Versiones 46

Octubre - Noviembre 2002

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


José Carlos Alves(*):

Vertigem e outros poemas


 

VERTIGEM

 

Sempre me tiveste, mesmo quando a recusa era a única certeza que tinhas, sem medo,

como se a vida se tivesse rendido ao corpo que a cinge...

Deixei-te os sons, tornei-me mudo, o que o mundo tinha para me dizer deixou de me

importar, sem ti era um vazio sem memória...

Confinei tudo à tua imagem, ao sonho que construimos peça a peça no desejo comum

da eternidade prometida pelo tempo...

Nunca descobri o que te levou dos meus braços, que encantamento te roubou do desejo

de sermos mais...

Eramos ambos reféns de vontades partilhadas, escravos libertados na arena da dor,

abraçados, sem coragem para nos enfrentarmos...

Recusei as armas, nenhum tirano me tornaria num proscrito do teu coração..., preferi

o desterro ao amargo da vitória...

A solidão sempre me confortou, o comodismo apenas me tornou mais decadente,

assumi a rebeldia, o risco de sucumbir nas armadilhas da mentira, feri o medo, recusei

o choro, para que pudesses ser livre...

Não me ceguei apenas fiquei com a escuridão, a luz deixei-a no teu olhar para que

descobrisses as cores que sempre te neguei...

Os ventos falam de lendas, de memórias sem nome..., de sons segredados, de

núvens que te procuram, para te deixarem as minhas lágrimas...


SOBRE_VIVER

 

 

Apenas queria amar, sem medida, sem razão, perder-me

nas fantasias que o momento inventa e que a memória perpetua...

Procurei, enviei sinais, na ingenua esperança de que um dia

alguem respondesse ao apelo mudo que carregava no peito.

Sempre deparei com o vazio que a pressa impõe, com a

tristeza que os labios oferecem nesse engano de um instante

de felicidade fria e fora de prazo...

Amei cada mulher, cada olhar, cada sorriso e nessa utopia de

amar sem limite, sem medo, acabei por descobrir os sonhos

que a alma escondia...

Esta eterna necessidade de me perder nos braços das mulheres

que criava, que enchiam a minha imaginação, como se as pudesse

devolver à realidade em que me via prisioneiro...

Amei-as mais do que podia e sabia, na perenidade que a paixão

desperta, invoquei a emoção para legitimar o desejo mas apenas

consegui que a dor me fizesse companhia.

Tornei-me um proscrito na tentativa de adormecer o pensamento,

de banir os rostos que me impeliam a querer de novo amar...

Percorri as noites à procura do passado que deixei na pressa de

amar, no silêncio consentido para que o sono não partisse, feito

eremita, escravo de uma razão tirana...

Era assim que me enganava, nesta derrota assumida, consentida

para que a tentação de amar não voltasse...

Só um tolo acredita que é possivel encarcerar o coração e acaba

sempre por descobrir que mesmo nessa prisão a que se confinou,

só o verbo amar sobrevive à solidão...


SEREIA

 

A brisa fresca percorria o convés deixando na pele um arrepio, a tarde

quase outonal prometia a noite sem demora...

Tinha aprendido a posse ausente, a ignorar aquele verde esmeralda,

refúgio do teu olhar...

Sereia que nunca tive nestes mares sem fim, nem os sons encantados

que as velas sussurravam me arrancavam do turbilhão da ausência

adivinhada...

Imaginei-te sempre, exausta, rendida nas areias brancas de uma praia,

à espera de um corpo que te dê forma...

Tornei-me a quimera da paixão, abandonada, nesse leito de estrelas

onde a noite não chega e onde a tua imagem naufragou...


 

SENSAÇÕES

 

Lábios, como encontros não marcados em imaginários

que ignoro...

Marcas de desejo nos caminhos já trilhados, descobertas

de ausências que só a distância recorda...

O ultimo reduto da evasão, onde no calor que o fogo espalha,

moldamos as espadas da paixão...

Local de culto, onde todo o guerreiro se rende, onde todo o

cobarde se aventura...

Nos teus lábios, de forma tão simples e sublime, o amor se

redime das feridas que ardem sem se ver...

No limiar do prazer, feito vagabundo do teu beijo, marcado

pelo ferro do teu olhar, rendo-me ao ultimato do teu corpo.


 

 SEM NORTE

 

A neblina trouxe o mistério, as formas dissimuladas, que não te revelam, apenas

te induzem...

Não sei se te perdi ou se me perdeste..., será que importa...?!

