Versiones 46

Octubre - Noviembre 2002

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


Luiz Ferro Moutinho(*):

Amores (EFECTIVAMENTE) perfeitos

(Apresentação do último livro de João Manuel Oliveira Ribeiro)


             ( Um encontro algo atribulado, um almoço necessariamente rápido, e uma conversa surpreendentemente interessante entre duas pessoas que quase não se conheciam e tinham falado apenas uma única vez por alguns breves segundos, um deles um engenheiro, o outro um padre, sendo os únicos elos de ligação possíveis entre os dois, conhecidos e assumidos por ambos até àquela data, o facto de terem praticamente a mesma idade, e a paixão que nutrem ambos pelo acto de escrever. Objectivo do encontro: conhecerem-se minimamente, pois um deles irá apresentar o livro do outro. Relatório de bordo: missão cumprida. Com distinção, acrescentaria eu em posfácio, pois a empatia que se gerou entre nós possibilitou-me de facto conhecer melhor a pessoa que se esconde por detrás do poeta João Manuel de Oliveira Ribeiro, e muniu-me de uma espécie de «guia» que me permitiu ler nas entrelinhas do seu último livro, «Amores (quase) perfeitos e outras arritmias», publicado pela Editorial 100, e é essa «leitura entrelinhada» que eu pretendo agora compartilhar convosco. Curiosamente, fico com a estranha sensação de que talvez ele conseguisse fazer o mesmo comigo... )


O cidadão João Manuel de Oliveira Ribeiro, que nasceu na pequena vila de São Martinho da Gândara, no concelho de Oliveira de Azeméis, há 35 anos atrás, é licenciado em Teologia e tem um Mestrado em Teologia Sistemática na área da Antropologia Teológica, pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Tudo isto para dizer uma coisa tão simples como o facto de que o cidadão João Ribeiro é, de facto, um eminente sacerdote, para além de ser igualmente um poeta de créditos firmados.

            De facto, na sua actividade enquanto escritor e essencialmente enquanto poeta, ele tem já atrás de si colaborações várias com publicações tão distintas como são o Jornal de Noticias, o DN Jovem, o Jornal de Gaia, o Jornal de Matosinhos, entre outros. Tem além disso várias obras publicadas, desde 1987, na área da poesia, como sejam os livros «Sinais Oblíquos», «Nome d’Alegria», «No coração de Deus» e «Regras do mel e da flor», tendo ainda publicado um livro em prosa intitulado «Crónicas disto e daquilo».

            Em termos de poesia, e como marcas incontornáveis do seu percurso literário, ele não esconde a influência que em si tiveram autores como Eugénio de Andrade ou como Sofhia de Mello Breyner Anderson.

            Ele é um admirador confesso da poesia de Eugénio de Andrade tanto na sua forma como no seu estilo, e encanta-se com a subtil musicalidade que emana de todos os seus poemas, mas aquilo que realmente sempre o atraiu mais em Eugénio de Andrade foi o facto de ele conseguir permanecer sempre tão perto da terra, sempre tão perto do chão, sempre tão perto das «coisas simples e verdadeiramente essenciais». Talvez por isso mesmo já alguém disse que «todos os poetas têm um pouco de Eugénio, e talvez todos os Eugénios tenham também um pouco de poeta».

            Já aquilo que mais o atraiu na poesia de Sofhia de Mello Breyner foi exactamente a «clareza elementar» que ela sempre colocou em todos os seus poemas e em todas as suas ideias, pois ele é um admirador fervoroso da poesia existencialista, sendo por isso completamente avesso a qualquer tipo de gonorreia.

            Outra das suas influências confessas enquanto poeta foi a do seu amigo e poeta Daniel Faria, um monge beneditino entretanto falecido, que sempre o deslumbrou pela paixão que empregava na sua escrita, e por ser também um extraordinário criador de metáforas.

            Uma outra influência fundamental na sua vida viria a ser a de José Gomes Ferreira, que o marcou profundamente enquanto homem e enquanto poeta, nomeadamente no seu livro «João sem medo», aonde são patenteadas toda a coragem do Homem perante as adversidades da vida, e a luta constante que ele trava contra a injustiça da condição humana.

            No decorrer da conversa pude constatar que a motivação do João Ribeiro para escrever é conseguir «ler-se» a si próprio, mas não ler-se enquanto poeta, mas sim ler-se enquanto ser humano, pois ele escreve essencialmente para se conseguir entender, para conseguir fazer mais alguma luz sobre si próprio, e talvez por isso mesmo a atitude despretensiosa que ele tem em relação à sua própria escrita pois, não obstante todo o seu já longo percurso, ele considera-se apenas ainda um aprendiz de poeta, o que é desmentido pelo seu enorme talento, e a ter de aceitar o rótulo de poeta, o rótulo que ele aceitaria com menos relutância seria talvez o de poeta místico.

            Entrando mais profundamente agora dentro deste livro em particular, «Amores (quase) perfeitos e outras arritmias», vemos que existe logo à partida uma identificação perfeita entre o autor e a sua obra, expressa imediatamente no seu título, já que o João Ribeiro é assumidamente um apaixonado pelas flores e pelo estudo do seu ciclo, paixão essa já declarada em obras anteriores, e com uma predilecção especial pelos amores-perfeitos, que dão o nome e emprestam a cor a este livro.

