Versiones 45

Agosto - Setiembre 2002

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


Paulo V. Salvador(*):

Terras com Amos


Ficou-nos mesmo muito longe Moçambique. Na Portela, a primeira tentativa de partida abortou após duas horas dentro do avião, enquanto os passageiros da 1ª classe enregelavam e os da cauda do avião suavam as estopinhas. Problemas no sistema de Ar Condicionado, a tripulação avisa. A meio da noite, confundidos por procedimentos muito fluídos, somos transportados para um hotel para dormir um par de horas. Como resultado, às 10 horas de viagem sumaram-se 18 horas devido aos atrasos e os passageiros chegam naturalmente impacientes e nervosos à noite já velha de Maputo.

O “shuttle” do hotel espera-nos. Connosco segue um português, de meia-idade, cabelos desgrenhados, de óculos, empresário em Moçambique. Tornado bêbado pelo cocktail de sono e alcoól introduz-nos de chofre no racismo, uma questão que, quer queiramos ou não, nem que seja por razões históricas e culturais, está sempre presente quando brancos e negros se encontram. Com veemência, dirige-se ao condutor, um negro tranquilo, e diz que eles (os negros) deram cabo do país a seguir à independência. O seu interlocutor não responde. Iniciamos o diálogo com o nosso compatriota e após algumas trocas de impressões ele remata: “a diferença entre um turista e um racista são 15 dias”. È com uma frase assim dura mas não hipócrita que somos introduzidos a Moçambique. Outros portugueses que vamos conhecendo pelo país admitem conhecer esta frase e não parecem muito preocupados com ela. Vemos a mesma forma dura como eles tratam com os locais. É a necessidade de eficácia na resolução das suas necessidades que leva a comunidade portuguesa branca a terem estes comportamentos que, a nós, ancorados na Europa, nos parecem excessivos. Nos próprios negros locais parece haver uma certa aceitação destes termos, como se um trato mais amigável não fosse capaz de catalisar uma acção. Esta incivilidade no relacionamento entre brancos e negros é provavelmente ainda uma sobrevivência colonial. Mas nas sociedades não há fronteiras estanques e esta incivilidade reproduzir-se-á sem dúvida até ao infinito no seio das famílias e das organizações.

Recordo outras manifestações de racismo que encontrei: os nomes antigos e compridos, de conotações servis, dos meus colegas africanos da Universidade; as cartolas de cavalheiro com que as matronas índias “aymara” de La Paz, Bolívia, tapam a cabeça, encimando uma de resto muito pobre “toilette”; os nomes ridículos alemães (recordo a família “Testa verde”) dos judeus do cemitério judeu de Viena, baptizados pelos austríacos durante as campanhas de germanização do séclo XIX. E recordo a história da humanidade (a escravatura, o Ku Klux Klan, o “apartheid”) e de outras formas mais subtis de manter o “status quo” racista. As tradições culturais (e o racismo é uma tradição cultural) tem instintos de sobrevivência muito desenvolvidos e poderosos.

Um duche rápido no hotel Rovuma e de novo no aeroporto para dar início às viagens aéreas internas em pequenos mono ou bi-motores, barulhentos e apertados, em que o copiloto, quando existe, também faz de hospedeira e carregador. Em Vilankulos, província de Inhambane, a porta de entrada para o complexo turístico (e reserva nacional) do Bazaruto, temos que esperar horas pelo avião do hotel. Entretanto um enorme helicóptero militar circula pelos céus aproximando-se e afastando-se. Quando o avião chega, há uma grande movimentação à sua volta, uma delegação de moçambiquanos em coloridas roupas tradicionais, as mulheres de cara arranjada e unhas pintadas, apressam-se em direcção ao avião chegado de Bazaruto. Largos minutos depois regressam os passageiros, rodeados pela delegação, no seu centro uma bela jovem, de calças de ganga e camisa de seda branca, que tranquilamente acena para todos, nós incluídos, até desaparecer numa “limousine”. Espantados por encontrar estes comportamentos hollywoodescos neste canto perdido de África, entramos para o pequeno avião ainda perfumumado pelas essências dos hóspedes. Explicam-nos que se tratava da oitava raínha da Suazilândia que regressava de uns dias de férias com o seu marido em Bazaruto. Este, o rei Mswati III, resolveu regressar a Vilankulos no seu iate, aproveitando o tempo para uma pescaria de alto mar (na Suazilândia, um estado monárquico muio tradicional, o soberano tem o direito de todos os anos escolher uma nova mulher entre as suas súbditas, e ao que parece ele já vai nas dezenas).

