciência,
para algo muito maior do que a
realidade,
como se não pertencesse
sequer a esta dimensão,
e é ai mesmo que nós nos
sentimos
por não termos sido capazes,
até agora,
de nos apercebermos desta
realidade,
agora tão imediata,
que brilha diante dos nossos
olhos.
Ela continua a contar-me,
divertida,
de como se tinha divertido
tanto com as pessoas com que tinha saído ontem,
e eu continuo a ouvi-la,
enciumado,
e tentando parecer o mais
descontraído e indiferente possível,
como se as suas palavras não
fossem balas
que me atravessassem a pele,
e vazassem o meu corpo de um
lado ao outro.
E como teria sido fácil,
penso,
ter tentado usar toda a minha
maior experiência,
a minha maior idade e
maturidade,
para a fazer sentir-se mal,
para a fazer compreender que não
tinha gostado do que ela tinha feito,
e tinha ficado muito magoado
por isso,
para, subtilmente e
sagazmente,
a induzir a não tornar a
repetir o seu comportamento,
convence-la de que havia algo
de errado naquilo que tinha feito,
que tinha infringido alguma
regra elementar do bom senso,
desconhecida de tudo e de
todos,
mas conhecida apenas pela
insegurança e desvario
do meu próprio ciúme,
doentio e galopante.
Sim, como teria sido fácil
fazer isso.
E, no entanto, eu não o fiz.
E não o fiz, não porque não
me apetecesse,
nem por um qualquer ultimo
resquício de altruísmo da minha parte,
mas apenas porque, ainda que
agora me parecesse absolutamente inconcebível,
aquilo fora, de facto, o que
eu sempre quisera.
Não fora eu que dissera que não
queria nenhum tipo de compromissos,
nenhuma relação que me
trouxesse qualquer tipo de obrigações,
ninguém que me pedisse para
deixar de fazer coisas absolutamente fundamentais para mim,
que me ocupasse o tempo que eu
não queria dar,
que tentasse perturbar, nem
que fosse ao de leve, o meu pequeno mundo de vícios?
Não era eu o auto-suficiente,
que se sentia bem consigo próprio
e com o mundo,
que queria dispor livremente
de todo o meu tempo,
desfrutar de todas as minhas
liberdades duramente adquiridas,
navegar alegremente á deriva
entre amigos e paixões,
emprestando-me sem me
entregar,
e ainda assim, para
salvaguardar egoístamente a minha parte,
apenas quando apetecesse “aos
dois”?
E não o tinha repetido vezes
sem conta,
em várias ocasiões,
e de várias maneiras
diferentes,
como para me certificar,
e me tranquilizar,
de que ela tinha entendido bem
a mensagem?
E não se tinha ela portado,
surpreendentemente, á altura,
quantas vezes engolindo a
custo o seu próprio ciúme e insegurança,
muito mais próprios aliás da
sua tenra idade do que da minha,
buscando forças não se sabe
bem onde,
e refugiando-se apenas na
confiança que, vezes sem conta,
eu apregoava
que podia, e devia, ter em
mim?
Sim, que moral tinha eu para
lhe dizer, agora,
que tinha ciúmes de que ela
saísse igualmente com outras pessoas,
quando, toda a minha vida,
fora este o tipo de relação
com que eu sempre sonhara?
E com que moral podia eu dizer
a mim próprio que, se calhar,
afinal eu não tinha a força
e a coragem suficiente para viver as minhas próprias convicções?
Como me podia convencer a mim
próprio que algo tão menor como o ciúme
pudesse interferir tão
fortemente na linha de vida que eu tinha escolhido para mim próprio?
E, acima de tudo,
como podia eu deixar que a
minha inteligência e racionalidade
fossem toldados ao ponto de não
conseguir vislumbrar que
não havia razão nenhuma para
sentir quaisquer ciúmes dela,
nem de nenhuma daquelas
pessoas com que ela ocasionalmente saia,
normalmente quando eu próprio
saia com outras pessoas?
Fechei os olhos durante um
segundo,
dividido entre os meus mais básicos
instintos primários e aquilo que eu sabia estar certo,
hesitante entre ceder ao medo
ou continuar o sonho,
entre o eu negro ou o eu luminoso.
Mas foi só por um segundo.
Depois abri os olhos, e
beijei-a ternamente na face.
Ela parou de falar, e
olhou-me, surpreendida.
Eu senti vergonha da minha própria
fraqueza e desconfiança,
e não evitei corar um pouco
quando olhei para ela, como um remorso tardio.
As palavras pareceram escorrer
de mim com uma quente sinceridade:
-“Sabes, ... eu adoro que tu
te divirtas.”
Luís Ferro Moutinho, engenheiro e escritor portugués. Mora na Senhora da Hora.