versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número: 48 / febrero - marzo 2003


Paulo V. Salvador: Um cheiro de África


Agora é a vez de Abidjan, Costa do Marfim, no bojo do grande continente africano. Reputadamente este é o país mais bem sucedido de África, até ao momento, a par do Botsuana. A figura do velho presidente Félix Hophouet-Boigny paira sobre todas as minhas pré-concepões sobre este país. O “imortal”, herói da luta pela indepêndencia, herói da luta pelo desenvolvimento pós-colonial, contrariando o seu epíteto deixou-se finalmente morrer em 1993.

Após uma breve luta disfarçada pela sucessão emergiu o novo presidente Henri Konan-Bendié, cujo aspecto próspero e barriga proeminente não inspira a confiança do “imortal”. De qualquer forma, e para demonstrar a continuidade e a estabilidade é habitual, nas salas oficiais, encontrar os retratos dos presidentes, juntos, como dois gémeos.

Déki Kobéna Kossounou, o meu simpático interlocutor, leva-me ao seu chefe directo, um indívíduo muito negro d brancos dentes resplandecentes, e conversamos durante 1 ou 2 minutos. Depois vamos os três visitar Adama Dao, o chefe do chefe de Déki, e o director do departamento financeiro da empresa. Mais dois minutos de conversa e saímos os quatro para a estrada (isto é, para os corredores e elevadores), Déki volta para o seu posto de trabalho e nós os três vamos visitar o director geral da refinaria para os dois minutos de conversa.

Entretanto, a equipa que vai trabalhar comigo espera mas quando chego à sala de reunião onde eles se encontram já há inúmeros minutos reagem com naturalidade ao meu atraso para ir jurar vassalagem aos sucessivos chefes.

Nessa primeira noite vou jantar com Déki ao Blvd. Giscard D’Estaing. Saio do hotel sozinho no meu Toyota Corolla alugado e sou obrigado a aprender rapidamente a conduzir no meio desta humidade do ar que se condensa e se mistura com o pó nos vidros do carro, nestas estradas sem iluminação, sem divisórias, sem linhas brancas pintadas no chão a definir trajectórias, com passeios da mesma cor que a estrada repletos de pessoas para quem a separação entre a estrada e o passeio também não existe. Evidentemente os outros condutores ultrapassam pela esquerda e pela direita, nem desaceleram perante a aproximação das lombas ou dos buracos na estrada. Avisaram-me para ter especial cuidado com os taxistas, que, observo, são realmente os veícilos mais amulgados de todos. No restaurante, uma vulgar esplanada suja, Déki pede peixe com mandioca e eu frango com batatas fritas. Déki pede também um balde de água, diz-me que é costume no seu país comer-se com as mãos. Sigo-lhe o exemplo. Terminada a refeição, Déki pede pede sabão e trazem-nos um frasco de plástico com gel. Entretanto falamos sobre a Costa do Marfim, com as fracturas tribais, religiosas ( a maior parte dos nacionais são animistas, havendo minorias católicas e islãmicas muito importantes) e nacionais : este último ponto é o que sem dúvida cria mais fricções.  Há muitos imigrantes provenientes dos países vizinhos, especialmente do Burkina Faso e do Mali, a viver na Costa do Marfim. Quando perguntaram a F. H.-B. (anagrama para referia a Félix Houphouet-Boigny) porque permitia que os estrangeiros levassem o (pouco) dinheiro do país ele respondia : é melhor 5% de algo que 100% de nada. 

Déki é um dos mais velhos filhos do velho Déki, que conta já com uma prole de 22 elementos e é oriundo de uma tribo duma obscura província ocidental. A sua filha mais nova tem ano e meio. Evidentemente que tanta descendência não foi produzida num único útero. O velho Déki, como bom muçulmano, tem (ou teve)  4 ou 5 esposas, o meu interlocutor não o sabe ao certo. Ao contrário do que eu pensava, Déki é o nome de família. O seu nome próprio é Koussounou. E Kobéna ? “É um nome obrigatório na minha tribo”, diz-me Déki. E acrescenta: “e representa o dia da semana em que nasçi, neste caso, terça-feira”. Lembrei-me de Robinson Crusué.

