Versiones 39 Agosto - Setiembre 2001 - Año de la Serpiente
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           Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...


Luíz Ferro Moutinho(*):

Libertem-se


Quem é que nunca cometeu erros na vida? Quem é que nunca se enganou? Quem é que nunca mudou a sua opinião? Nós somos livres de a qualquer momento das nossas vidas mudarmos totalmente a nossa maneira de ser, e a nossa maneira de encararmos os outros, e a nossa maneira de encararmos a vida em geral, e na realidade até só não o fazemos mais vezes porque tememos que os outros estranhem as nossas mudanças, e que inclusivamente nos achem ridículos nas nossas novas opiniões e sentimentos, no nosso novo eu. No entanto se se usa frequentemente o termo «errar é humano» como paliativo para muitos dos nossos erros, e na realidade até o é, porque é que não se diz, da mesma maneira, que corrigir os nossos erros é ainda mais humano? Mudar de opinião não é de maneira nenhuma um sinal de incoerência, ou de inconstância, é antes um sinal de evolução, de mudança, e de liberdade para crescermos, e para nos conhecermos, em suma para sermos nós próprios. A mudança é a maneira como nos aproximamos de Deus, e de nós próprios.

Vem tudo isto a propósito de uma entrevista que ouvi, há já alguns anos atrás, ao músico inglês Sting, algum tempo depois da sua (triste) separação dos restantes elementos dos Police. Nessa entrevista, a que eu não dei na altura nenhuma importância, e que classifiquei mesmo de ridícula, o músico explicava a sua (bastante discutível) opção por uma carreira a solo, e igualmente a sua (bastante discutível) opção pelo primeiro single que editara nessa condição de solista, uma música intitulada ‘If you love somebody set them free’. E dizia o senhor Sting, com o ar mais sério deste mundo, que a razão por que escolhera para seu primeiro single aquela música em particular, e não outra qualquer, era porque necessitava urgentemente de se libertar, a si mesmo e aos outros, do peso imenso de ter composto uma música tão opressiva e tão doentia como ‘Every breath you take’. Recordo ainda hoje o meu ar de espanto e de incredulidade ao ouvi-lo dizer que, já vezes sem conta, se tinha arrependido amargamente de ter composto aquela música, da pena imensa que sentia por todas as pessoas que se identificavam com a letra daquela canção, e referiu inclusivamente, a mero titulo de exemplo, a pena e o nojo que sentira por um casal inglês de meia idade que lhe tinha escrito uma longa e melosa carta, agradecendo-lhe encarecidamente por ele ter escrito aquela música, elogiando-o como letrista e como compositor, e dizendo-lhe que a sua canção sintetizava perfeitamente, dia após dia e hora após hora, os últimos trinta anos de amor e de felicidade que, segundo eles, teriam partilhado juntos, e que ele classificou de “pessoas obviamente doentias” e com uma “visão completamente distorcida do amor”. Nessa altura achei que aquilo também já era demais e resolvi mudar imediatamente de canal, e deitei para detrás das costas os problemas existenciais que obviamente atormentavam o senhor Sting.

Devo dizer desde já, e para ser inteiramente justo e sincero com quem quer que esteja a ler este artigo (se é que até aqui houve alguém que possa não ter notado isso), que eu tenho desde há muito tempo um caso mal resolvido com o senhor Sting. A verdade é que eu não me consigo convencer de que não foi por (inteira) culpa dele que os Police, um dos grupos favoritos da minha juventude, se separaram (o que de resto a dita entrevista só me veio ajudar a confirmar). Canções como ‘Message in a bottle’, ‘de do do do de da da da’, ‘Walking on the moon’, ‘Every little thing she does is magic’ ou ‘Don’t stand so close to me’ haverão de ficar para sempre na minha memória, e na minha nostalgia, e a verdade é que, na minha opinião, a carreira a solo de Sting ficou sempre um pouco (bastante mesmo) aquém daquilo que os Police foram capazes de produzir como grupo. Dai uma certa antipatia a tudo o que ele produzia, e até um pequeno esgar de escárnio e de desdém sempre que ele aparecia na televisão.

[ Acho que podemos excluir desta minha pequena antipatia o facto de algumas das minhas namoradas da altura terem uma simpatia muito especial pelo dito senhor, em primeiro lugar porque não sou por natureza uma pessoa ciumenta, e em segundo lugar porque nós, os morenos, temos exactamente a mesma opinião sobre os homens loiros, que as mulheres morenas têm sobre as mulheres loiras. Dixit ]

No entanto, e para dizer a verdade, esta pequena antipatia ficou sempre reduzida à carreira a solo de Sting uma vez que sempre que ouvia os Police na rádio, ou via os seus vídeos na televisão, vibrava como antigamente. Mas a verdade é que, mesmo inconscientemente, e passados todos estes anos, a entrevista que ouvira ao Sting nunca mais me saiu da cabeça. Como é que ele, como autor, podia falar assim de uma criação sua? E logo sobre ‘Every breath you take’ que era na carreira dos Police, digamos assim, como que a cereja em cima do bolo, a minha música de eleição, aquela que eu considerava o expoente máximo da carreira deles enquanto grupo. Vezes sem conta me tinha apaixonado ao som daquela música, vezes sem conta tinha beijado e amado envolto nas suas vagas, perdido nos seus acordes. E o senhor Sting pretendia agora, passados todos estes anos, ainda não suficientemente satisfeito de ter promovido a separação de um dos meus grupos favoritos, vir roubar-me ainda a melhor de todas as recordações que eles me tinham deixado, bem assim como a recordação de muitos outros momentos de carinho, de partilha, e de entrega, vividos ao som desta mesma música?