Os caminhos esgotam-se no alcance do olhar e apenas a esperança permanece

teimosamente...

A interrogação volta..., teimosa, persistente...

Como te descobrir nesta imensa cegueira, qual a encosta onde repousas...?

Dá-me um sinal antes que a noite te leve para sempre da minha memória... e

te transforme num sonho inacabado...


 

PORTO DE ABRIGO

 

A superficie polida de uma chegada indolor...

Os risos misturados de crianças irrequietas numa tarde fria, lembravam-me

a infância que não tive..., os jogos que nunca fizemos...

O mar tranquilo reflectia o sol timido, o brilho agreste que enchia a atmosfera...

e onde os barcos pareciam estácticos, adormecidos...

Mastros nús, despidos da força do vento, esgotados, na pressa que tinha de

aportar no teu olhar...

Velas consumidas, rasgadas na fúria de vencer os mares, de chegar primeiro a

essa baía onde a memória me trazia o teu corpo...

Esse chão firme, que me assustava, não me devolvia o eco dos teus passos...,

apenas a mudez de quem já tinha partido...

Pocurei o acaso da tua presença, a ilusão de um abraço vazio, de um momento

tornado história, num porto sem abrigo...

Deixei-te um beijo nas gaivotas que me traziam o apelo do oceano, afinal, não

passava de um estranho que só sabia largar âncora, num cais onde a vida não

embarca...

As arestas afiadas de uma despedida anunciada...


 

 PASSOS

 

Porto sentido do meu carinho, eixo invisivel da minha fé, equivoco sentido

em três dimensões...

Em ti repousa o meu medo, a esperança de que o paraíso prometido não seja

mais espaço virtual onde a realidade nunca se cumpre... 

Caminho sem fim, sem rosto, passos perdidos em noites que não acabam,

esperas recheadas de vazio, de rotina onde apenas a solidão se mostra e

a tristeza conforta...

Sinais da dor que já não se sente, a vergonha imposta, composta com que

assumimos a verdade que não temos, com que procuramos o sonho marginal

de um corpo fora de prazo...

Feito nuvem passo, refém da brisa, em busca de um sol que me revele

a tua sombra...


 

NUANCES

 

Descrevo o teu corpo de olhos fechados, cada linha, cada detalhe que te

torna única, sublime, mas continuo a perder o norte cada vez que o percorro...

Nas mãos com que o cinges, a provocação, o desejo que induz o prazer,

a redescoberta continua, feita das nuances que me deixas na pele...

Esse vicio feito necessidade imperiosa, frio da urgência epidérmica, escudo

inglório numa luta sem vencedores...

Negas-te nas palavras, escolhes outros percursos, feitos de fugas e de perguntas

incómodas guardadas em memórias ingratas..., desespero ansioso de repousar

no meu peito...


 

LISTAS

 

Nomes, ruas, números..., infindáveis, comprimidos em milhares de folhas, como se

a humanidade se pudesse contabilizar, ordenar...

Estatisticas penduradas em gabinetes, mapas que definem densidades..., tudo

para que o caos se conserve numa ordem aparente...

Um eterno circulo, sem principio nem fim, onde não passamos de meros cálculos

de circunstância, de pretextos para justificar incapacidades, a monotonia autocolante...

de quem não sabe fazer exercicios de imaginação...

Nunca tive endereço..., faço parte da percentagem de erro, inexistente nas

páginas de uma qualquer... lista...

Lembrei Orwell, talvez tivesse razão quando escreveu:

"The Big Brother is watching you".


 

INSTANTE

 

Acordei com os sons do silêncio, a luz invadiu-me aos poucos e percorri mentalmente o teu corpo...

A saudade dos teus lábios doces, das tuas mãos quentes, do teu olhar de mar onde me deito e invento.

Lembrei-te das noites de luar em que procuramos as estrelas e das manhãs em que a preguiça nos envolvia numa suave mas merecida languidez...

O amor perdeu-se na urgência do real e fugiu da premência do arrebatador, mas foi apenas um instante, tudo se desvaneceu e na ilusão do real descobri o teu sorriso, na aparência perdida de um sonho encontrei o meu caminho...

Levantei-me e como um automato cumpri a rotina diária e, foi já no asfalto duma auto-estrada a 200 por hora que a tua imagem se perdeu na lentidão do tempo...

Um delirio sem consequência, sem causa, fruto do divagar pela sonolência de uma madrugada em que a vida despertou mais cedo...