- E quantos dias tem a semana na tua tribo ?

- Sete. Mas há tribos só com seis.

Deki é cristão, tal como a generalidade dos trabalhadores da refinaria onde trabalho –a julgar pelos frequentes quadro de Jesus e Maria na sua postura e coloração clássicas. Déki ainda tem um outro nome, começado por “F”, já não me recordo (Feliciano?; Felisberto?), que não vem no Bilhete de Identidade, e que ele recebeu quando foi baptizado. Pergunto-lhe como é que o velho Déki reagiu à conversão do seu filho “Terça-feira”.

- Não houve qualquer problema. O mesmo já não se pode dizer da minha irmã mais nova quando disse ao meu pai que queria também converter-se.

- Porquê?

- O meu pai é, também ele, um converso. Quando escolheu o Islão, eu já era nascido e portanto ele considera não haver nenhum elo sagrado entre mim e o Islão. Isso já não aconteceu com a  minha irmã, que quando nasceu até recebeu um nome muçulmano.

As mães, as mulheres em geral, encontram-se ausentes nestas histórias de família. Déki é casado, não tem filhos e nunca parece muito ansioso por ir para casa. Gostaria que a mulher trabalhasse, “não só por causa do dinheiro, mas sobretudo pelo seu equilíbrio psicológico”. Responde-lhe ela mil vezes “Trabalhar não é para mim”. No dia em que fui a sua casa, para almoçar debaixo da mangueira que domina o jardim das traseiras, ela só chegou das suas voltas pela cidade quando acabáramos de comer e esperávamos deitados no sofá da sala de estar com as janelas largas todas abertas e a ventoínha no máximo que o calor se dissipasse com o passar das horas e pudéssemos voltar ao meu Corolla sem ar condicionado. É uma bela negra alta e elegante. Quem trabalhou – homem não trabalha em casa, é mais do que ponto assente – foi a sobrinha de Déki, que vive com eles. O conceito de família alargada – a responsabilidade de um indivíduo não se cinge apenas à sua casa mas a toda a família e relações desta – continua bem vivo neste país. Déki queixa-se das visitas constantes de familiares a pedirem apoio financeiro. “Por isso é que as pessoas com trabalho aqui também são pobres – tem sempre famílias numerosas para apoiar”.

Na Costa do Marfim, cristão é sinónimo de católico. A dinâmica católica é tão forte aqui que F. H.-B. conseguiu construir a maior catedral do mundo na sua cidade natal, Yamoussoukro. Esta catedral tornou-se desde o início o principal destino turístico da Costa do Marfim. Mesmo os turistas alojados em Abidjan e na sua imeiata vizinhança estão dispostos a fazer as centenas de quilómetros até Yamoussoukro para assistir à missa de domingo.

Nestas latitudes os processos de alvorada e crepúsculo (nascer e por do Sol) são duma rapidez impressionante. É praticamente a única coisa rápida que acontece por estes lados. Das poucas vezes que discuti o tempo com os Marfinenses, eles queixam-se da monotonia que é a inexistência de estações. Sempre este calor húmido (mal saio do meu quarto do hotel onde o Ar Condicionado controla a temperatura e a humidade os meus óculos embaciam completamente e o meu corpo enche-se de suor). Na estação “quente” a temperatura ronda os 30-35ºC e na “fria” os 25-30ºC. Há também duas épocas das chuvas, uma pequena em Julho-Agosto e uma grande em Dezembro-Janeiro, de que resulam invariavelmente um aumento assinalável do número de mosquitos e de surgimento de casos de malária. Ao prevenir-me do perigo da malária, Déki acrescenta outros perigos locais a evitar: a corrupção da polícia, a probabilidade de ser assaltado, o assédio pelas prostitutas – todos estes perios muliplicados árias vezes pelo facto de eu ser um estrangeiro e branco. Déki e eu entendemo-nos tão bem que começamos a utilizar o humor no nosso dia-a-dia. Déki apresenta-me a todos como “mon blanc”, “o meu branco”, expressão que a meu ver revela um grande desempoeiramento da sua parte. E quando tínhamos opiniões divergentes ele terminava com um sorriso dizendo: “Está bem, faz-se como tu dizes, tu é que és o branco”. Não encontro em Déki o discurso tantas vezes ouvido da boca dos seus irmãos africanos das culpas do homem branco em África.  