Confesso que durante todos estes anos esta questão me assolava ocasionalmente, e me deixava sempre uma sensação de desconforto pela minha própria incapacidade de a compreender, e eu sempre interpretei essa minha sensação de desconforto como sendo uma negação frontal de algo totalmente descabido e sem qualquer ponta de sentido para mim. No entanto, é sempre assim. Aquilo que não parece, muitas vezes é, e por vezes só muito mais tarde é que nós nos apercebemos realmente disso. E foi preciso acontecer uma revolução na minha vida (ou se calhar várias revoluções), e foi preciso proceder a várias mudanças, aceitar de bom grado essas mesmas mudanças, e mesmo agradecer do fundo do coração a chegada dessas mudanças, para compreender muitas coisas importantes na minha vida, e mesmo algumas coisas insignificantes como esta. Mas como mesmo as coisas insignificantes podem ter um grande valor simbólico, e encerrar dentro de si mesmas grandes lições, eu senti dentro de mim mesmo uma grande alegria por finalmente conseguir compreender aquilo que durante tanto tempo tinha escapado à minha pouca compreensão.

E nem foi preciso um grande esforço de interpretação da minha parte, ou perder muito tempo a pensar sobre isto, ou mesmo grandes considerações filosóficas. A solução veio por si mesma, como sempre acontece quando deixamos que uma mudança tome lugar. De um momento para o outro tudo se tornou claro, e como tantas vezes acontece a resposta estava em si mesma, à vista de todos, e ainda assim inacessível a quase todos, porque nós só vemos aquilo que nos permitimos ver. E foi só ao eu próprio mudar os meus próprios conceitos sobre a Vida e sobre o Amor, que me permiti a mim próprio compreender o verdadeiro alcance e o verdadeiro significado da referida canção, e que ela se tornou também então para mim algo de perfeitamente inconcebível e inaceitável.

A tradução que apresento a seguir da sua letra é livre, e nem sequer é muito famosa.

Mas o conteúdo das suas palavras também o não é, de resto.

 

“Cada sopro que tu deres,

Cada gesto que tu fizeres,

Cada laço que tu quebrares,

Cada passo que tu deres,

Eu estarei a ver-te.

 

Cada dia que passar,

Cada palavra que tu disseres,

Cada jogo que tu jogares,

Cada noite que tu passares,

Eu estarei a ver-te.

 

Porque é que tu não consegues ver?

Tu pertences-me a mim,

Sou um pobre que sofre,

Com cada passo que tu dás.

 

Cada gesto que fizeres,

Cada jura que quebrares,

Cada sorriso que fingires,

Cada queixa que fizeres,

Eu estarei a ver-te.

 

Desde que tu te foste eu ando perdido sem me encontrar,

Eu sonho à noite e só consigo ver o teu rosto,

Olho à minha volta mas és tu que eu não consigo esquecer,

Sinto-me tão só e anseio pelo teu abraço,

Continuo a gritar  “baby, please”

 

Porque é que tu não consegues ver?

Tu pertences-me a mim,

Sou um pobre que sofre,

Com cada passo que tu dás.

 

Cada gesto que fizeres,

Cada passo que deres,

Eu estarei a ver-te.”

 

Para quem só agora se apercebeu do verdadeiro significado destas palavras devo dizer que no original, em inglês, elas ainda resultam mais taxativas do que aqui. Aparentemente falam de amor, mas na realidade falam de posse, de ciúme, de insegurança, e de controle. Ao ler agora estas palavras, e compreendendo o seu verdadeiro significado, eu compreendo agora a repulsa que o Sting sentiu pelo tal casal inglês de meia idade que lhe escreveu uma carta a retractar-se neste tipo de amor, e mais ainda compreendo a repulsa que ele sentiu por si mesmo por a ter escrito, divulgado, e encorajado durante tanto e tanto tempo. São os nossos pensamentos que criam as nossas próprias percepções, e são as nossas percepções que criam a nossa realidade, e este tipo de pensamentos só podem vir a criar uma realidade de grande possessividade, e de uma enorme falta de amor e de liberdade.