Reinvento-me na certeza de quem ficou com os sonhos intactos para oferecer e tu apenas ficaste com a realidade fria e matematicamente eficaz, se é que existes para lá do meu pensamento!

Cheguei, terminou a corrida contra a memória que me raptou por breves minutos e olhando para trás, para aquela estrada onde te perdi, nada mais vejo que o negro do esquecimento...

Sê feliz miragem da minha tentação, perdeste-te nos labirintos do raciocinio proibido e acabaste presa na teia dos teus receios, que os fantasmas te libertem.

Liguei o alarme, terminou a abstracção, a vida não espera por quem se atrasa...

Apenas uma história... de uma madrugada fugaz...


 

EXISTIR

 

Existo na certeza que não tenho, mas que teimosamente renovo,

na vontade de me encontrar num qualquer acaso...

Permaneço na razão que não me conforta, na verdade que inventei

para que a dor não chegasse...

Sou mero encontro com a vida, existirei enquanto me procurares, serei

realidade quando me encontrares...

Não sei quem és, mas aprenderei a amar-te, mesmo que o silêncio me

ensurdeça e a resposta me vença...

Não tenho principio nem fim, apenas a continuidade que o tempo me

garante, neste espaço onde procuro a vida...


 

ENSAIO GERAL

 

Tornei-me o personagem principal do filme da tua vida,

nunca o quis, sempre o recusei,  mas a vontade por vezes

dilui-se no calor do desejo...

Sempre fui alérgico a guiões, a cenas ensaiadas e repetidas

até à exaustão, o segredo residia no espontaneo, no acreditar

na sabedoria que o coração encerra...

Sem fé as frases soam vazias, ocas, nenhum argumento sobrevive

ao exame de um publico exigente.

Tentei impedir os sonhos de se tornarem cenários, torna-se

dificil manter a ilusão com eles por perto...

Transformamos as dificuldades em energia, catalizamos as

palavras para que a magia nos transportasse ao local onde

a realidade não entra...

Era com espanto que me via naquele papel de actor, de motivo

para uma estória de um presente em fermentação...

No fundo sabia que os projectos são apenas hipoteses, e o teu

carregava o impossivel que a distância não escondia...

Contrariei as evidências na ânsia de que por uma vez, a vida

escolhesse o caminho certo, as oportunidades que os riscos

oferecem...

Nunca fui jogador, o bluff que fiz não te convenceu a desistir,

a teimosia sempre fora uma das tuas virtudes...

Apenas a intuição me obrigava a ver a sombra que as luzes

reflectiam e vislumbrei sempre o final a que o enredo nos conduzia.

Esquecemos que era tudo a fingir e mergulhamos numa simbiose

sem barreiras, sem limites e acabamos por transformar o medo em

esperança...

As promessas que não estavam escritas, os beijos e a ternura que

não faziam parte das cenas, alteramos tudo em busca da paixão,

do sublime que os corpos prometiam...

Colocamos a fasquia num ponto inatingivel, deixamos a mentira

tapar-nos os olhos e terminamos na angustia do falhanço, do

desvendar da solidão.

Acabamos separados pela impotência que o receio infiltrou no

querer, pelo orçamento que nos foi negado ao filme que não

chegamos a realizar...


 

 ALFA

 

Entrei naquele compartimento exíguo onde mais uma viagem se

anunciava, àquela hora poucos eram os que desafiavam a rotina

à traição...

Quase não a vi, encolhida a um canto, num abraço invisivel, cingia

a tristeza que o olhar sem brilho carregava.

Tentei descobrir naqueles lábios cerrados os sons que romperiam

o silêncio e tornariam aquele espaço mais confortável...

Apenas a fragilidade me chegou como uma necessidade imposta

pela solidão e naquela telepatia dos sentidos, senti as lágrimas contidas

pela vergonha.

Que destino o medo teria escolhido?

Senti o punhal da ausência, como se a morada dos sonhos tivesse sido

abandonada e nem o calor de um sorriso permitisse a esperança...

A fuga recorrente num retorno inadiàvel contra a saudade, ecos de

incertezas de romances impossiveis...

Memórias de perdas irrecusáveis, murmurios enigmáticos de posses

ausentes, presentes na ficção com que argumentava a fuga...

Proibi as palavras e ofereci-lhe o corpo em forma de abraço, eramos

dois estranhos sem elos, companheiros de viagem, cúmplices de um

momento breve, que uma qualquer estação terminaria numa memória

distante...


(*)José Carlos Alves, 41 anos. Poeta português. Mora no Porto.


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