Com o trabalho a exigir mutas horas porque se trabalha devagar, o “Palm Beach Hotel”, onde estou instalado (a cuja praia não se aconselha a ir, tem tantos detritos e ferros a apodrecer que mais parece uma praia da Normandia após o desembarque aliado), torna-se o meu principal posto de observação da realidade do país. Mas, depois de deixar a refinaria e antes de chegar ao hotel há um ritual diário que me habituei a fazer rapidamente: por um caminho de terra, e com cuidado para não atropelar as galinhas, conduzo até um barraco decadente para que possam encher os dois pneus traseiros do carro que todos os dias esvaziam. Como só pago o equivalente a 20$00 nem me preocupo em resolver de vez este problema.

No hotel, há inúmeros brancos acompanhados por jovens e belas mulheres negras elegantemente vestidas. Não falam muito entre eles, o que já denota uma grande familiriadidade. Às refeições, o que me prende mais a atenção é a inúmera fauna,  antílopes, pássaros e lagartos, que nos faz companhia nas mesas no jardim.

Todas a noites há sempre pelo menos dois “black-outs”. Por um momento fica tudo às escuras até que um funcionário vá rearmar as protecções ou ligar o gerador.

Um dia, pelas 20h30, durmindo uma sesta atrasada (aqui começa-se a trabalhar às 6 horas da manhã) uma daquelas gloriosas tempestades tropicais descarrega tão violentamente as suas águas no telhado de zinco do “bungalow”, com tal sinfonia de trovões e relâmpagos, que me acorda e impede de adormecer. Os caminhos ficam instantaneamente alagados, e por isso o melhor é ficar no quarto.Sento-me na cadeira do alpendre a apreciar a vertigem da Natureza. O mundo está vivo por isso tudo está bem.

Abidjan é a capital comercial da Costa do Marfim, a última cidade escolhida pelos franceses para localizar as suas estruturas coloniais de topo. Estende-se ao longo das margens da grande laguna que, paralelamente ao mar, corta quase todo o sul do país. Um dos braços da laguna encontra o mar em Abidjan. Como é típico nos países do Terceiro Mundo, os pincipais monumentos da cidade são os luxuosíssimos hotéis que se destinam aos europeus. A cidade é incaracterística, parece-me que sofre da sofreguidão do futuro (tudo é provisório e dispensável em função dum futuro que se espera com grande confiança mais próspero). Neste sentido é a verdadeira antítese da cidade lagunar por excelência, Veneza.

A leste de Abidjan, junto ao mar, Grand Bassam é agora a capital balnear marfinense. A primeira capital colonial dos tempos franceses, deixada a apodrecer após a mudança da capital para Bingerville devido aos focos permanente de malária, tem agora o encanto da decadência. A cor do uso instalou-se em todos os recantos, dando um belo tom monocromático à velha cidade. Os novos hotéis foram construídos por cima da praia, sem tocar no centro de Grand Bassam. Na praia, cheia de coqueirais, os europeus dominam. O céu resplandecente torna-se muito rapidamente negro e uma chuvada violenta cai, quase não dando tempo aos turistas para se refugiarem com os seus haveres de praia num qualquer recanto abrigado. Esta tempestade obriga-nos a regressar, não sem antes enchermos os pneus traseiros numa velha oficina cujo compressor é movido por um motor de combustão interna.

A Route du Grand Bassam, a boa estrada asfaltada entricheirada entre um infinito coqueiral que liga Abidjan à antiga capital e que corre entre a laguna e o mar é um imenso bazar à procura dos francos dos turistas. Mas este bazar está escondido algures no bosque. Só nos apercebemos dele quando por alguma razão paramos o carro : no seu ritmo tranquilo somos rodeados por mulheres ou crianças capazes de nos venderem Pepsi, Fanta, Coca Cola, cocos, ananases, bananas, cervejas, panos, bugigangas, estatuetas, baldes de plástico coloridos, roupa de algodão de estilo local e uma outra miríade de produtos que ignoramos onde estejam armazenados.