O amor que aqui se retracta, se é que a isto se pode realmente chamar amor, é um amor paranóico, obsessivo, doentio, é um amor que prende, um amor que exige, um amor que persegue, um amor que controla, aonde a posse, o apego, e o ciúme reinam e são as figuras de proa. É um amor onde o objecto dos nossos afectos está constantemente sob uma lupa, debaixo dos nossos olhos, sob o nosso controle e vigilância, e quem sabe mesmo dependente dos nossos caprichos, humores, e aprovação, e em que funcionamos menos como amantes do que como censores morais, como se fôssemos uma espécie de Big Brother totalitário, autoritário, e todo poderoso, e a isso mesmo quiséssemos sujeitar o outro, como se ele não tivesse uma vida ou uma vontade própria, e fosse uma simples marioneta nas nossas mãos, uma espécie de prolongamento exterior de nós próprios, e assim sendo dependendo igualmente da nossa omnipresente e omnipotente vontade.

Sim, nada disto tem realmente alguma coisa a ver com o Amor. O Amor, o verdadeiro Amor, é Ser, não é Poder, o Amor, o verdadeiro Amor, é o Amor que liberta, é o Amor que cura, é o Amor que abraça mas não segura, é o Amor que aquece mas não queima, é o Amor que se esgota em cada noite que passa, e que se renova em cada dia que nasce, em que nada é definitivo, e em que tudo é possível de acontecer um dia, incluindo o durar para sempre, desde que ambos sonhem o mesmo sonho da mesma maneira. É o Amor incondicional que, como o próprio nome o diz, é um Amor que não impõe quaisquer condições, que aceita o outro exactamente como ele é, com o seu feitio e com a sua personalidade, com as suas virtudes e com os seus defeitos, com os seus gostos particulares e com as suas opções, e que ao aceitá-lo não tenta modificá-lo, desvirtuá-lo, ou condicioná-lo.

Talvez por tudo isto compreendi agora, melhor do que nunca, por que é que o Sting escolheu para o seu primeiro single a solo uma canção chamada ‘If you love somebody set them free’, o que quer dizer que “se amas alguém, deixa-o livre”. Toda a letra da canção fala do mesmo tema, mas é até descabido falar sobre ela porque tudo aquilo que é preciso saber está dito no título, ou seja de amas alguém, liberta-o, deixa-o solto, deixa-o viver, deixa-o respirar, deixa-o ser ele próprio, deixa-o ser quem é, liberta-o, para te libertares a ti próprio.  

Foi esta a grande lição que eu aprendi com o Sting, e esta foi uma lição ainda maior porque foi algo que ele próprio desencadeou sozinho, e que foi capaz de detectar em si mesmo, e de modificar na sua vida, e na sua obra, o que além de aumentar a minha admiração por ele enquanto homem, aumenta imenso a minha admiração por ele enquanto autor e compositor, porque ele compreendeu que para crescer e evoluir na sua vida pessoal tinha que renegar parte daquilo que o tinha celebrizado e identificado enquanto figura pública e estrela internacional, ou seja tinha que se libertar de um fardo pesado do seu passado. E como deve ter sido difícil para ele tomar esta opção, e como deve custar a um autor renegar completamente, e desdizer a sua obra mais conhecida. Foi um acto de coragem e de liberdade, de desapego e de aceitação das mudanças que estavam a ocorrer na sua vida, e dei por mim mesmo a agradecer mentalmente ao Sting por ter acabado naquela altura com os Police, não porque eu tivesse deixado de gostar deles, mas porque ele assim o quis, e porque para ele era obviamente importante que assim fosse, para a sua vida e para a sua caminhada, e por ter dado aquela entrevista que durante tanto tempo me atormentou, e por me ter ajudado a compreender como o verdadeiro Amor deve ser. Só espero conseguir aplicá-lo na minha própria vida, pelo menos para isso me vou esforçar, para que as minhas relações sejam um grande espaço de liberdade, de aceitação, e de compreensão, e para que a pessoa que comigo estiver possa voar o mais alto que as suas próprias asas, sonho, e imaginação lhe permitam, e que eu a ame ainda mais ao vê-la voar, e que a sua liberdade seja também a minha própria liberdade.

 

[ Curiosamente tenho vindo a apreciar bastante mais as músicas a solo do Sting ultimamente, vibro cada vez que ouço o ‘If you love somebody set them free’, emociono-me com o ‘Fragile’, e deixo-me embalar frequentemente pelo ‘Desert Rose’, e mesmo ele me parece menos loiro do que antes. Em suma, o que eu queria mesmo dizer é que eu já resolvi os problemas que tinha com o Sting, e que já fiz definitivamente as pazes com ele (embora as minhas namoradas continuem a achá-lo giro), e ele ficará para sempre na minha vida como a primeira pessoa que alguma vez me falou do Amor Incondicional, da Liberdade, da Aceitação, e do Desapego, e embora na altura eu não tivesse nenhuma possibilidade de compreender ou apreender o que isso seria, o eco das suas palavras ficou retido na minha memória o tempo suficiente para que tudo se viesse a tornar claro para mim, no tempo e nos lugares certos para mim ...por isso, para ele especialmente, um grande BEM HAJA!!! ]


(*)Luiz Ferro Moutinho  escritor português. Mora na Senhora da Hora.


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