Versiones 45

Agosto - Setiembre 2002

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


Luiz Ferro Moutinho(*):
Talvez viajar...


( Serve este artigo como apresentação, apreciação, e comentário critico, ao livro «O mundo, aqui ao lado», da autoria de Paulo Vicente Salvador, colaborador habitual da revista digital Versiones, e editado pela Editorial 100. Não foi sem algum receio que aceitei o desafio que me foi lançado para o fazer, não só porque conheço o Paulo pessoalmente, mas também porque me considero seu amigo, o que me colocava logo à partida numa situação no mínimo embaraçosa. Como único refugio encontrei dentro de mim a capacidade para despir a pele de seu amigo, e para vestir simplesmente a pele de leitor e de amante da literatura. )

Como o próprio título já o deixa transparecer, este é um livro de viagens, e é além disso aquilo que se pode chamar um livro autêntico, é um livro na primeira pessoa, porque o Paulo Salvador, quer profissionalmente, numa primeira fase, quer por paixão, nomeadamente a sua paixão pelo mergulho, já percorreu várias vezes o Mundo em todas as direcções.

Nós podemos até dizer que este livro é um livro com uma certa dose de risco, porque a literatura de viagens não tem actualmente o prestigio que já teve no passado, e infelizmente.

A verdade é que as pessoas têm tendência a confundir a literatura de viagens com as fotografias de férias dos nossos amigos, que somos obrigados a ver todos os anos, e às vezes até mesmo a rever, ou com aqueles serões entediantes a aturar vídeos de férias, com pessoas na praia, a almoçarem, sentadas, de pé, e em todas as posições, e a fazerem coisas que a nós nada nos interessam, mas a que somos obrigados a assistir apenas porque ingenuamente aceitamos ir jantar lá a casa.

Mas isso na realidade nada tem a ver com a verdadeira literatura de viagens, e a única maneira de se compreender isso mesmo é analisarmos aquilo que foi a história da literatura de viagens desde a Antiguidade até aos dias de hoje, visitando os seus autores mais célebres, e procurando em cada caso as razões para eles empreenderem as suas viagens, e a motivação que teriam tido para escreverem sobre elas.

Assim, é muito fácil nós apercebermo-nos de que a literatura de viagens mudou muito ao longo dos tempos, à medida que mudava igualmente a motivação das pessoas para viajarem, e para escreverem sobre as suas viagens.

De facto, a literatura de viagens é um dos ramos mais antigos da literatura, e basta ver que já oitocentos anos antes de Cristo, Homero escrevia a «Odisseia» e a «Ilíada», e a «Odisseia» não é mais nada, no fundo, do que a longa viagem de Ulisses no seu regresso a casa, ao longo de vinte anos.

Nesta altura nem todas as viagens eram reais. A motivação do autor neste caso é localizar o papel do ser humano dentro do Mundo que o rodeia, recorrendo à inserção de algumas personagens meio-reais, meio-místicas, em toda a pleiade de lendas e de divindades daquela época, dentro do simbolismo mais alargado da eterna viagem e do eterno retorno, e da viagem enquanto espaço de encontro connosco próprios.

Também Júlio César, o famoso estadista romano, foi um notável escritor, e os seus livros «Da bella Gallico» e «Da bella civilli», sobre a sua conquista da Gália, e sobre a guerra civil romana, respectivamente, podem igualmente ser consideradas crónicas de viagem.

Nesta altura, os homens obviamente viajavam para fazerem a guerra.

Igualmente Flávio Josefo, o famoso historiador romano que viveu na época de Cristo, em alguns dos seus escritos pode ser considerado um escritor de viagens, embora inserido em todo o contexto cultural, político, social e religioso daquela época.

Já no século XIII surge-nos um outro grande escritor de viagens, de seu nome Marco Pólo, e foi através das descrições das suas viagens, reais ou imaginárias, que o Ocidente tomos conhecimento da existência de uma boa parte do Mundo, nomeadamente os territórios actualmente conhecidos por China, Mongólia ou Manchúria. O «Livro de Marco Pólo», assim se chama o livro, foi decerto um dos livros mais extraordinários e mais marcantes de todos os tempos, e a motivação do seu autor foi não só apenas o seu espirito aventureiro, mas igualmente a sua intenção de estabelecer rotas comerciais terrestres com o Oriente.

E por falarmos em livros marcantes, o que é que são no fundo os «Lusíadas» de Luiz Vaz de Camões, senão uma longa viagem de um povo em direcção ao seu próprio destino? E que dizer então do seu contemporâneo Fernão Mendes Pinto, cujo único livro «Peregrinação» é ainda hoje uma obra-prima sem par na literatura portuguesa de viagens, e não só?