Entretanto nós desfrutaremos duma paz tranquila nessa verdadeira pérola que é Bazaruto, uma ilha enorme e despovoada, sem estradas para lá das picadas ou da areia molhada da rebentação, de dunas gigantescas de onde se esperam os Pôr-do-Sol gloriosos que protegem antigos lagos salgados povoados de crocodilos.

Se Bazaruto é a aposta turística actual, e por isso atractiva, já Inhaca, na bacia de Maputo, parece uma sobrevivência dos tempos coloniais. Chegamos lá após um voo solitário (somos os únicos passageiros) de 15 minutos num Let 441, um velho Turbo-prop checoslovaco de 20 lugares, “um avião indicado para pistas de aterragem curtas” , explica-nos o simpático copiloto e realmente a pista de Inhaca é reduzidíssima. O sistema de ar condicionado do avião são pequenas ventoínhas de plástico, com um interruptor, por cima das janelas...

Em Inhaca, avisam-nos para não deixar nenhum objecto sem guarda uma vez que bandos de corvos negros (os mesmos que nos estragavam os despertares no Sri Lanka) os roubam a partir do ar. Há uma campanha de exterminação a decorrer (o som de tiros é frequente) mas já se sabe que, tal como todas as anteriores, esta também vai fracassar. Nos corvos, no entanto, reconheço a unidade do oceano Índico, com as suas vincadas correntes de vento e marés alimentadas pelas monções. O domínio destas correntes permitiu aos comerciantes muçulmanos criarem um sistema económico na Idade Média que se estendia do Norte de Moçambique à Indonésia (ou, utilizando nomes caros à história portuguesa da Ilha de Moçambique e de Mombaça até às Molucas) que, com o tempo, levou também à consolidação de uma religião mista muçulmana e local a toda esta imensa área geográfica. E especulo: quem sabe se não foi seguindo os corvos que os muçulmanos desvendaram os ventos do Índico...

Regresso a Maputo. A cidade-capital onde, mesmo nos piores momentos da guerra civil, o regime da Frelimo conseguiu manter um oásis de paz enquanto o resto do país era assolado por uma guerra rica em tácticas de terra queimada que conseguiram, no final dos anos 80, dar a Moçambique o triste recorde de país mais pobre do mundo. Maputo surpreende favoravelmente, e comparo-a com favor a Abidjan. Há duas Maputos, a ex-Lourenço Marques herdada dos portugueses, não muito descaracterizada nem muito inabitável pela falta de manutenção, e a Maputo pós-independência, caótica, frágil, precária, sem infrastruturas, que envolve a outra como se fosse uma enorme boca de peixe aberta e esfomeada. Nesta Maputo, os brancos são avisados a não entrar. É a cidade dos exilados internos da guerra, sem raízes, para quem a vida se esgota na luta diária pela sobrevivência. E nessa luta diária, esta Maputo invade a velha Lourenço Marques, é nesta que se concentram os recursos que ela necessita. Por isso somos aconselhados a não andar sozinhos na cidade, sobretudo à noite. Evidentemente que há um sentimento de claustrofobia em Maputo, apesar da dimensão da cidade, com tantos procedimentos de segurança em pouco tempo somos obrigados a repetir incessantemente as mesmas rotinas. Por outro lado, há também um certo optimismo febril por parte das elites, a economia cresce a taxas vertiginosas e novos brancos sul-africanos, zimbabueanos e portugueses chegam todos os dias e instalam-se com os seus recursos e conhecimentos. E como ainda não há pressão da sociedade civil para que se faça a redistribuição da riqueza, os políticos vivem bons tempos. As élites dos países pobres são os seres humanos mais afortunados deste mundo pois conseguem aliar os recursos à ausência de controlos institucionais.

Guiados por portugueses expatriados, atravessamos em todas as direcções a velha Lourenço Marques. Alguns dos nomes das ruas são fósseis de outros tempos : Mao Tsé-Tung, Karl Marx, Friedrich Engels, Lenine. As estupendas vivendas de Chissano, Samora Machel, Dhlakama e Nelson Mandela, ao fundo o remodelado e nobre Hotel Polama, padarias, restaurantes e mercados, onde e como estacionar, assim vamos aprendendo a reconhecer intuitivamente a cidade. Ouvimos histórias das grandes cheias que há dois anos submergiram as partes baixas da cidade e cujas imagens correram mundo. É assim que, aos poucos, um lugar se torna aos poucos um lar.

