Versiones 36
Febrero/Marzo 2001 - Año de la serpiente
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Director: Diego Martínez Lora


la aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...


Paulo Vicente Salvador(*):

Filipinas


Estar vivo

Foi como se fôssemos passar um fim-de-semana a Espinho, ali, por entre as ruas geométricas com números em vez de nomes e o cheiro do ar marinho que reconheço imediatamente ao primeiro relance.

Vejo em mim sintomas da maturidade, cruzar meio mundo e continuar preso nas coisas que se deixaram para trás, estar entre gentes diferentes e viver a relação com elas com uma naturalidade própria de quem as conhece há muito tempo. Viver e não ter a sensação de que se vive, só o reconhecendo quando reflectimos, quando interrogamos o cérebro, ”sim, estou vivo”, como fez Descartes, já não é como antigamente em que a certeza de estar vivo fervilhava no sangue, chegava-me sem a chamar, misturava-se com o quotidiano, nos pequenos gestos, nos grandes acontecimentos, nos sonhos nas horas de sono.

Foi preciso deixar passar um ano para poder constatá-lo, embrenhado como estou na guerra desumana e cruel do dia-a-dia, que exige toda a atenção, todo o empenho, todas as reservas de todas as variadas capacidades que o ser humano reúne em si. Durante um ano não me pude reconhecer.

As férias valem agora porque permitem recordar e reencontrar aquela parte de nós que não consegue emergir durante o resto do ano.

No entanto, este reacordar não é brusco, não surge quando se desce do avião e se leva com a lufada de ar quente e húmido dos trópicos a que já estamos habituados, nem quando se espera – sempre por trás da maldita linha amarela já meio apagada– que o funcionário da alfândega se canse de exibir os seus pequenos poderes discricionários e nos deixe entrar no país carimbando um selo meio apagado numa página já muito carimbada do passaporte, ou quando se ouve a sinfonia de buzinas dos veículos amolgados, em permanentes manobras em contramão ou investindo sobre o passeio e se respira de novo o doce caos dos países sem tempo. Pelo contrário, este reacordar leva tempo, precisa de muitas sensações diferentes acumuladas para ser enfim activado. Essas sensações chegarão.

 

Reflexões

As Filipinas no mapa assemelham-se a um esqueleto sem pernas nem braço esquerdo, a ilha de Luzon tomando o lugar do crânio,  as pequenas Visayas parecem os ossos do esterno despedaçados, ao sul Mindanao é a bacia e a oeste a esguia ilha de Palawan é um enorme braço de gigante.

Há sempre um folclore semi-erudito, divulgado nos meios de comunicação social e nos guias de viagem sobre cada país. Sobre as Filipinas esse folclore anda à volta invariavelmente das imagens de crucificações que as TVs divulgam por todo o mundo na altura da Páscoa e dos nomes Marcos, Pinatubo e ultimamente Abu Sayyaf. Os mais curiosos talvez reconheçam ainda o nome de Rizal e os de melhor memória com certeza recordam as mulheres Imelda e os seus milhares de sapatos e Corazón, a chorosa viúva herdeira do seu marido assassinado.

Sei que normalmente este folclore não resiste à observação do quotidiano. No entanto, aqui nas Filipinas, são estes os nomes e os assuntos de que toda a gente fala connosco: “As crucificações acontecem na região sul de Luzon. Há também flagelantes, que chicoteiam as suas costas até ficarem vermelhas de sangue. É tudo coisa de camponeses, aqui em Manila não há nada disso”; “Sim, Marcos era uma pessoa muito inteligente mas era muito corrupto – um tipo muito teimoso, um verdadeiro illokano. Apesar de tudo, no seu tempo sabia-se quem mandava e as Filipinas desenvolveram-se muito nessa altura. Conseguiu afastar a oligarquia do poder”; “A erupção do Pinatubo quase não causou vítimas porque é um daqueles vulcões que dá aviso prévio. Mas destruiu tudo à volta e alterou o clima em todo o mundo. Mesmo Manila foi atingida pelas suas cinzas. Os americanos tiveram que abandonar as suas bases nas Filipinas por causa do Pinatubo – ah, ah, ah, o que os políticos não conseguiram fazer em vinte anos fez o Pinatubo em meses. Agora os campos que receberam as suas cinzas são extraordinariamente férteis, e os camponeses enchem os celeiros de arroz”;  “Esses do Abu Sayyaf são piratas, é falso que lutem por uma pátria muçulmana; querem viver sem trabalhar, com o dinheiro dos roubos e dos resgates; conhecem bem o terreno –esse mar de Sulu de pequenas ilhas cheias de reentrâncias e vegetação luxuriante -e não tem medo de morrer. O Exército só não acaba com eles porque também está metido no negócio”; “Rizal era um creoulo de Luzon, pertencente à oligarquia filipina. Foi ele que criou a consciência nacional filipina com os seus romances em que criticava o regime colonial. Morreu fuzilado pelos espanhóis em Manila, nas vésperas da insurreição nacional. Dizia – e muito bem, ainda hoje essas suas palavras fazem sentido – que a solução para as Filipinas passa pela Educação. É o grande herói nacional, no seu túmulo guardado 24 horas por dia fica o km “0”, de onde todas as distancias nas estradas são contadas”. “Imelda era elegantíssima, a companheira perfeita do seu marido. É certo que só gostava de coisas importadas mas isso é muito filipino. Desenvolveu muito as artes e ajudou a sua terra”. “Corazón trouxe a liberdade mas também a oligarquia de volta. Prometeu muito e fez pouco”.