Mais recentemente, escritores tão notáveis como Wolfgang Goethe, Henry James, ou Mark Twain escreveram também eles magníficos livros de viagens que, cada um à sua maneira, se tornaram igualmente célebres.

Mas apesar de todos estes nomes que eu acabei de citar, é um facto indesmentível que a literatura de viagens caiu um pouco em desuso a partir do século XX, assim como mudou igualmente a motivação dos autores que a escrevem. As pessoas passaram a viajar essencialmente por dois motivos: por férias e prazer, ou então, profissionalmente, em trabalhos de jornalismo, e em reportagens de guerra.

Junto com o aparecimento de livros sobre o prazer de viajar, apareceu igualmente um novo género de literatura de viagens, composto por capítulos curtos e descritivos, dedicado cada um deles a um local especifico do Mundo. Um dos exemplos mais famosos que se podem apontar a este género de literatura é precisamente o livro «O meu chapéu cinzento» de Olivier Rolin, que é um dos mais consagrados cronistas deste género de escrita. O título tem aliás precisamente a ver com o acto de viajar porque, segundo o próprio autor, «quando ponho o meu chapéu cinzento, é sinal de que vou viajar».

Um outro exemplo notável daqueles que escrevem sobre o prazer de viajar é Miguel Sousa Tavares, com o seu magnifico «Sul».

Dentro dos que se situam no segundo caso, ou seja, naqueles que viajam e escrevem profissionalmente, encontramos o recente livro de Pedro Rosa Mendes, a «Baía dos Tigres», que apesar do seu conteúdo jornalístico, histórico e político, não deixa também de ser um notável livro de viagens.

O livro do Paulo Salvador insere-se precisamente no primeiro caso, na literatura escrita pelo prazer de viajar, composto por vários capítulos curtos, dedicado cada um deles a uma viagem específica e a um destino em particular.

Em termos de linguagem, e apesar de este ser um livro de viagens, a linguagem é do tipo minimal, ou seja, não se perde nem se alarga em longos floreados nem em grandes descrições. Para se poder compreender melhor aquilo que quero dizer vou pegar, por exemplo, na linguagem do Eça de Queirós. O Eça está muito longe evidentemente de poder ser considerado um escritor de viagens mas, para aquilo que nos interessa, é um escritor com uma linguagem extremamente expressiva e descritiva.

Se aquilo que estivesse em causa fosse uma laranja, na linguagem do Eça nós obteríamos certamente a descrição da sua côr, a descrição da sua textura, a forma dos seus gomos, o formato das suas pevides, o seu cheiro e o seu sabor. É como se nós tivessemos autenticamente a laranja na nossa mão.

Já na linguagem do Paulo Salvador nós obteríamos o sumo, a essência da laranja.

É uma linguagem simples, sintética, despretensiosa, e explícita, mas que ainda assim não passa ao lado, nem dispensa, a reflexão filosófica e a análise social e política.

O Eça coloca-nos no local, o Paulo quer-nos fazer entender o local.

De Gaia a Windsor, de Dallas a Abidjan, da Índia às Maldivas, o Paulo Salvador dá largas à sua vocação de escritor e de cidadão do Mundo, e nós somos aqueles quem mais tem a usufruir com esta sua faceta de viajante incansável, por podermos usufruir deste livro e de outros que decerto se seguirão.

A herança que vem do passado é bastante pesada, a tradição é muito longa, e é composta por autênticos pesos-pesados da literatura, mas o Paulo Salvador já demonstrou que tem vontade e talento para seguir em frente com esta tradição tão antiga e tão nobre da literatura de viagens.

Eu não sei se o Paulo usa ou não algum «chapéu cinzento» para viajar, ou se se faz acompanhar ou não de algum outro fetiche de estimação, mas seja aquilo que for que ele leva nas suas viagens, nós podemos apenas desejar que ele leve também consigo um bloco de notas e uma caneta, e que se faça acompanhar como sempre do seu notável sentido de percepção e de apreensão do Mundo que o rodeia, e que nos volte a encantar com o relato das suas aventuras.

Nós ficamos aqui, deste lado do Mundo, a desejar-lhe boa viagem.


(*)Luiz Ferro Moutinho,  escritor e engenheiro português. Autor de 2 romances: A rapariga que desenhava as estrelas e Não sabia que procurava o amor até te encontrar....


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