Versiones 44
Junio - Julio 2002
Director: Diego Martínez Lora
Rui de Barros(*):
O Centauro e a Deusa
Um centauro jovem e portanto mais sujeito que os outros às penas da sua dupla natureza, ia por bosques e montanhas, mais amuado que triste, sem companheiros e sem paz. O que dele havia de equino, sentia-se estorvado e enervado pela inquietação da consciência humana. O que havia nele de homem, sentia-se oprimido pela humilhação do fardo animalesco que tinha de arrastar consigo.
-Nunca serei - pensava - o poldro livre e feliz que se atira à erva fresca e à fêmea quente com igual e natural satisfação. Também nunca serei o homem completo que os sábios educam, que as mulheres amam, que os povos escutam e a quem obedecem. Gastarei no desespero uma vida inœtil e ambígua, sem nunca experimentar plena beatitude do bruto nem a alegria divina de ser homem entre os homens. Os deuses condenaram-me a isto, os Deuses me devem libertar.
E um dia, perto de uma gruta, encontrou-se de repente na luz de uma deusa. Era uma deusa que sabia de todas as coisas da terra e do céu, que conhecia todos os segredos dos mortais e dos imortais. O seu esplendor parecia brando como o alvorecer de Abril, e no rosto pairava uma tristeza afectuosa e serena. E teve dó do triste centauro e chamou-o para o pé de si para o consolar.
-Por quê tanta tristeza? - disse-lhe - Não te queixes mais. Eu posso salvar-te. Diz-me: se tu pudesses escolher entre as duas naturezas que em ti coexistem, querias ser apenas animal ou apenas homem?
O centauro, feito ousado pela benignidade da deusa, logo exclamou:
-Homem! Queria ser um verdadeiro homem, tornar-me um dos reis da natureza, igual aos que gozam o amor, que conquistam a sabedoria, que fundam as cidades, que ceifam as cearas, que cantam os heróis e que adoram a divindade.
-O teu desejo será satisfeito - respondeu Vega, assim se chamava a deusa, com um sorriso que iluminou e avivou as flores do prado que havia diante da gruta - mas antes de obteres a metamorfose que desejas, tens de ouvir o que vou dizer para teu conforto. Se depois de me ouvires o teu pensamento não tiver mudado, farei de ti um homem.
O centauro impaciente, mas obediente, agachou-se ao pé dela entre as moitas verdes, fitando os grandes olhos de Vega.
-Não te direi - continuou a deusa - as infinitas canseiras, misérias e&nbbsp;desventuras dos homens. Poderias retorquir que, depois de bem pesado tudo, sempre preferes a infelicidade humana ao teu duplo desespero. Quero, pelo contrário, revelar-te uma verdade que só raras vezes se patenteia aos próprios filhos das mulheres. Fica, pois, sabendo que os homens, quase todos os homens, por impulso, instinto ou reflexão, outra coisa não querem e não procuram que deixar de ser homens, libertando-se da sua condição humana. A vida deles é um esforço, diferente conforme os carácteres, mas perene e teimoso, de recusar ou ultrapassar o que constitui a sua essência natural. Alguns, quer queiram, quer não, parecem-se com os brutos; outros procuram parecer-se com os mortos; outros, enfim, tentam assemelhar-se aos deuses. E, evasão do que é humano, é a própria essência da vida humana.
Os plebeus e os escravos, quase todos, são condenados a ser pouco mais que animais. Não sabem mais que encher e esvaziar os ventres, acasalar-se e parir como os animais dos campos, matar e ser mortos como as feras nas florestas. O trabalho forçado e mecánico os torna semelhantes a máquinas sem cérebro. Não lidam com as Musas; a religião é neles, sobretudo, medo. Dirigem-se aos deuses como o cão late ao dono para pedir comida ou proteção. Não conhecem nem procuram outros prazeres que os da luxœria ou do vinho, e estas duas materiais ebriedades mais não conseguem que torna-los ainda mais inconscientes, isto é, mas próximos dos seus irmãos inferiores. São incapazes de amar e muito menos sofrer de amor.
O estado animalesco afigura-se-lhes tão desejável que a ele aspiram até os que receberam sabedoria e inteligência. Nas cidades viceja uma seita de filósofos que se denomina cínica, justamente porque prop›e a todos, como exemplo ideal, a vida dos cães. Outros, por fim, imitam propositadamente a ferocidade das feras: os ladrões que assolam as cidades e campos e os exércitos que invadem os países visinhos ou distantes, são em tudo iguais, nas façanhas e nos costumes, aos le›es e aos tigres que vivem, porém estes por sobrevivência, de chacina e de presas.
Todos os homens, enfim, procuram e aceitam à força, estados e condiç›es que os tornam semelhantes aos mortos. O sono, como sabes, não é senão a imitação cotidiana da morte, e, no entanto, não há quem o não deseje. Os desmaios, os delírios, as enfermidades, os devaneios, tornam imóveis os homens, isolados e sombrios como cadáveres. Os insensatos, os idiotas, os paralíticos, vivem uma vida que pode ser comparada à dos defuntos, sob muitos aspectos. Até o momento supremo do amor se parece estranhamente com uma agonia e deixa um turpor profundo, que faz lembrar o fim da vida. A vida humana, em grande parte, mais não é que a imitação da morte: um tributo parcial e intermitente para escapar à morte total.
Existem, finalmente, almas de espelho mais nobre e delicado, que sentem vergonha, nojo ou estado de terror do estado humano e tentam angustiosamente, por caminhos diferentes e opostos, isentar-se da condenação. O herói procura parecer-se com o Deus no poder, de modo a merecer a ascensão. O feiticeiro esforça-se para se parecer com os deuses no domínio do mundo sensível e na vitória sobre a morte. Os crentes devotos e piedosos aspiram imitar Deus na perfeição, e deligenciam viver na terra como os anjos no céu. Os místicos e os santos despem-se o mais que podem dos hábitos e das paix›es humanas para se unir e fundir com Deus ainda antes da morte. E não sabes quantos reis, imperadores e chefes de governo pretenderam ser filhos ou encarnaç›es dos deuses ?
Como vês o homem não se satisfaz e não se conforma com ser homem. A sua vocação parece ser a de se renegar ou de se ultrapassar. O homem pretende sempre, quer elevando-se, quer rebaixando-se, desumanizar-se. Ora persegue o sub-humano, ora o sobre-humano; repugna e repele a simples condição humana. Aceita ser tudo: ora fera, ora cadáver, ora Deus, com a condição de não ser mais homem. Todos experimentam saltar mais do que é permitido pela sua natureza, transformando-se em super-homens ou até em autómatos, contando que não sejam mais homens.
Agora que te desvendei esta indubitável verdade, abstinas-te ainda na vontade de te transformares em homem? Se agora és infeliz por não quereres ser centauro, não serás ainda mais infeliz quando fores condenado ao tormento de abandonar a tua humanidade?
O centauro ouvira em meditativo silêncio as palavras da deusa Vega. Logo que ela se calou, viu saltar altivamente sobre os quatro cascos o monstro silvestre.
- Divina Vega, tu és a sabedoria celeste, e as tuas palavras são decerto a própria verdade. Mas apesar de tudo a minha alma escolheu. Faz de mim um homem e prometo-te que serei um daqueles que procuram igualar-se aos Deuses.
Vega cumpriu o que prometera.
Alguns filósofos afirmam que aquele centauro foi chamado de Poeta entre os homens.
(*)Rui de Barros, escritor, poeta e pintor português. Mora no Porto