Todos dizem o mesmo sobre os mesmos assuntos, é como se todos tivessem acordado entre si o que se deve dizer aos estrangeiros, o que eles acham que estes querem ouvir. Dizem-no sempre no mesmo tom de voz indiferente, de quem vai ao mercado comprar legumes, olhando para um ponto no espaço atrás e abaixo de nós.

Rapidamente notamos que as Filipinas é um país com graves problemas de afirmação nacional, os seus cidadãos mais proeminentes tentando comportar-se como ocidentais e tentando esconder a sua raiz local, rindo-se de forma insultuosa da cor mais escura dos seus concidadãos, dos dialectos locais em ritmo lento. Mesmo a língua nacional, o Tagalog, não consegue suster o avanço do Inglês, essa língua do colonizador que continua a lançar o seu poder hipnótico sobre esta nação-arquipélago. É que as Filipinas reúne em simultâneo as duas principais condições para desenvolver um complexo de inferioridade: ser um arquipélago, e ter passado pela experiência  colonial (ainda por cima, não uma mas duas – a espanhola até 1898 e a americana até 1946). Há uma obsessão relativamente os estrangeiro, “o que ele vai pensar de nós?”, há que manter as aparências, e com o tempo as aparências misturam-se na realidade e depois já ninguém consegue distinguir uma e outra e a sociedade filipina é assim, uma grande confusão. Em Manila recordo um comentário que uma vez li de um intelectual brasileiro a dar um exemplo de uma mente colonizada : a daquele prefeito do Rio de Janeiro, que vindo dum cargo de representação da sua nação em Paris, não descansou enquanto não introduziu essa praga dos pombos – que ele trouxera de Paris – na bela cidade carioca; e como resultado os pombos acabaram com a população de papagaios, que até aí, eram os donos dos pontos altos da cidade e lhe emprestavam cor e individualidade. Assim se faz também o mundo, e atrevo-me a dizer que, for a do Ocidente rico, assim se faz principalmente o mundo.

Deambulações

Para o viajante conhecedor, que já me prezo de ser, houve três experiências para recordar durante o nosso périplo. O primeiro, por ordem cronológica, foi a chegada ao “View Point” sobre o enorme anfiteatro de terraços de arroz de Batad, ao fim de três horas de caminho debaixo de chuva e vegetação tropicais. Aí, a vista pode alargar-se sobre a enorme encosta da montanha cortada por linhas horizontais perfeitas, linhas onde o arroz da montanha cresce uma vez por ano, ajudado por um sistema de irrigação invisível mas que está lá, como se pode constatar pela reflexão argêntea tão típica das águas paradas que nos chega de algumas dessas linhas. E lá abaixo, no sopé da encosta, a pequena aldeia pitoresca de Batad, rodeada por todos os lados por terraços, sem electricidade nem estradas, habitada por homens e mulheres com um quotidiano que já quase não existe. Pela sua espectacularidade e pelo esforço que significa lá chegar, Batad fez-me recordar Machu Picchu .

Segunda experiência a recordar : as enormes explosões de dinamite subaquáticas, enquanto mergulhamos nas belas águas coralinas ou nas dramáticas paredes pelágicas na costa leste da ilha de Mactan. Por vezes o som é tão intenso que não conseguimos controlar os músculos e sofremos breves espasmos. É impossível localizar a origem da explosão, uma vez que o mar não tem superfícies sólidas para reflectir o som. Sabemos  que a dinamite é um dos apetrechos de pesca nesta zona do globo, sem dúvida que é uma técnica estúpida e desperdiçadora mas, como pudémos constatar, de grande popularidade. Rara foi a vez que mergulhámos sem ter que conseguir lidar com um ou dois destes grandes estrondos.

Finalmente, o nosso encontro com o peixe-rã, um desses bichos que por ter uma fisionomia de tal forma horrorosa acaba por apresentar uma grande beleza. Que mecanismos levam a Natureza a criar tais figuras monstruosas? Encontramo-lo aos 18m, de cor de cloro, imobilizado sobre o fundo apoiado nas suas dorsais que, pelo seu volume e forma, parecem braços. A sua boca semi-aberta deixa adivinhar uma cavidade bocal da mesma cor de cloro. O peixe é achatado lateralmente, tocamos-lhe, ele parece querer fazer-se passar por esponja, faz trapézio sobre um dos apoios, aguenta-se, continua especado. E só então reparamos que mesmo em frente a este exemplar há um outro, do mesmo tamanho, de preto vivo e brilhante e pintinhas brancas, também imóvel, e nós caímos que nem uns patinhos, cinco minutos à volta dele sem reparar que ele lá estava, há coisas que ainda me conseguem surpreender. Adeus, peixe feio, até à próxima, algures noutras águas quentes deste mundo cada vez mais pequeno.


(*)Paulo Vicente Salvador, escritor português. Mora na Senhora da Hora.


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