Mais perto de Grand Bassam, este comércio está mais visível, na berma da estrada, em desajeitadas casotas de madeira. São os comerciantes legais, esclarece Déki. Dirigimo-nos a uma loja de estatuetas de madeira recomendada por Déki. Nestas casotas está toda a cadeia de valor. Do lado da estrada, o mostruário e a infrastrutura da venda (On accepte VISA) e nas traseiras os artífices :os  talhadores, os esculpidores, os acertadores, os lixadores. Já perto de Abidjan, mesmo antes de entrar no bairro de lata de Adjoufou, paramos para almoçar num restaurante-galeão, ancorado em plena praia de coqueiros, o “La Chaluppe”. Duas irmãs amigas da mulher de Déki fazem-nos companhia. Uma é a mulher do “patron” françês dono do restaurante. A outra discute com Déki o significado de ser-se cristão (encontro permanentemente este interesse e fervor religioso fora da Europa), e diz que já não bebe e que tenta levar uma vida sem pecado. Refatelamo-nos com “kedjenou” (um estufado local) e solha, tudo acompanhado por um suculento “aloco” (banana frita em óleo de palma), batata frita e arroz branco. Os marfinenses mantem a tradição francesa da importância da comida no quotidiano. Para beber, um vinho branco françês que eu comprara a preços exorbitantes num supermercado.

No dia de regresso, Déki oferece-se para me levar ao aeroporto. Numa rotunda, após um breve diálogo, deixamos entrar para  banco de trás do carro uma jovem marfinense. “Deixamos-la no caminho para o aeroporto; Treichville, para onde ela quer ir, não fica no caminho” Déki esclarece-me.

- Como te correu o dia hoje?

- Mal, só um cliente. Vou voltar a casa agora para descansar.

Dizia chamar-se Patrícia e, com orgulho, dizia ser cristã. Ainda está a saír da adolescência e por isso o seu aspecto ainda é agradável. Preocupa-se com o seu visual. Alourou o seu cabelo africano mas mantem a laboriosa tradição local de prender o cabelo.

-Tu, sendo cristã, como te deixas meter nesta vida ? Não é perigoso com a SIDA e isso ? – Déki volta à carga, está-lhe na cultura não deixar uma senhora sem conversa.

- Deus protege-me – remata ela a conversa.

Patrícia nunca mais nos largará e vai connosco ao aeroporto. “Je rêve de voler” diz-me ela no bar, enquanto esperamos pela chamada do voo, numa pose muito sensual mas sem qualquer inocência.

O sistema de som do aeroporto anuncia o meu voo e Déki e Patrícia, que leva ao ombro o meu saco da máquina fotográfica, acompanham-me até eu desaparecer  na zona internacional do aeroporto. Três acenos anunciam uma separação.

Fevereiro 1999

PostScritum : Abril de 2003, F. H.-B. dá mais uma inumerável volta no seu túmulo, nem a morte traz a tranquilidade eterna. O seu país, uma das raras esperanças de África, torna-se todos os dias cada vez mais igual  aos seus vizinhos. Muito por causa do seu sucesso inicial, que chamou a Abidjan e a outras cidades enormes multidões imigrantes dos países vizinhos. A questão da nacionalidade marfinense surgiu perante a irrupção destes estrangeiros (provavelmente porque o preço do cacau desceu e o dinheiro começou a não chegar para todos) e o gordo Konan-Bédié  geriu desastradamente esta questão. E então veio o golpe de Estado e depois a guerra civil e os mortos acumulados e as intervenções estrangeiras e a actual divisão do país a meio entre o governo legítimo cristão-animista do sul e os rebeldes muçlmanos do norte. E a oeste esse verdadeiro Sol negro que é a Libéria organizou movimentos rebeldes de base tribal que obiveram já o seu quinhão teritorial. A linha de fractura entre Civilizações que se degladiam, esse atavismo que Huttington ressuscitou para reinterpretar as dinâmicas do nosso mundo, desenhou-se claramente na Costa do Marfim.

A Costa do Marfim conseguiu em cinco anos incrementar todas as tensões capazes de destruir um país durante gerações.


(*) Paulo V.Salvador, engenheiro químico e escritor portugués. Este texto forma parte do seu primeiro livro: O mundo, aqui ao lado, publicado pela Editorial 100.


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