Mas um lar precisa de tempo para se consolidar e o nosso programa não o permite. Mais um despertar a meio da noite e voltamos à estrada. Seguimos para oeste, procurando o Sol, por uma boa estrada asfaltada no meio do nada, apenas ao fundo as inúmeras luzes da Mozal (indústria de produção de alumíniode de capitais sul-aficanos e extremamente poluente) à saída de Maputo e de vez em quando umas cubatas. Em Ressano Garcia atravessamos a fronteira de Komantipoort para a África do Sul. Esta mera convenção geográfica significa no entanto uma alteração completa da realidade: o abandono de Moçambique contrasta com o aproveitamento na África do Sul, até ao detalhe, de todos os espaços.  Como é possível esta diferença? Como podem ser os mesmos homens e mulheres tão diferentes? Estes dois mundos próximos mas tão diferentes são um bom exemplo da importância do papel da história e das decisões políticas no desenvolvimento (não pude deixar de relembrar outros choques fronteiriços anteriores que levantaram  as mesmas interrogações: o do estreito de Gibraltar entre uma Europa próspera e um mundo árabe ainda medieval e o de El Paso e Ciudad Juarez entre os EUA e o México).

Na África do Sul o homem branco permaneceu, e isso pelos vistos fez toda a diferença, uma vez que um turista-com-mais-de-15-dias avisou-nos que “os negros da África do Sul são iguais aos de Moçambique”. De novo o racismo espreita por entre a realidade.

Em África não vislumbro forma de se resolver o problema do racismo sem ser pela sucessão das gerações, de um lado e de outro, e que é um processo necessariamente lento. O nosso grupo viajante, prisioneiro deste tempo do mundo mas afortunado pelo destino, evita esta contradição fundamental da humanidade deixando as terras dos homens e entrando nos domínios reservados para outras feras, o Parque Nacional Kruger. Neste território em forma de “d”, do tamanho do Alentejo, a Natureza repete, desde tempos imemoriais, a sua dinâmica evolutiva. Seres que tem que morrer para dar vida, seres que morrem ao não matarem: as leis da selva são muito simples. Neste eterno ciclo da morte e da vida, a luta entre os grandes carnívoros  e as suas presas é a mais espetacular e aquela pela qual os visitantes vem primeiramente ao Kruger. À noite, período de maior actividade por parte dos animais caçadores, os visitantes saiem em excursões organizadas e devidamente controladas (é rigorosamente proibido permanecer fora dos campos a partir do crepúsculo – as portas são fechadas e guardadas por guardas armados) para procurarem os leões, os leopardos, as chitas, os chacais, os mabecos, as hienas. Leoas prenhas deixam o seu grupo e, sós, deslocam-se para os penhascos onde procurarão um abrigo seguro para dar à luz. De dia apreciam-se as florestas de acácias, de chanate, os grandes embondeiros e a fauna que protegem, as girafas, as zebras, os gnús, os búfalos, as impalas, os inhacosos, os kudus, os facocheros, alguns primatas e muitos outros ruminantes. Alguns dos animais mostram marcas de lutas de que sobreviveram : uma zebra sangra do quadril por três rasgões paralelos de garra de leão, uma outra perdeu a cauda. Indiferentes a toda esta agitação, protegidos pela sua dimensão, os elefantes, os hipopótamos, os rinocerontes passam o dia a alimentar-se, destruindo quantidades incríveis de vegetação. Os crocodilos passam o tempo ao sol nas pedras dos cursos de água. Os ares são permanentemente vigiados por águias, falcões e abutres. Um grande marabú descansa. Nada se perde, tudo se transforma. Nas dimensões mais reduzidas, mais ignoradas pelos visitantes, a mesma luta implacável de vida e de morte. Os pequenos felinos, cervais, ginetas, caracais procuram os pequenos herbívoros (roedores, coelhos). E ainda por aí abaixo, pelos répteis, pelos batráquios, pelos insectos, pelos vermes, até ao indistinguível: no Kruger Park a grande cadeia alimentar abre-se em incontáveis variações perante os nossos olhos. Há também cores vivas nas aves e fogos incontroláveis que carbonizam a savana. E ao crepúsculo pode-se beber um “gin” tónico e ver ao mesmo tempo grandes manadas de herbívoros a matar a sede na curva do rio ou a hiena solitária que, com o seu riso absurdo, nos observa do outro lado da selva.

 

Agosto 2002


(*) Paulo V.Salvador, engenheiro químico e escritor portugués. Este texto forma parte do seu primeiro livro: O mundo, aqui ao lado, publicado pela Editorial 100.


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