            A partir da leitura do livro salta-nos imediatamente à vista a existência de várias influências temáticas, que se configuram depois na existência de vários ciclos ao longo do livro, ciclos esses aliás perfeitamente assumidos pelo autor, que teve o cuidado de os dividir e de os baptizar em três partes distintas: o corpo do poema, o sulco das flores, e o coração dos búzios.

            Ao longo da leitura do livro são também claramente visíveis as duas grandes obsessões do poeta, a obsessão pela palavra e a obsessão pelo mar. Ele próprio se encontra dividido entre estes dois mundos, e não encontra melhor definição para si próprio do que situar-se sempre perto da palavra e perto do mar.

            Assim, na sua poesia, a palavra exige, a palavra protesta, a palavra persegue-se, a palavra permanece, a palavra inclina-se, a palavra deita-se, a palavra lava-se, a palavra veste-se, a palavra é gesto, a palavra é prenha, a palavra guarda-se, a palavra esquece-se.

            Já o mar, o mar é um porto de abrigo, o mar é um naufrágio, o mar sussurra, o mar é violento, o mar segreda, ele é o receptáculo do corpo, o mar é urgente, o mar é saudade, o mar solta-se, o mar permanece.

            Existe ainda uma terceira grande influência na poesia do João Manuel Ribeiro, e essa influência é o Amor, mas o Amor nas suas três expressões, se é que em três expressões nós podemos alguma vez dividir o Amor.

            Teríamos assim o Filo, a filia, o amor filial, o amor dentro da família, a Eros, o amor erótico, o amor carnal entre seres humanos, e a Ágape, o amor universal, o amor por todos os seres e por todas as coisas que existem, e o João Ribeiro abraça-os aos três como a expressão de um único Amor superior, como sendo as três faces de uma mesma moeda, mesmo aquela que aponta para um amor mais carnal, porque afinal o que é o corpo senão uma manifestação física do espirito?

            Ele não rejeita por isso o corpo, ele aceita o corpo, ele abraça o corpo, ele entende o corpo, e eu também entendi isso na sua poesia antes ainda de ler os seus poemas e antes ainda de sequer o conhecer. Vem isto a propósito de um episódio que eu próprio lhe contei durante o almoço que tivemos, e ele não vai decerto levar a mal que eu o repita aqui, pois eu atribuo-lhe de facto alguma graça. Há alguns meses atrás, quando eu fui à apresentação de um livro seu, ainda não o conhecendo pessoalmente, fui surpreendido logo na porta de entrada pelo comentário de duas jovens que folheavam distraidamente o seu livro, e que diziam uma para a outra, «He lá, temos aqui um erotic priest».

            Eu na altura confesso que achei bastante piada a essa definição de padre erótico, embora depois de ler a sua obra eu ache que ela peque por manifesto exagero, porque isso seria reduzir e rotular todo o conteúdo da sua obra pela simples aceitação que ele faz da natureza carnal do ser humano. E o João Ribeiro até não nega, nem renega, a possível leitura desse elemento na sua obra, antes a aceita com alguma naturalidade, sem dogmas nem pudores, abrindo caminho à livre interpretação daqueles que o lêem, potenciando ainda mais essa interpretação dupla ou ambígua, pelo recurso sistemático à técnica da dupla leitura, partindo o poema em dois, dando-lhe duas roupagens, duas maneiras diferentes de ser lido. Ele provoca, mas não revela. Ele insinua, mas não desvenda.

            A solução está evidentemente na cabeça de quem o lê.

            A assunção do corpo está patente na utilização sistemática de algumas palavras-chave que se repetem ao longo de toda a obra, como são o caso das mãos, dos dedos, do coração, mas o corpo é sempre também um lugar de amor, é uma espécie de templo sagrado, talvez mesmo a casa de um amor superior, superior a ele e a todos nós, e que pode apenas ter por designação última a palavra Deus.

            De facto, algumas vezes escondido nas entrelinhas, outras escancarado em letras invisíveis, Deus atravessa todo o livro, e atravessa todos os poemas, Deus é um elemento omnipresente e omnisciente, é verdadeiramente o elemento aglutinador de toda a obra do João Manuel Ribeiro e de todos os poemas deste livro, mesmo aqueles que possam eventualmente dar azo a uma leitura mais atrevida.

            Mas as palavras são isso mesmo, são apenas palavras, e os comentários são isso mesmo, são apenas comentários, e as palavras e os comentários pouco ou nada acrescentam à poesia propriamente dita, apenas realçam ainda mais, se possível, todo o seu carácter etéreo e intangível. Vamos pois abrir caminho à poesia, e procuremos individualmente o significado que se esconde por detrás de cada um dos poemas, lendo as palavras do João Manuel Ribeiro, e construindo para nós próprios amores (cada vez mais) perfeitos.

            Quanto ao João, ele decerto continuará a amar as flores e a extrair delas todo o mel da sua poesia, para saciar a fome daqueles que não têm tempo para reparar que muitas vezes, bem ao lado da estrada, os amores-perfeitos se oferecem, desnudos e desinteressados, para alegrarem a nossa vida com o seu aroma inebriante e com a beleza da sua cor.


(*)Luiz Ferro Moutinho,  escritor e engenheiro português. Autor de 2 romances: A rapariga que desenhava as estrelas e Não sabia que procurava o amor até te encontrar....


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